sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Desejo de ano-novo( Pedro Doria, Estado , 31 12 21)

 Pedro Doria - Desejo de ano-novo

sexta-feira, 31 de dezembro de 2021


O Estado de S. Paulo  

O Brasil nunca elegeu um extremista para a presidência - até que aconteceu, em 2018. A não ser que algo de muito improvável ocorra, pela primeira vez desde o início da reeleição o ocupante do terceiro andar do Planalto não ganhará um segundo mandato. Não importa o vencedor, por si só já é uma boa notícia. Teremos a mais agressiva eleição da Nova República. Derrotado, com ainda dois meses de mandato, não podemos esperar civilidade de Jair Bolsonaro. Mas podemos sonhar com 2023. Meu desejo para o Brasil é de que a esquerda encare uma de suas maiores contradições. É gostar de empresário grande mas ter horror a empreendedores.


O Brasil está em 8o.° lugar no ranking de competitividade global de talentos. Não é que não tenhamos cérebros qualificados. É que eles estão fúgindo para o exterior. Um governo de esquerda não teria dificuldades de investir em universidades e reter nossas melhores cabeças. Só que conhecimento vira riqueza quando negócios são criados a partir deles. E empreender é nosso fraco: somos o 124.0 país do mundo em facilidade para fazer negócios, segundo a OCDE.


Políticas econômicas defendidas pela esquerda despejam dinheiro para turbinar empresas gigantes. Se é para grandes empresários, aqueles mais afeitos aos corredores palacianos do que aos debates sobre inovação, aí os preconceitos desaparecem. A contradição parte de uma incompreensão: a esquerda acha que um bom negócio nasce da força bruta do dinheiro despejado, não do capital humano, das idéias e das capacidades de quem o ergue.


Noutros tempos, quando as regras que valiam eram as da Era Industrial, a política de jogar dinheiro público em quantidade para construir do zero um setor até funcionava. Mas o caminho para o Brasil encontrar seu lugar no século 21 será pela economia verde, este é um setor novo, e nele as regras ainda não estão dadas.


O método para o século 21 é o do Vale do Silício. Produz-se conhecimento e se cria um ambiente onde abrir e fechar empresa é muito fácil. Onde pequenos financiamentos para testar modelos são estimulados com a consciência de que, para cada cem apostas, noventa darão errado, oito serão empresas bacanas e duas se tomarão extraordinárias.


O Estado deve estar presente em políticas sociais. E fundamental que esteja. Mas, caso se livre de preconceitos e compreenda que não precisa controlar cada passo da sociedade, descobrirá que nossa criatividade não se limita aos esportes e às artes. Basta deixar o brasileiro tentar, errar - acertar. Todos nos beneficiaremos com o PIB criado. ?


JORNALISTA


A esquerda precisa parar de gostar de empresário grande e de ter horror a empreendedores

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

O carro ecológico criado por Henry Ford em 1941 e nunca comercializado(BBC, 3 novembro 2021)

 https://www.bbc.com/portuguese/geral-59123741



Henry Ford foi imortalizado como o homem que popularizou o uso de automóveis com a criação do primeiro carro produzido em massa, o Ford T.


A linha de montagem, inventada pelo americano, possibilitou que o mercado automobilístico se expandisse, revolucionando a indústria de transportes no início do século 20.


Hoje a proliferação de carros — que emitem dióxido de carbono, o principal gás causador do aquecimento global — é considerada um fator central das mudanças climáticas.



Mas poucos sabem que Ford, símbolo do carro, da indústria e da linha de montagem, também flertou com a produção de um produto ecológico — pelo menos no material usado para a produção.




Nos anos 30, a Ford foi uma das primeiras indústrias a fabricar o que hoje chamamos de bioplástico: um plástico feito de plantas que, ao contrário do plástico tradicional - feito de hidrocarbonetos - é biodegradável.




Ford chegou a criar um carro com esse material: o Soybean Auto (carro de soja), que ele apresentou ao público em 1941.


Ele estava tão convencido das virtudes deste plástico — que, segundo ele, era dez vezes mais resistente do que o aço — que pegou um machado e atingiu um painel de metal e um de plástico, mostrando que apenas o metal tinha amassado.


No entanto, apesar de o próprio magnata ter previsto que "dezenas de milhares de artigos e autopeças atualmente feitos de metal" seriam feitos de "plástico criado a partir de materiais colhidos na fazenda", o protótipo nunca virou um produto. O carro de soja nunca foi e o único modelo existente foi destruído. Não há nem mesmo uma réplica.


Qual a história por trás desse projeto? Por que ele não prosperou?


Um trabalhador fabrica um carro de plástico

CRÉDITO,FORD MOTOR COMPANY

Legenda da foto,

Henry Ford acreditava que o plástico feito à base de plantas seriao material do futuro



De acordo com o Benson Ford Research Center, dedicado a preservar a memória de Henry Ford, o famoso empresário cresceu em uma fazenda em Michigan e durante toda a sua vida buscou uma forma de combinar "os frutos da indústria com os da agricultura".


Ford criou laboratórios dedicados a encontrar usos industriais para plantas como soja, milho, trigo e cânhamo. A ideia de construir um carro de plástico feito a partir desses materiais não só cumpria o propósito de unir as duas paixões, mas também tinha outros méritos, destaca o centro de pesquisas.


Uma era que a Ford acreditava que "os painéis de plástico tornavam o carro mais seguro do que os carros de aço tradicionais; e que o carro poderia até mesmo capotar sem ser esmagado".


Mas havia também uma questão prática: com o início da Segunda Guerra Mundial na Europa, em 1939, houve uma "escassez de metais" no mundo.


"As matérias-primas plásticas podem custar um pouco mais", disse ele ao jornal The New York Times durante a apresentação de seu "carro feito de plástico", em agosto de 1941. "mas prevemos uma economia considerável como resultado de menos operações de acabamento na fabricação."


A estrutura metálica do carro de plástico

CRÉDITO,FORD MOTOR COMPANY

Legenda da foto,

A fórmula do material é desconhecida até hoje


O que se sabe sobre o Soybean Auto

O próprio Benson Ford Research Center reconhece que muito pouca informação foi preservada sobre esta invenção original, que, no entanto, continua a despertar o interesse de muitas pessoas — especialmente agora que há tanta atenção dada às questões ambientais.


Uma das grandes incógnitas são os detalhes sobre o material com que o carro foi feito. Os ingredientes exatos dos painéis de plástico são desconhecidos porque atualmente não há registro da fórmula.


A reportagem do New York Times da época diz que "um dos plásticos desenvolvidos pelos químicos da Ford é um material composto de 70% de fibra de celulose e 30% de aglutinante de resina".


"A fibra celulósica é composta por 50% de fibras de pinho, 30% de palha, 10% de cânhamo e 10% de rami, material usado pelos antigos egípcios para as múmias", detalha o jornal.


Mas o homem encarregado de criar o carro, Lowell E. Overly, deu uma versão muito diferente em outra entrevista. Ele disse que o carro era feito de "fibra de soja em uma resina fenólica com formaldeído".


Modelo de estrutura metálica do carro

CRÉDITO,THE HENRY FORD/FORD MOTOR COMPANY

Legenda da foto,

A base do carro era uma estrutura metálica


O projeto

O que está mais documentado é como o Soybean Car foi projetado e montado.


A Ford confiou a tarefa a Overly, que era designer de ferramentas e matrizes do Laboratório de Soja, que fazia parte do complexo criado pelo empresário automotivo.


O supervisor de Overly, Robert A. Boyer, que era químico, também ajudou no projeto. O carro tinha uma estrutura de aço tubular, à qual foram fixados 14 painéis de plástico.


Além de fazer o carro mais resistente a impactos, o plástico tinha outra grande vantagem: era muito mais leve. O Soybean Car pesava menos de uma tonelada, metade do peso dos carros tradicionais da época.


Este foi outro fator que Ford destacou quando apresentou sua inovação em 13 de agosto de 1941 no Dearborn Days, um festival em Michigan. O "carro de plástico" também foi exibido no Michigan Fairgrounds no final daquele ano.


Mas apesar de seu apoio à sua nova invenção e da confiança de Ford no futuro dos plásticos à base de plantas, o projeto não foi para frente.


De acordo com Overly, o único modelo já feito foi destruído e os planos para produzir uma segunda unidade nunca saíram do papel.


O que impediu o projeto — e parou toda a produção de automóveis nos EUA — foi a entrada do país na Segunda Guerra em 1941, depois do ataque japonês a Pearl Harbor.


No final da guerra, a ideia de um carro de plástico desmoronou enquanto a energia estava indo para os esforços de recuperação, explica o Centro de Pesquisa Benson Ford.


Outros afirmam que o desinteresse pelo plástico à base de plantas foi devido a um fator puramente econômico: a abundância de petróleo barato após a Segunda Guerra Mundial.

sábado, 13 de novembro de 2021

O maior desafio da energia eólica é o PIB(Revista Conjuntura Econômica, 11 11 21)

 'O maior desafio da energia eólica é o PIB'

quinta-feira, 11 de novembro de 2021 - 00:00


 

Revista Conjuntura Econômica  / Noticias

Os 10 anos que a economista Elbia Gannoum completa à frente da Abeeólica também marcam a forte expansão da geração eólica no Brasil, colocando-se como a segunda maior dentro da matriz elétrica brasileira, com custos competitivos. Pelo lado da oferta, a executiva diz que a capacidade de expansão do setor continua praticamente ilimitada, podendo acontecer à medida que o país cresça e a estrutura de transmissão permita levar a energia gerada aos centros de consumo. Em entrevista à Conjuntura Econômica, Elbia destacou o potencial da exploração offshore no Brasil, afirmando que sua complementaridade com a atual geração onshore eliminaria a necessidade do uso de termelétricas. Tecnologia e fontes de financiamento não faltam; afirma, ressaltando que a energia eólica também já mostrou colaborar para o crescimento socioeconômico das regiões em que os parques têm sido instalados, especialmente no Nordeste. "Além de ser uma matriz renovável, usando recursos competitivos, é uma ferramenta de desenvolvimento, que é algo tão desafiador para o país; afirma.


Conjuntura Econômica - A geração eólica registrou forte expansão na última década no Brasil. Como o atual cenário de inflação e juros altos, desvalorização da moeda, tensão sobre a gestão fiscal e estimativa de baixo crescimento afetam as perspectivas do setor?


A energia eólica participou do primeiro leilão em 2009, quando foram contratados em torno de 2GW. Em 2011, entrou em operação o primeiro parque resultante desse leilão. Nesse ano, quando cheguei na Abeeólica, tinhamos 1GW de capacidade instalada. A partir daí, até 2017, foram contratados em média 1, 8GW a 2GW por ano. Em 2017 tivemos um momento muito importante, pois foi


quando a eólica se tornou a fonte de energia mais barata do país - em 2009, ela custava duas vezes mais que a geração hidrelétrica. Diante disso, começou a surgir para nós um novo nicho, pois o mercado livre também passou a se interessar pela eólica, fazendo a demanda crescer ainda mais. Em 2018/19, contratamos 1, 5GW nos leilões e de 2, 5GW a 3GW no mercado livre. E o montante contratado era o que a própria cadeia podia produzir, porque 80% da cadeia eólica é nacionalizada. Em 2020, por causa da pandemia, os leilões regulados foram cancelados, mas mantivemos uma contratação em torno de 3GW no mercado livre. Em 2021 os leilões voltaram, tivemos S00MW contratados, e vamos ter um pouco mais de leilões. E o mercado livre continua muito dinâmico. Devemos repetir 3GW novamente este ano, e a tendência é de que esse nível de contratação ainda continue por mais dois ou três anos.


Assim, no curto prazo, não estamos revisando nossas projeções, pois com esses resultados temos construções contratadas até 2025, quando incluiremos ao menos mais 10GW de geração, totalizando 31GW. , Isso mostra que a velocidade do crescimento dos próximos 10 anos tende a ser maior do que a dos 10 anos passados, dada essa inserção forte da eólica no nicho do mercado livre. Essa perspectiva parece destoar do pessimismo com o qual olhamos as estimativas para a economia brasileira até 2022. . .


Esse Brasil mais pessimista me ensinou muito, principalmente entre 2014-16, quando vivi uma agonia grande porque tivemos leilões cancelados, devido à retração da atividade. Hoje, me traz muita preocupação o descontrole macroeconômico. Quando começamos a ver a alta da Selic nesse nível, anúncio de que a inflação em um mês (setembro) é a maior em 27 anos, isso tudo traz muita incerteza. Estou acostumada, quando visto meu chapéu de investidora, a lidar com instabilidades políticas - pelas experiências que passamos, como a Lava Jato, aprendemos a precificar isso e já seguimos para a segunda derivada. Só que os fundamentos macroeconômicos de certa forma estavam mantidos, o descontrole foi gerenciado. Na medida em que se perde o controle macro, terei que aprender a lidar com uma situação razoavelmente nova, com a qual nesses 20 anos de carreira, e 10 no setor de energia eólica, eu não lidei ainda. Somos dependentes do investimento externo, então nos preocupa o impacto que isso pode trazer na disponibilidade de crédito, no apetite dos investidores internacionais.


Dadas suas características, qual o limite possível da participação da geração eólica na matriz elétrica brasileira?


Vamos fazer análise do lado da oferta e da demanda. Do lado da oferta, o Brasil tem 800GW de potencial eólico onshore e cerca de 1TW offshore. Então, quando olho do lado do recurso eólico, o potencial de expansão é infinito quando comparado à capacidade instalada do Brasil hoje, de 170GW. Mas o Brasil não vai chegar nisso nunca, porque a matriz precisa ser diversificada por definição. Já tivemos 90% de geração hidrelétrica; hoje, frente à crise hídrica, ter 60% da geração hidrelétrica já nos deixa numa posição difícil.


Os limites, portanto, estão do lado da demanda. Primeiramente, como disse, pelo fato de que o planejador não expandirá a eólica infinitamente, pois precisa alocar outros recursos de produção, como solar, termelétrica. Esse é um lado, e é uma constante. O único lado da demanda em que há algum grau de manobra para ampliação seria em registrado uma expansão na


, com uma trajetória virtuosa que a levou a ser a segunda fonte da matriz - respondemos por 11% de participação na capacidade instalada, e em termos de geração representamos no segundo semestre deste ano cerca de 17% em média do sistema elétrico nacional, com picos de 20%. Mas se a gente tivesse um PIB maior, esse crescimento também seria maior. Então, nosso maior desafio está relacionado ao PIB, à economia, que tem apresentado resultados pífios. Agora já se fala de uma recessão em 2022, e isso é ruim. Na hipótese - Deus me livre - de o Brasil ter mais uma década de estagnação, o que acontecerá com a eólica? É possível que daqui a cinco ou seis anos esse impacto da crise econômica chegue no setor. Mas ainda não chegou, pois ele tem uma dinâmica própria de atender ao mercado livre. Por outro lado, quando a economia passa um tempo estagnada e volta à crescer, a demanda por energia é maior do que aquela elasticidade média que conhecemos, de 1, 5. Em retomadas rápidas, essa elasticidade pode chegar a 2%, 2, 5%. O limite estaria aí.


Atualmente, há grande interesse na expansão das fronteiras da geração eólica para o offshore. Há limitações para esse tipo de exploração no Brasil?


Não temos limites tecnológicos, nem de financiamento para fazer offshore. Só não o fizemos ainda por questão de competitividade. Veja, diferentemente do resto do mundo, o problema a se resolver no Brasil não está na escassez do recurso, e sim na abundância do recurso renovável. O Brasil tem eólica, solar, hidrelétrica, PH, biomassa, e essas fontes se tornaram muito competitivas nos últimos 10 anos. Então, ao fazer a gestão da abundância, o planejador vai tomar a decisão lógica do preço, postergando a escolha das fontes menos competitivas. E por que o offshore é o tema do momento? Porque vários países, especialmente os europeus - Inglaterra, Dinamarca, Holanda - investiram fortemente na tecnologia offshore, e com isso o custo dessa tecnologia tem caído drasticamente. Como também tem ocorrido com a geração solar. Nessa curva de decréscimo de custo, a eólica offshore está chegando num patamar próximo do nível do de uma termelétrica competitiva, em torno de R$ 350 por unidade de energia. Então, a partir do momento em que o offshore se aproxima do preço da termeleticamelen e razoa velharia o Brasil. Vale ressaltar que, embora o offshore utilize turbinas parecidas com as da geração onshore, estamos falando de recursos distintos do ponto de vista elétrico, regimes de produção diferentes. Isso, inclusive, o torna fonte complementar para diversificar a matriz com mais renováveis. Com qual fonte a offshore concorre efetivamente? Com a termelétrica. Os defensores de termelétrica ressaltam que esta garante uma geração flat que traz segurança. Porém, quando eu coloco offshore combinada com várias eólicas onshore, que estão em regiões distintas, no Nordeste e no Sul, elas se complementam, eliminando a necessidade do uso da termelétrica. E aí eu resolvo duas questões: a termelétrica é poluente, e preciso de uma matriz cada vez mais limpa. E ela é caríssima. Nesse momento em que estamos vendo uma crise energética global, e o Brasil precisando de térmicas porque no passado não se fez um planejamento adequado - considerando que era difícil prever que sofreríamos todos esses efeitos das mudanças climáticas -, estamos tendo que pagar muito caro pelo combustível. Para o offshore no Brasil, o que precisamos é de regulamentação, cujo projeto o ministro Bento de Albuquerque, de Minas e Energia, sinalizou que lançaria ainda em novembro.


Um dos gargalos conhecidos para a expansão da geração eólica é a transmissão. Como equacionar esse tema, especialmente se o plano é levar essa geração para o alto-mar? A questão da transmissão não chega a ser um gargalo, mas sem dúvida é um desafio sempre presente. Das três variáveis que tenho de monitorar o tempo todo - demanda, financiamento e transmissão -, ela é a que está no topo das minhas atenções. Com relação à demanda, mencione a preocupação com o PIB. Fontes de financiamento não faltam. Temos uma quantidade enorme de investidores chegando no Brasil, de fundos, e temos recursos do BNDES, que financiam 90% dos nossos projetos. Por que usamos tanto o BNDES? Porque ele me dá salvaguarda da variação cambial. Muitos interessados em nosso mercado têm dinheiro, mas por conta do câmbio acabam usando o BNDES. E não faltam recursos. O banco tem R$ 130 bilhões para financiar energia; a eólica usa no máximo R$ 8 bilhões por ano. No caso da transmissão, quando começamos lá em 2009 com a eólica nos leilões, acreditávamos que uma linha de transmissão poderia entrar em funcionamento em dois, três anos. Então fazíamos um leilão de eólica, outro de transmissão, e esperávamos o casamento de ambas acontecer. Mas a eólica terminava e a transmissão não chegava, por questões ambientais, entre uma série de complexidades da transmissão. Tivemos que mudar o planejamento, ampliando o prazo. Então, para fazer um parque eólico funcionar daqui 5 anos, precisamos do leilão de transmissão dois, três anos rancescido leilão dareólican E assim o planejamento tem sido feito. O que está acontecendo agora é que o aprofundamento da crise hídrica, associado às mudanças climáticas, nos mostrou que não podemos mais contar com as hidrelétricas como no passado, que elas nos darão trabalho mais frequentemente. Então, é preciso trazer outros recursos energéticos. A térmica, como disse, especialmente a térmica emergencial, é dramaticamente cara. Então, qual a forma de eu ajustar essa perda de geração hidrelétrica que não vou recuperar mais? Preciso aumentar a quantidade de energia renovável, tanto eólica quanto solar. Só que os recursos eólicos melhores estão concentrados no Nordeste e no Sul do país, então preciso aumentar a transferência de energia entre Nordeste e Sudeste, entre Sul e Sudeste. Esse é o problema hoje. No fim de outubro houve um leilão emergencial do Ministério de Minas e Energia em que a eólica não foi contratada, apesar de entrar em funcionamento em 1 ano e meio, porque não adianta gerar eólica lá no Nordeste se não há linha de transmissão para trazer para o Sudeste. Do ano passado para cá essa necessidade de aumento da transferência ficou muito clara para o planejador, que está preparando uma série de leilões de transmissão. Estudo da Consultoria GO Associados para a Abeeólica indica que municípios que receberam investimentos em geração eólica registraram aumento real do PIB de 21, 15% entre 1999-2017 na comparação com os que não receberam, e que o Índice de Desenvolvimento Humano nesses lugares aumentou 20% entre 2000 e 2010. De que forma esses ganhos acontecem, e como potencializar essa capacidade?


Esse é um dos temas que mais gosto de tratar. Estive pela primeira vez em um parque eólico, no Nordeste, em 2012. Eu era uma economista muito acostumada a lidar com elétrons, e o debate sobre sustentabilidade no setor não estava tão aflorado, especialmente no Brasil. Quando cheguei lá, falei com prefeitos, com a vizinhança dos parques, e percebi esse impacto positivo, mas ainda não tinha como mensurá-lo. Somente passei a incentivar a realização de matérias a respeito. Só chegamos a uma medição desse efeito multiplicador no ano passado.


Veja, o relacionamento de um parque eólico com uma região dura pelo menos 25 anos. Começa com a identificação de áreas que contam com bom vento. Então, o potencial empreendedor chega ao proprietário de um terreno, em geral são pequenas propriedades, afirmando seu interesse em arrendar a terra para colocar uma torre de medição. Essa torre fica ali por cerca de 3 anos, período no qual o dono da terra recebe um valor fixo. Quando o projeto é aprovado e se instala o parque, faz se um contrato de 25 anos e o pagamento passa a ser um valor relativo à geração. A partir daí, esse proprietário - que vive no interior da Bahia, do Piauí, do Rio Grande do Norte, muitas vezes beneficiário do Bolsa Família - tem em média dois ou três aerogeradores instalados em suas terras, e passa a receber cerca de R$ 2 mil mensais por aerogerador. Imagine para uma família de cinco filhos, dependente de transferência do governo, o salto na renda que é. Com esse dinheiro ele compra uma moto, um carro, faz reformas na casa, e isso dinamiza a economia. Por outro lado, esse investimento também se reflete na arrecadação municipal. Um parque eólico de 30MW, por exemplo, demanda um investimento em torno de R$ 400 milhões e vai recolher ISS. Em regiões com muitos parques, como em Parazinho, São Miguel do Gostoso, no Rio Grande do Norte, é perceptível a mudança econômica. Além disso, os parques eólicos, quando chegam na região, costumam fazer melhorias em postos de saúde, escolas com projetos ide educação de agricultura. No Rio Grande do Norte, que citei como exemplo, há muito problema com água salubre, e se investiu em projetos para levar água potável a famílias e escolas. Então, o fator multiplicador forte aqui é o do investimento e do arrendamento. Como podemos melhorar isso? Tenho estudado bastante o assunto, até por essa questão de trazer a transformação energética para o conceito ESG (sigla em inglês para ambiental, social e governança). Considero que a forma de fazê-lo é pensar mais nos investimentos em energia renovável como a eólica, a solar, sob essa lógica de desenvolvimento econômico. Ou seja, de que a eólica, além de ser uma matriz renovável, usando recursos competitivos, é uma ferramenta de desenvolvimento, que é algo tão desafiador para o país.


Em vários países desenvolvidos, a pandemia suscitou o desenvolvimento de políticas de retomada que fossem verdes, ou seja, de promoção de crescimento ambientalmente responsável. No caso do Brasil, quais estruturas de incentivo considera que devem ser criadas, ou reformadas, para incluir o setor energético nessa tendência?


O pacote de retomada verde que os países desenvolvidos estão liderando tem uma lógica interessante, voltada a esse efeito de renda que mencionei. Eles têm recursos estatais para isso, e pensam: já que tenho que impulsionar a economia, que seja pelo lado da infraestrutura. E se a infraestrutura se chama energia, vou produzir energia verde, porque preciso me dedicar à transição ao baixo carbono. Então cria-se uma estrutura de incentivo com mil mecanismos. Por que esses países fazem isso? Porque lá fora eles não têm abundância de recursos renováveis, e as energias renováveis tendem a custar mais caro que a fóssil. Então, boa parte do mundo precisa realmente desse esforço para inserir fontes renováveis, e os países desenvolvidos têm dinheiro para essa retomada econômica verde.


O Brasil tem uma lógica diferente, até escrevi um paper sobre isso. Primeiramente, porque o Estado não tem dinheiro para investir, nem capacidade de fazer incentivo fiscal. Mas isso tampouco é tão necessário, porque aqui a tecnologia renovável é muito mais barata que a fóssil. Então, a tarefa do Estado brasileiro é outra, e mais simples de fazer.


Para obter o mesmo benefício que o mundo está se esforçando para conquistar, é preciso criar um ambiente amigável e atrair investimento. E isso não é tão desafiador porque dinheiro tem, e muito, lá fora. Então, O necessário é sinalizar que vai seguir Os investimentos nessa trajetória: um programa de hidrogênio verde, regular a eólica offshore, fazer transmissão adequadamente, no prazo certo. Mas não são necessários subsídios, pois essas energias Jjá são extremamente competitivas, e o fator central é que o leilão regulado é feito por fonte de energia, onde cada fonte tem um preço de acordo à sua característica técnica e econômica. Por exemplo, no leilão que tivemos em setembro, o preço inicial da eólica e da solar era de R$ 191/MWh; da hidrelétrica, R$ 249/MWh (no caso de pequenas centrais e centrais geradoras com outorga e contratos regulados celebrados anteriormente) e, para termelétricas, R$ 365/MWh. O que isso significa? Que estou pagando o preço associado à característica técnica e econômica. Não tem necessidade de subsídio direto. O papel do Estado, nesse aspecto, é ter inteligência de planejamento. Porque ele tem todas as variáveis na mão para fazer uma expansão da matriz altamente renovável, com uma quantidade de recursos mais baratos entrando, e grande interesse dos investidores. Esse leilão contratou 800MW. Sabe qual foi a oferta inscrita na Empresa de Pesquisa Energética (EPE)? Totalizou 94 mil MW de potência instalada (sendo 690 projetos eólicos, somando 22, 8 mil MW). Então, para


o Brasil errar no futuro energético, tem que fazer um esforço enorme. Hoje você embarca a Glasgow participar da COP26 (a entrevista aconteceu dia 27/10). Qual mensagem pretende passar na Conferência do Clima, e o que espera dela?


Estou indo pelo Gwec (Global Wind Energy Council, do qual é vice-presidente). A mensagem que quero deixar é a de que o Brasil é um país rico


em recursos renováveis altamente competitivos. E que, a despeito de tudo, conta com uma regulação estável para o setor de energiasSob essa perspectiva, o Brasil é amigável ao investimento em infraestrutura, é um país de longo prazo. Especialmente em momentos de agonia como os que vivemos, pode-se pensar menos em Brasília e mais em infraestrutura.


Como mencionei, os investimentos em energia eólica são ESG por definição. E temos potencial para liderar a corrida global na transição energética quando falamos de energias renováveis. O Gwec está promovendo uma coalizão global de investimentos em energia eólica, naturalmente com destaque para offshore, porque é este que está precisando de mais cuidado. Lá fora, buscam-se muitos incentivos, políticas fiscais; no Brasil, precisamos do arranjo regulatório, que está próximo de acontecer. O que eu espero da COP é de que saiamos de lá com uma diretriz clara para a precificação do carbono. É ela quem realmente pode levar as economias a alcançar os objetivos estabelecidos, de chegar a 2050 neutras em carbono. Para o Brasil, do ponto de vista da energia, mesmo errando a gente acerta. Mas no resto do mundo não é assim. E minha preocupação não é energia especificamente, porque esta responde por 26% das emissões globais, e temos outros 74% para resolver. Mas essa precificação colaboraria para o desenvolvimento da certificação de energias renováveis, certo? Sim, mas minha leitura é mais macro, no sentido dos mecanismos de incentivo para que o agente econômico tome a decisão acertada também individualmente. Ou seja, se vou comprar um aparelho celular e tenho que pagar pelo carbono, tomarei decisões mais racionais. Considero que a precificação de carbono é quem vai possibilitar essa mudança.

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Metaverso entra em cena como a próxima era da internet (CAROLINA NALIN, 31 de outubro de 2021)

 Metaverso entra em cena como a próxima era da internet

'Bigtechs' e fundos globais aceleram investimentos para que realidade digital surgida nos games alcance o cotidiano

domingo, 31 de outubro de 2021


 

O Globo  / Economia

CAROLINA NALIN


Imagine um mundo onde não há mais fronteiras entre espaço físico e digital. Nas ruas, pessoas poderão usar óculos que executam comandos para filmagem ou projeção de encontros com amigos que estão a quilômetros de distância. Minutos depois, entram no escritório, onde as reuniões não são mais remotas ou presenciais -são um misto dos dois formatos, numa experiência imersiva. Na hora do almoço, dá para curtir um evento musical sem que o espaço físico limite o tamanho do público no local. Bem-vindos ao metaverso.


Parte desse mundo, que pertencia aos filmes de ficção científica, já começa a se tornar realidade -e é a nova fixação das big techs, levando a uma onda de investimentos milionários em start-ups.


Na semana passada, o Facebook anunciou que seu nome corporativo será Meta -a rede social e suas outras marcas, como Instagram e Whatsapp, seguirão chamadas pelo seu nome atual. A empresa já anunciou que vai investir US$50 milhões no metaverso e lançouo aplicativo Horizon Workrooms, para reuniões corporativas. E não está sozinha. Outras gigantes da tecnologia, como Microsoft, Tencent e Nvidia, têm investido pesado em soluções tecnológicas para essa nova realidade digital de experiência imersiva.


Segundo projeções da Bloomberg Intelligence Unit, o metaverso deve movimentar US$ 800 bilhões até 2024. Surgido no mundo dos games, essa realidade digital entrou no mundo corporativo, atraiu marcas e celebridades e fisgou consumidores ávidos por novidades, ainda que só virtuais. A Gucci já vendeu uma bolsa Dionysus, que só existe neste universo paralelo, na plataforma de games Roblox pelo equivalente a R$21, 8 mil (ou 350 mil Robux, a 'moedalocal'). E uma live do avatar do cantor Travis Scott no game Fortnite atraiu nada menos do que 12 milhões de pessoas simultaneamente.


-A próxima onda da internet vai estar ligada ao metaverso. As empresas já entenderam que estar nos games é necessário para que elas vendam seus produtos. A atenção dos consumidores, assim como hoje está nas redes sociais, vai estar nesse ambiente. E, naturalmente, as empresas vão precisar estar lá -diz André Micelli, coordenador do MBA de Marketing e Negócios Digitais da FGV.


5G E'GADGETS' PARA IMERSÃO


O potencial desse novo ambiente alimenta uma onda de financiamentos a start-ups dispostas a ajudar a construir as bases para que o metaverso se incorpore ao cotidiano de bilhões de pessoas, do lazer ao mercado de trabalho. São vários os exemplos. A Magic Leap, 'unicórnio' que produz óculos de realidade aumentada, captou US$500 milhões para a criação de um fone de ouvido. O SoftBank, gigante que é um dos principais financiadores globais para start-ups, criou um fundo que investirá US$ 170 milhões na plataforma de metaverso Naver Z Corp.


POTENCIAL BRASILEIRO


De acordo com dados do CB Insights, há pelo menos 90 start-ups empenhadas em construir o metaverso. Essa indústria abrange desde equipamentos (hardware), passando pelos wearables (dispositivos eletrônicos, como óculos de realidade virtual), softwares de computação 3D e processos computacionais como NFTs (sigla para tokens não-fungíveis, uma espécie de selo virtual de autenticidade de objetos virtuais) e o blockchain (sistema que garante a segurança da operação). Tem ainda a infraestrutura de redes de telefonia móvel com o 5G, cuja velocidade de conexão será determinante para permitira experiência final do ser humano como usuário e criador de conteúdo no metaverso.


O Brasil também está na mira. Como destaca José Gabriel Bernardes, analista da gestora Fuse Capital, o país tem uma grande vantagem nesse mercado: consumidores. De acordo com a consultoria Newzoo, há 94, 7 milhões de gamers no país.


- RE certo que o consumidor brasileiro vai aderir ao metaverso, da mesma forma que já tem enorme aderência às redes sociais, com tempo médio gasto nelas bem maior do que em outros países. E essa mudança de nome do Facebook é mais uma prova de que a digitalização e descentralização estão virando realidade -diz Bernardes.


Segundo Guilherme Zanin, estrategista da Avenue Securities, a abertura de capital da Roblox favorece a atração de capital para essa empreitada. A plataforma de games, com jogos que simulam o metaverso, já tem 48 milhões de usuários ativos por dia, mais do que a população inteira da Espanha ou Canadá. A empresa chegou à Bolsa de Nova Yorkem março deste ano, valendo US$38 bilhões. À mudança de nome do Facebook atraiu para o tema investidores que são clientes da Avenue, diz Zanin:


- Apresentamos a eles empresas como a Fastly, Roblox, Nvidia, AutoDesk e inclusive o Meta ETF (fundo negociado em Bolsa com cerca de US$ 100 milhões em ativos, que reúne especificamente as empresas ligadas ao metaverso). Ninguém quer ficar de fora do que pode ser o futuro.


SEM 'DESLOGAR' O AVATAR


Apesar das discussões sobre a criação do metaverso estarem mais avançadas em países como Estados Unidos e China, há espaço para empresas brasileiras, avalia Renato Valente, sócio do Iporanga Ventures, gestora de venture capital:


- Para funcionar, o metaverso tem que ser algo construído não por alguns, mas por muitos. Se não, serão vários 'silos' e isso não gera valor no longo prazo. As empresas do Brasil podem participar com a construção de soluções para o metaverso ou um espaço, uma realidade dele.


Thiago Toshio, especialista em tecnologia criativa de GoVision e BoomPReal, explica que o principal entrave para a consolidação do metaverso é a interoperabilidade. Esse novo espaço deve ser a união de vários ambientes, permitindo ao usuário transitar entre plataformas sem 'deslogar' seu avatar.


- Tem também a questão do 5G e da computação. Quando falamos de mundo 3D, precisamos de uma renderização, que é o processamento de um objeto nesse ambiente, (que deve ser rápido) para se ter uma experiência em tempo real sem ruídos. Isso depende de ferramentas e padrões de intercâmbio. Quais padrões precisam estar acordados entre as bigtechs ou as primeiras frentes de metaverso serão construídas fragmentadas? Há muito a ser desenvolvido -diz Toshio.


Conrado Leister, diretorgeral do Facebook no Brasil, em entrevista recente, reconheceu que o desenvolvimento desse extenso mundo virtual não é tão simples quanto nos filmes de ficção científica: - Vai levar alguns anos, infelizmente ainda tem muito para desenvolver. Mas acho que vai ser disruptivo e concordo com a visão de que vai ser o novo sistema operacional de verdade. (Colaborou Julia Noia)


Da ficção para a realidade


> O que significa 'metaverso"? Descrito pela primeira vez em 1992, o termo apareceu no livro de ficção científica 'Snow Crash", de Neal Stephenson, e designa um espaço coletivo que converge o mundo real com um espaço virtual. Hoje, tecnologias como realidade virtual (RV) e realidade aumentada (RA) buscam romper a fronteira existente nesses ambientes, e podem ter aplicações em diversos setores - como games, plataformas de streaming, programas para videoconferências no mundo corporativo ou eventos de entretenimento, como shows.


> Como surgiu? O desenvolvimento mais recente deste mundo paralelo digital no qual as pessoas interagem por meio de avatares se deu nos games. Um ensaio, nos anos 2000, foi a onda de jogos virtuais como o Second Life, da Linden Lab. Mas estão surgindo tecnologias capazes de tornar essa ambiência digital, o metaverso, mais abrangente e de amplo acesso simultâneo.


> Quem já domina? Plataformas degames como Roblox e Fortnite já formalizaram sua entrada no metaverso promovendo várias experiências imersivas com milhares de usuários em tempo real. Facebook e Microsoft investem pesado nessa nova fronteira. A experiência imersiva muitas vezes inclui o uso de gadgets, como óculos de realidade virtual.


> Como marcas vão se apropriar do metaverso? Com a aceleração da digitalização de negócios e serviços na pandemia, marcas devem intensificar ações de marketing virtual e até a venda de produtos que só existem on-line, com reflexo na economia real.

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Nelson Freire representava e representa uma outra face do Brasil'

 'Nelson Freire representava e representa uma outra face do Brasil', diz João Moreira Salles

Publicado: 15:55:00 - 01/11/2021


http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/nelson-freire-representava-e-representa-uma-outra-face-do-brasil-diz-joa-o-moreira-salles/524384

O pianista Nelson Freire morreu na madrugada desta segunda-feira, dia 1º, aos 77 anos. Como legado, deixou um trabalho celebrado por seus pares, pela crítica especializada e pelo público. Também teve sua história registrada no documentário Nelson Freire, de 2003, de João Moreira Salles. Disponível no serviço de streaming Globoplay, o longa-metragem acompanha a rotina de turnês e a memória dos primeiros acordes ao piano.


"Os documentários que eu vinha fazendo até então tratavam de desordem, de violência e de desagregação. Tive vontade de filmar o contrário daquilo e Nelson foi o caminho", conta João Moreira Salles em depoimento enviado ao Estadão. 


No filme, há momentos com Nelson Freire filmados em São Paulo, no Rio de Janeiro, na França, na Bélgica e até mesmo na Rússia — são mais de 70 horas de material gravado depois de João acompanhar o pianista por dois anos. 


A seguir, confira o depoimento completo de João Moreira Salles enviado ao Estadão.


"Os documentários que eu vinha fazendo até então tratavam de desordem, de violência e de desagregação. Tive vontade de filmar o contrário daquilo e Nelson foi o caminho. Ele encarnava valores de um humanismo essencial a todo projeto de civilização decente – a transmissão da beleza, o imperativo moral do trabalho bem feito, a recusa a toda vulgaridade e espalhafato.  Um presidente que tira a máscara de um  bebê e força uma criança a fazer uma arma com as mãos é uma imagem verdadeira e poderosa do País. Mas não é a única. Nelson Freire (o pianista, não o filme) representava e representa – nos discos, nos registros dos concertos, na vida discreta que levou – uma outra face do Brasil, o lado capaz de nos salvar. Seu talento não está ao alcance de maioria de nós, mas a honradez, sim". 


segunda-feira, 1 de novembro de 2021

O caos dos passaportes da vacina (Estado de S. Paulo, 1 11 21)

  países do mundo precisam entrar em acordo e criar padrões para certificados de imunização

segunda-feira, 1 de novembro de 2021 


 

O Estado de S. Paulo  / A Fundo

Muitos países não exigiam passaportes para a entrada de estrangeiros antes da 1. º Guerra. Mas, conforme o conflito se espalhou, Estados se apressaram em adotar documentos de viagens para ajudar a manter a segurança de suas fronteiras. Portanto, após o armistício, acumulou-se uma variedade desconcertante de informações a respeito de diferentes nacionalidades, que provocavam mais caos do que clareza nos postos de controle fronteiriço. Mas retornar a um mundo em que as pessoas podiam viajar livremente pelas fronteiras se tornou inimaginável.


Em 1920, a Liga das Nações entrou em ação e projetou um livreto de 32 páginas, com o nome do país na capa e informações pessoais básicas, como local e data de nascimento. Alguns governos reclamaram. À França achava o livreto caro demais para imprimir em comparação ao cartão de frente e verso que utilizava e levou alguns anos para eles se adaptarem. Hoje, porém, todos os passaportes seguem o mesmo modelo. Seja em Heathrow, no Reino Unido, ou no Aeroporto Internacional Moshoeshoe 1, em Lesoto, autoridades são capazes de olhar para um passaporte e ter uma boa noção a respeito de que privilégios desfruta o portador do documento.


Durante a pandemia, um processo similar ocorre. Estados se apressaram para criar passaportes de vacinas para impedir o vírus de atravessar fronteiras - ou as portas de um restaurante ou de uma academia de ginástica. Com frequência as pessoas têm de provar que foram vacinadas, que testaram negativo recentemente ou que tiveram covid e se recuperaram.


Desta vez, os governos não estão sozinhos. A tecnologia abriu as portas para empresas, como IBMe Microsoft, associações de indústria, como a Associação Internacional de Transportes Aéreos, e ONGs, como o Fórum Econômico Global. Três estudantes da Universidade de Ciências Aplicadas da Alta Áustria passaram o verão varando noites para desenvolver um passe que funcione em toda a União Europeia. Eles não têm dinheiro para investir muito em marketing, mas seu aplicativo, o GreenPass, foi baixado 100 mil vezes.


Como durante a 1. º Guerra, a urgência fabricou coordenação. A Índia, que ministrou mais de 1 bilhão de doses de vacina, tem o certificado 'CoWIN', que carrega um QR code, informações de identidade e, confusamente, uma foto não do portador do documento, mas do primeiro-ministro, Na rendra Modi. Na Inglaterra, as pessoas podem escolher entre um QR code no aplicativo ou site do Serviço Nacional de Saúde (NHS) ou uma carta de certificação de seus médicos. Nos EUA, onde o presidente Joe Biden prometeu não criar um banco de dados nacional de vacinação, muitos passes de saúde diferentes, estatais e privados, estão em uso.


BAGUNÇA. O problema é que esses passes não são interoperáveis. A maioria parece igual: um QR code num smartphone ou num pedaço de papel. Mesmo assim, até escanear os códigos pode ser problemático. Diferentes aplicativos de verificação leem diferentes tipos de passes. Uma vez escaneados, os códigos oferecem informações que variam, dependendo do sistema de saúde nacional ou local ou regras de privacidade.


Alguns passaportes de vacina, como o CommonPass, usado em partes dos EUA, compartilham dados relativos a status de vacinação. Outros, como o lançado pelo NHS, mostram apenas um símbolo, uma caixa marcada com um tique ou uma cruz. E as regras não foram combinadas. Durante a elevação no número de infecções, este mês, Israel revogou seu 'passe verde' para 2 milhões de pessoas que ainda não haviam recebido doses de reforço.


Os custos administrativos, comerciais e até psicológicos são óbvios nos aeroportos. O número de viajantes caiu entre 85% e 90%, mas, ainda assim, a chegada ao portão de embarque virou uma corrida de obstáculos mais exigente que nunca. As filas aumentam conforme os passageiros se atrapalham buscando pedaços de papel e QR codes. Autoridades se esforçam para se atualizar em relação a quais vacinas foram aprovadas por reguladores estatais equala validade de cada resultado de teste nos diferentes destinos. Conforme define Corneel Koster, diretor para clientes e operações da empresa aérea Virgin Atlantic: 'A situação está meio selvagem'.


PADRÃO. Passou da hora de padronizar. Ainda assim, desenvolver um passe digital de saúde é mais complicado do que desenvolver um documento de viagem. Passaportes podem revelar idades, mas passes de vacina são portas de entrada para informações pessoais de saúde. Isso assusta as pessoas. Mesmo entre países com índices de vacinação relativamente altos, o apoio aos


Falta de regras.


Os passaportes de vacina existentes, sem um padrão internacional, complicaram o embarque nos aeroportos.


passaportes de vacinação ainda varia, de 52% na Hungria, a 84% no Reino Unido. Na Índia, as pessoas estão acostumadas a compartilhar impressões digitais e escaneamentos de íris, como parte do sistema de identificação biométrica Aadhaar. Ainda assim, muita gente, como a editora executiva Debjani Mazumder, se preocupa com a possibilidade de farmacêuticas e seguradoras terem acesso aos seus registros de saúde. 'Sinto-me como uma cobaia', afirma Mazumder.


Em teoria, a tecnologia digital deveria facilitar a verificação de status de vacinação. Em razão de muitos aplicativos de verificação não conseguirem reconhecer todos os QR codes existentes, porém, muitos verificadores se valem de uma abordagem que Edgar Whitley, da London School of Economics, chama de 'flash-and-go', simplesmente registrando essas imagens. Assim, um mercado clandestino está prosperando.


Oded Vanunu, da Check Point Software Technologies, uma empresa de cibersegurança, fingiu-se de consumidor e conseguiu comprar falsos certificados de vacinação franceses por ? 75 (US$ 87), russos por 9, 5 mil rublos (US$134) e alternativas válidas em Cingapura por ? 250, na dark web e no Telegram, um aplicativo de mensagens. Esses embustes cumprem sua função, mas fracassariam se fossem escaneados adequadamente.


Quando agentes de empresas aéreas, empregadores e funcionários de bares escaneiam QR codes, eles checam duas coisas: a confirmação de que os portadores estão vacinados ou testados contra covid e uma assinatura digital provando que a informação vem de um emissor confiável. A uniformidade entre os passes digitais de saúde requereria um amplo acordo a respeito de qual informação exata de saúde incluir e como qualificá-la e empacotá-la.


Isso deveria ser relativamente fácil. Em agosto, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou um guia com as recomendações mínimas de dados para um certificado. O nome e a data de nascimento do portador, mais a marca e o número do lote da vacina são considerados necessários. Identificar quem ministrou a inoculação o que vem incluído em alguns passes -, não.


O mais complicado é criar um sistema unificado de checagem de assinaturas digitais de autoridades de saúde. Criar um repositório de todas as assinaturas confiáveis é uma tarefa cara e carregada de tensão política. Países com sistemas nacionais de saúde pública, como o Reino Unido, possuem apenas um emissor. Mas, nos EUA, há cerca de 300, incluindo governos estaduais, hospitais e farmácias.


CONFIANÇA. Sem uma maneira confiável de verificar certificados internacionalmente, até a mais avançada tecnologia falha. George Connolly, diretor da OneLedger, a firma que desenvolveu o OnePass, um passaporte de vacinação com base em blockchain. Ele diz que o aplicativo acessa dados de apenas cerca de 20 jurisdições.


Então, ele faz com que firmas terceirizadas obtenham passes de saúde de outros lugares, telefonando e mandando e-mails para autoridades sanitárias. Dakota Gruener, diretora da id2020, uma parceria público privada com foco em identificação digital, virou os olhos. 'Uma blockchain não é necessária', afirma. 'A blockchain é apenas uma distração. '


Os avessos à tecnologia têm motivos para se orgulhar. Conforme diz Albert Fox Cahn, do Surveillance Technology Oversight Project, um grupo de defesa de direitos, 'há tanto dinheiro sendo gasto para instalar essas lindas e brilhantes novas cercas de metal em torno de nossa sociedade, ao mesmo tempo em que as cercas de madeira ainda cumprem bem sua função. '


Pedaços de papel assinados por médicos, como o 'cartão amarelo' da OMS, têm sido suficientes para registrar imunizações há décadas. Eles são mais inclusivos globalmente, dado que muita gente em países pobres não tem smartphones. A julgar pelos preços do mercado clandestino, os passes de papel não seriam tão mais fáceis de falsificar. Falsificações de certificados de vacina em papel supostamente emitidos pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA saem por US$150 no Telegram, mais caro do que algumas alternativas digitais.


ATRIBUIÇÃO. O maior impedimento para passaportes de vacina não é a tecnologia, mas a geopolítica. Seria necessário uma organização sofisticada em termos de saúde, tecnologia e diplomacia, para fazer os países concordarem com padrões globais. Isso parece uma função óbvia da OMS. Enroscada na rivalidade entre EUA e China, porém, a organização tem sido atacada por todos os lados em razão da maneira com que tem lidado com a pandemia. A respeito dos passes digitais, a OMS se atrapalhou. Mesmo tendo publicado extensos documentos descrevendo como os passaportes de vacina deveriam ser projetados, a entidade insiste que provas de vacinação não deveriam ser exigidas de viajantes internacionais enquanto a distribuição de vacinas estiver tão concentrada nos países ricos.


Fundamentalmente, a OMS rejeitou se envolver na validação e verificação dos documentos. Manter um registro de signatários confiáveis requerer uma grande equipe de funcionários. Também exige escolhas políticas, como a respeito de reconhecer signatários como Palestina ou Afeganistão - e quais vacinas são válidas. A OMS também deveria ter de adotar algum tipo de ação quando algum Estado violasse as regras. Carmen Dolea, diretora do Secretariado Internacional para Regulações de Saúde, da OMS, diz que essa tarefa vai além de suas atribuições. 'Há questões de responsabilização', afirma.


Ainda assim, mesmo que de maneira destrambelhada, o mundo parece estar convergindo para alguns padrões e tecnologias. Os padrões da UE para certificações digitais relativas à covid, por exemplo, também estão sendo usados na Turquia a na Suíça. Os padrões indianos foram adotados no Sri Lanka e nas Filipinas.


O próximo passo, afirma a OMS, é os países negociarem acordos bilaterais ou regionais. Negociações recentes entre Reino Unido e Índia ilustram quão bagunçado esse processo pode ser. Os britânicos se recusaram a aceitar os certificados indianos COoWIN, em parte porque eles não informam dados de nascimento precisos do portador. Nova Délhi incluiu apenas o ano de nascimento das pessoas, porque muitos indianos não sabem o dia exato em que nasceram.


Uma escalada recíproca em restrições a viajantes manteve famílias afastadas e adiou viagens de negócios por semanas, antes de um acordo ser alcançado este mês. A Índia acrescentou as datas precisas de nascimento no registro, considerando que a maioria das pessoas capazes de pagar por viagens internacionais conhece a data de seu aniversário.


Alguns especialistas ainda se consideram capazes de resolver problemas de má governança com mais tecnologia. Nandan Nilekani, cofundador da Infosys, uma gigante do setor da tecnologia, e força-motriz por trás do sistema indiano Aadhaar, está colocando suas esperanças em 'adaptadores' capazes de traduzir diversos tipos de passes entre si.


SOLUÇÕES. Criar os adaptadores corretos seria como encontrar uma maneira de poupar os clientes de terem de carregar cartões American Express, MasterCard e Visa caso as lojas exijam tipos específicos de pagamento. Mas a tecnologia que constrói as pontes entre os passes não resolveria o problema que os emissores teriam em confiar uns nos outros e os usuários teriam de confiar nos adaptadores que acessarem seus dados de saúde.


Pode ser que, das cinzas da pandemia, o mundo vislumbre um passaporte digital de vacinação consistente para substituir o cartão amarelo. Mas, enquanto a covid ainda estiver matando, disputas em torno de QR codes e assinaturas digitais não passarão de um tema secundário - ou uma distração. Passaportes de vacinação jamais acabarão com o vírus. Somente as vacinas o farão. Mais de três quartos das populações de Dinamarca, Cingapura e Catar estão completamente vacinados, segundo a Universidade Johns Hopkins, enquanto menos de 1% de etíopes e ugandenses estão plenamente inoculados. Algum dia, os passaportes de vacina ajudarão a manter a paz. Neste momento, porém, o mundo deve focar em vencer a guerra.


TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL O 2018 THE ECONOMIST NEWS PAPER LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW. ECONOMIST. COM


Descentralização Nos EUA, onde Joe Biden prometeu não criar um banco de dados nacional, muitos passes de saúde diferentes estão em uso.


O maior empecilho para a implantação global dos passaportes de vacina não é a tecnologia, mas a geopolítica.


Pode ser que, das cinzas da pandemia, o mundo vislumbre a criação de um passaporte digital de vacinação confiável e consistente.


Obstáculos


O mais difícil é criar um sistema de checagem de assinaturas digitais de autoridades de saúde.

sábado, 30 de outubro de 2021

Roberto Giannetti Isto É Dinheiro / Entrevistas, 29 de outubro de 2021

 ENTREVISTA - ROBERTO GIANNETTI DA FONSECA, ECONOMISTA

sexta-feira, 29 de outubro de 2021 


 

Revista Isto É Dinheiro  / Entrevistas

Beatriz Pacheco


"Com a quebra da confiança, o custo do Auxílio Brasil é maior que o benefício" Para Giannetti, ao extrapolar o teto de gastos, o programa social do governo afasta investidores e provoca um ônus econômico que pode comprometer a recuperação do País no pós-Covid.





O economista Roberto Giannetti da Fonseca circula por eventos e reuniões com lideranças políticas e empresariais como figura costumeira. A experiência acumulada na proposição de uma agenda econômica nacional o credencia como uma voz de peso no mercado. Além da atuação no setor privado, foi secretário-executivo da Câmara do Comércio Exterior (Camex) no governo de Fernando Henrique Cardoso e diretor de relações internacionais e comércio exterior na (Fiesp). Em entrevista exclusiva à DINHEIRO, Giannetti se ressente dos anos que o transformaram em testemunha do fracasso da economia brasileira como potência internacional. Como saída, defende uma agenda reformista diferente da que vê hoje no governo de Jair Bolsonaro. “O cerne das reformas era reduzir privilégios, reorganizar a estrutura administrativa e enxugar o Estado, mas nada disso está sendo feito”, disse. “Precisamos de um novo governo com capacidade para realizar o que ficou para trás.” Por anos ligado ao PSDB, e integrante da equipe que formulou o plano de governo da candidatura de Geraldo Alckmin à presidência em 2018, ele acredita que apenas a união partidária ao centro levará `a escolha de um candidato único para a terceira via.





DINHEIRO – O que a ameaça ao teto de gastos representa para a economia brasileira?


ROBERTO GIANNETTI DA FONSECA – Furar o teto é desmoralizar o equilíbrio fiscal do qual o País depende para atrair investidores. Estamos combatendo a irresponsabilidade fiscal desde 2001, e a figura do teto de gastos formulada no governo de Michel Temer era uma garantia de respeito a esse princípio. Há alternativas para que isso não fosse feito, como a diminuição de despesas e condução de uma reforma administrativa que reduza os desperdícios com o dinheiro público.





O senhor é defensor das reformas. Que pontos faltam ser endereçados pelo governo? Precisamos de uma reforma política imediata para acabar com a reeleição e reduzir o número de partidos.





Por quê? A estrutura que se consolidou no Brasil pulveriza a classe política e dificulta a governança. O nosso sistema legislativo e regulatório também é ultrapassado. Estamos quase no segundo quarto do século 21 e não conseguimos criar um Estado menor e mais eficiente. A sociedade não tem o retorno do que investe por meio dos impostos. Conquistaríamos isso com boas reformas administrativa e tributária.





Como avalia as reformas propostas? A essa altura, a reforma tributária já se trata de um remendo, longe dos objetivos que se buscavam para simplificação e desoneração. Na verdade, segue no sentido contrário. Ela traz medidas questionáveis do ponto de vista constitucional e que podem criar novos litígios. Além disso, tem no seu bojo uma política conflitiva ao manter a disputa do governo federal com estados e municípios pelo ICMS (arrecadação estadual) e pelo ISS (arrecadação municipal).





E a administrativa? Seria melhor não aprovar a reforma que foi apresentada, que deve piorar o cenário atual. O cerne das reformas era reduzir privilégios, reorganizar a estrutura administrativa e enxugar o Estado. Mas nada disso está sendo feito. Precisamos de um novo governo com capacidade para realizar o que ficou para trás.





Que perfil agradaria o mercado para as eleições presidenciais em 2022? Precisamos de um governo com perfil conciliador e reformista para transmitir confiança ao mercado. O desemprego, a inflação e a alta dos juros são as consequências econômicas da perda de credibilidade e de confiança do atual governo. Precisamos de um governante que combine os papéis de bom empresário e estadista.





Que nomes do cenário político atual atendem a esse perfil? Antes do nome de um candidato, precisamos de um programa. Pelo menos seis partidos de peso do centro precisam chegar aos pontos de convergência para desenvolver e aderir a um programa, para que então se decida quem vai implementá-lo. Mais do que isso, é necessário montar uma equipe qualificada para apoiar o andamento dessa agenda. Esse projeto ainda precisa ser amplamente discutido com a sociedade. Então, é preciso avançar ou não haverá mais tempo.





Os partidos de centro ainda titubeiam em abrir mão de candidaturas próprias. Conseguiriam se unir em torno do programa único? Se fracionarmos o centro político, os dois extremos irão para o segundo turno. Hoje, temos como certo apenas que, no curto prazo, a situação econômica no País só tende a piorar. Por outro lado, temos bons institutos no Brasil com capacidade para estruturar um programa de governo com facilidade. Não é necessária uma agenda detalhada e sim contundente e enfática sobre os interesses comuns.





Como o senhor avalia a proposta do programa Auxílio Brasil? Com a quebra da confiança, o custo do Auxílio Brasil é maior que o benefício. O programa aumenta o ônus do governo, que já tem uma dívida pública que ultrapassa 80% do PIB. O mercado vê um desgoverno quando o presidente faz um anúncio que não foi previamente conversado com o Ministério da Economia. Precisamos do auxílio para as quase 15 milhões de famílias brasileiras em extrema pobreza [conforme dado do Cadastro Único do governo federal], mas sem responsabilidade fiscal, estamos gerando inflação. Um tiro no pé. Além de furar o teto de gastos, a expectativa de permanência dessa política é um erro.





Há um esvaziamento do papel do ministro Paulo Guedes no governo, então? O ministro Paulo Guedes assumiu o posto com um discurso liberal e objetivos grandiosos, como acabar com o déficit primário em até dois anos e reduzir a dívida pública. Não fez nada do que foi prometido. Ele caiu nesse vazio pela própria incompetência em conduzir a agenda econômica e pelas interferências do presidente. Bolsonaro só apoia Guedesem política econômica e eleitoreira. O foco do governo é a reeleição em 2022, e a política econômica responsável ficou de lado. Tanto que os melhores servidores do Ministério da Economia já abandonaram o barco. O mercado não acredita mais no ministro Paulo Guedes, que passou a ser até motivo de piada.





E qual seria o caminho para recuperação econômica no País? Pelo ciclo virtuoso da economia, começando pela atração de investimentos para gerar mais empregos. A elevação da renda puxa o consumo, que aumenta a arrecadação. Para começar a fazer essa roda girar, é preciso ganhar a confiança do investidor com regras seguras e estáveis. A insegurança provocou a saída do capital e emperrou a expansão dos negócios no País. Além disso, não temos mais investimentos em ciência, o que leva à fuga de cérebros. No fim, não há estímulo no ambiente econômico. Estamos desorientados e atravessando um mar revolto com um governo que gera conflitos todos os dias.





Existe perspectiva para o Brasil recuperar o seu papel no cenário econômico internacional? Com uma taxa de poupança tão baixa, não há investimentos suficientes para o Brasil crescer no ritmo que precisaria para recuperar o atraso. Podemos até ver um “voo de galinha” na economia, mas o elemento fundamental para sustentar o crescimento econômico é aumentar as taxas de poupança e de investimento.





Que caminhos podem levar à sustentação desse crescimento? O Brasil é um país arcaico para o comércio exterior. Precisamos fazer a abertura econômica para que a fatia de importações e exportações salte dos atuais 18% para 30% do PIB brasileiro em até dez anos.





E o que é decisivo para essa agenda andar? É crucial que seja precedida por uma arquitetura de políticas públicas para aumentar a competitividade das empresas no País. A agenda do comércio exterior passa por mais investimentos em educação e na indústria. Há 35 anos, Brasil, China e Coreia do Sul estavam no mesmo patamar como potências para abertura econômica. À essa época, cometi o maior erro da minha vida, em entrevista ao jornal britânico Financial Times, quando apostei no Brasil como o país que teria a posição de liderança nessa corrida. É uma angústia minha ter visto o País perdendo posição até cair para a lanterna.





O cenário logístico no País também afeta a competitividade no mercado? A logística no Brasil não é boa porque não há segurança jurídica ou desoneração tributária sobre investimentos. O encarecimento da estrutura logística descarrega o custo nas tarifas, o que prejudica todo o entorno. À medida que se organiza uma logística mais rentável, a desoneração se paga pela externalidade da economia, em novas indústrias e em um cenário mais competitivo.





Como a agenda de privatizações afetou o setor logístico no País? Há expectativa para melhoria, mas o próximo governo deve trazer uma visão prioritária para a infraestrutura do setor, que é um caminho para o desenvolvimento. A renovação das concessões também é fundamental para a continuidade dos investimentos na rede e integração da malha.





A agenda ambiental também tem peso para as negociações no comércio internacional. Qual é a situação do Brasil nesse cenário? O que aconteceu na última década, especialmente nos últimos três anos, fez com que a nossa promessa como potência ambiental fosse para o espaço. O estímulo à grilagem e ao desmatamento colocou o País como vilão no mercado internacional. Tínhamos tudo para liderar o mercado de descarbonização. A economia verde só assumiu protagonismo aqui por imposição da sociedade. A agenda ESG foi puxada pelas empresas. O papel do governo nesse cenário não está sendo cumprido, o que precisa mudar urgentemente.





Qual é o sentimento comum no mercado hoje? Há desesperança, mas não desistência ou abandono de forma generalizada. Só não podemos continuar em silêncio com os desvarios e equívocos que estamos cometendo. O governo é um retrato da sociedade. Se estamos insatisfeitos com o estado a que chegamos, precisamos mudá-lo.

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

China, protagonista em Glasgow?(FSP, 29 10 21)

 China, protagonista em Glasgow?

Pequim não vê contradição entre ser maior emissor e liderar transição verde

sexta-feira, 29 de outubro de 2021 


 

Folha de S. Paulo  / Mundo

Tatiana Prazeres


A bola está no campo da China. Foi assim que, em mais de uma ocasião, o britânico Alok Sharma, que presidirá a COP26, tratou das chances de sucesso do encontro em Glasgow.


O país asiático é o maior emissor de CO2 do mundo, com cerca de 28% do total. Matematicamente, sem a China, não há acordo climático global que justifique esse título.


Mas Pequim pretende ser protagonista em Glasgow pelos bons motivos. O país quer aproveitar a COP26 para dar credibilidade à pretensão de liderar a transição climática global.


Glasgow terá inevitavelmente uma etapa de concurso de beleza, em que os países se empenham em sair bem na foto, ressaltando as maravilhas que fazem pelo clima (enquanto o planeta esquenta).


Para esse momento, a China tem o discurso pronto. Apenas neste ano, lançou o maior mercado de crédito de carbono do mundo e se comprometeu a parar de financiar usinas a carvão no exterior. O país está à frente em energia eólica e solar. Investe em hidrogênio verde.


Além disso, a China sabe que precisa de energia nuclear. Enquanto muitos hesitam em tomar esse rumo, Pequim pisa no acelerador, com 11 usinas nucleares em construção hoje. Sairá na frente. Outros devem segui-la, porque a transição climática global dificilmente prescindirá de energia nuclear.


Glasgow terá também seus momentos de ringue de boxe, em que países se acusam mutuamente de não fazer o bastante pelo planeta. O problema é sempre o outro. Aqui, a China também tem protagonismo, sendo criticada por quem lhe cobra mais ambição, sem deixar de apontar o dedo para quem historicamente emitiu mais, ou para quem hoje tem maiores emissões per capita.


Para se cacifar como líder, no entanto, a China teria que ser capaz de assumir mais compromissos climáticos e de dar credibilidade às suas metas. A pergunta é se Pequim poderia antecipar prazos para começar a reduzir emissões ou atingir a neutralidade climática, previstos para 2030 e 2060, respectivamente.


Além disso, a postura da China nas negociações de Glasgow importa. Sobre a mesa estão principalmente questões ligadas a financiamento para ajudar países em desenvolvimento na transição climática, além de parâmetros para um mercado internacional de carbono. O risco é o de que negociadores -de diferentes países- recorram à lógica clássica: oferecer quase nada e querer muito dos demais.


Se for assim, Glasgow será palco desse misto de teatro e jogo de pôquer, em que os países fazem de conta que realmente estão negociando, mas no fundo blefam para ver se o outro lado pisca. No mundo real, todos perdem. A China precisaria ajudar a evitar esse cenário.


As ambições chinesas de liderança se beneficiam das fragilidades da posição americana. Há forças no Congresso carcomendo as pretensões climáticas de Joe Biden. Além disso, a inconsistência da posição dos EUA ao longo do tempo abala sua credibilidade na agenda do clima. Com o trumpismo à espreita, o negacionismo segue preparado para voltar -e o mundo sabe disso.


A China tem lá seus pés de barro. Não apenas pelos níveis altos de emissão, mas porque a atual crise energética no país evidencia a dependência brutal em relação ao carvão e põe em questão a credibilidade das metas chinesas.


Cálculos geopolíticos também tendem a enfraquecer as ambições ambientais chinesas (e americanas), em prejuízo do planeta, mas também de uma posição de liderança da China nessa agenda.


Em 2017, a China já dizia querer ser "participante, contribuidora e líder" nessa agenda. Para Pequim, não há contradição entre ser o maior emissor de CO2 do mundo e liderar a transição climática global.