Outro dia, chamaram-me de general num desses blogs. Não me importo: são os mesmos de sempre, como diria um personagem de Beckett, depois de apanhar. O ponto de partida é minha visão positiva sobre o papel do Exército no Haiti. O que fazer? Estive lá duas vezes, vi com os meus olhos e ainda assim sempre consulto o maior conhecedor brasileiro do tema, Ricardo Seitenfus.
Não estive com o Exército apenas no Haiti. Visitei postos avançados de fronteira da Venezuela, junto aos yanomamis, em plena selva perto da Colômbia. Vi seu trabalho na Cabeça do Cachorro, no Rio Negro, cobri o sistema de distribuição de água para milhões de pessoas no sertão do Nordeste.
Não tenho o direito de encarar o Exército com os olhos do passado, fixado no espelho retrovisor. Além de seu trabalho, conheci também as pessoas que o realizam.
Nesse momento de intervenção federal, pergunto-me se o Exército, para algumas pessoas da esquerda e mesmo alguns liberais na imprensa, ainda não é uma espécie de fantasma que marchou dos anos de chumbo até aqui, como se nada tivesse acontecido no caminho.
Alguns o identificam com o Bolsonaro. Outro engano. Certamente existem eleitores de Bolsonaro nas Forças Armadas como existem na igreja, nos bancos e universidades. Mas Bolsonaro e o Exército não são a mesma coisa.
Existem várias comissões para fiscalizar o intervenção. Ótimo. Isso é democracia. Mas existem poucas articulações para cooperar com o Exército: isso é miopia.
Houve um certo drama porque os pobres foram fotografados por soldados. Quem dramatiza são pessoas da classe média que vivem sendo fotografadas, na portaria de prédios, na entrada de empresas. Por toda a parte alguém nos filma.
Há uma lei específica sobre identificação. É razoável discutir com base nela. Mas é inegável também que os tempos mudaram. Na Europa e nos EUA por causa do terrorismo, aqui por causa da violência urbana.
Não se trata de dizer sorria, você está sendo filmado. É desagradável e representa uma perda de liberdade em relação ao passado. Mas expressa um novo momento.
O Ministro Raul Jungman tomou posse afirmando que a sociedade do Rio pede segurança durante o dia e à noite consome drogas. É uma frase muito eficaz em debates e artigos. Creio que apareceu até no filme “Tropa de Elite”.
Na boca de um ministro, que considero competente, merece uma pequena análise.
Parisienses, londrinos, paulistas e novairorquinos também consomem droga, suponho. No entanto não existem grupos armados dominando o território urbano.
Se isso é verdade não é propriamente a abstinência que tem um peso decisivo, mas sim a presença do Estado que garante uma relativa paz, apesar do consumo de drogas.
Núcleos de traficantes deslocaram-se para o roubo de cargas porque o acham mais rentável. É impossível culpar os consumidores de geladeiras e eletrodomésticos não só porque é uma prática legal.
As milícias pouco se dedicam ao tráfico de drogas. Vendem segurança, butijões de gás e controlam o transporte alternativo. São forças de ocupação.
Campanhas contra o consumo de drogas, nessa emergência, têm uma eficácia limitada, apesar de suas boas intenções.
Mas assim como há gente que vê um exército fantasma, perdido nas brumas do século passado, pode ser um erro mirar no consumo de drogas e perder de vista a ocupação armada do território.
Uma das frases mais interessantes no “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, é quando o personagem diz que não sabe mais quem é o inimigo.
Há tantos combatendo exércitos fantasmas ou investindo contra moinhos que é sempre bom perguntar: afinal, qual é o foco?
Artigo publicado no Jornal O Globo em 01/03/2018
http://gabeira.com.br/a-luta-contra-fantasmas/
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