domingo, 27 de dezembro de 2020

O resgate da humildade(Época, 25 12 2020)

 DOS EDITORES - O RESGATE DA HUMILDADE

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020 

 

Revista Época  / Dos Editores

Cenário Político-Econômico: Colunistas

Da Redação


Das transformações que presenciamos ao longo dos últimos anos trazidas pela tecnologia, é inegável que a maioria nos beneficia como indivíduos e como grupo. Dos avanços da medicina à maior eficácia dos transportes, da educação à distância ao amplo e facilitado acesso à informação, das conexões viabilizadas pelas redes sociais à praticidade das compras on-line, que nos fazem ganhar tempo. Teria o homem encontrado tão rapidamente uma vacina eficaz para uma doença tão mortífera como a Covid-19 sem servir-se dos aparatos tecnológicos que criou? Dificilmente.


Ainda assim, como é possível que, diante da genialidade humana ao lidar com a inovação, consigamos a façanha de usar esse patrimônio tecnológico contra nós mesmos? O acesso quase irrestrito à informação, viabilizado pela internet, aflorou em muitos de nós um sentimento de autossuficiência que não encontra respaldo na realidade. Valendo-se de informações nem sempre verdadeiras ou manipuladas nas redes, grupos de pessoas vêm contestando a ciência, a medicina, a política, a Justiça, a imprensa e outras áreas de expertise, como se fossem senhores da razão e da verdade. O ápice desse estado de coisas é aquilo a que assistimos hoje: grupos sem qualquer conhecimento técnico ou formação adequada, incluindo um chefe de Estado, lançam mão de informação disponível na internet para questionar o uso de vacinas desenvolvidas pelos maiores laboratórios do mundo com o objetivo de impedir a propagação do vírus mais mortal de que se tem notícia nos últimos 100 anos.



O cientista político Tom Nichols, que fez carreira acadêmica em Harvard e nas escolas militares americanas, vem tratando desse fenômeno há alguns anos. Ele destrincha, em dois livros publicados em 2016 e 2021, The death of expertise (A morte da expertise) e Our own worst enemy (Nosso próprio pior inimigo), ainda não lançados no Brasil, como o narcisismo move as pessoas a negarem o conhecimento estabelecido. Nichols argumenta que a internet acaba criando uma falsa ilusão de igualdade — pelo fato de termos acesso às informações contidas ali, seríamos todos igualmente capazes de processá-las, não importando a formação de cada um. Essa onipotência é um bálsamo para egos frágeis. Acrescida de ressentimentos sociais e econômicos, acaba resultando no que vemos hoje: democracias ameaçadas por seus próprios cidadãos, que, insatisfeitos com a política, procuram soluções mágicas, rápidas e individualistas para suas angústias.


O narcisismo acrescido do imediatismo é, segundo Nichols, a chave do problema. Inspirados pela rapidez das redes em prover respostas a qualquer pergunta, muitos acreditam que há sempre uma solução simples e de fácil compreensão para tudo. E ainda concluem que, se algo é muito técnico ou difícil de entender, possivelmente está errado. Em sua tese, Nichols não quer livrar as elites do conhecimento de sua responsabilidade de prestar contas sobre erros e acertos. Mas joga luz sobre o que o desrespeito à expertise pode causar.


Infelizmente, a solução para o problema não está somente na criação de leis que responsabilizem cada um pelo mau uso da informação na internet. Está, sobretudo, na capacidade do ser humano de reconhecer que nem tudo sabe, que não entende de todos os assuntos e que, em determinados casos, não será capaz de aprender. Ou seja, a boa e velha dose de humildade.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

É a conexão 5G. Veja o que está em jogo(Celso Ming, Estado, 25 12 2020)

CELSO MING - É a conexão 5G. Veja o que está em jogo


sexta-feira, 25 de dezembro de 2020


 

O Estado de S. Paulo  / Economia


Mesmo cercada de polêmica, vem aí a conexão 5G. Esse não é um assunto para nerds, como parece. Então, convém entender melhor do que se trata.


Essa nova tecnologia promete produzir importantes melhoras na qualidade da conexão de internet, que vão acelerar o processo de digitalização da sociedade. Os trâmites para adoção do sistema no Brasil seguem a passos de tartaruga, mas alguns avanços aconteceram há duas semanas.


Um deles é de natureza técnica. Foi a decisão da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) que reservou a faixa de 6 giga-hertz (GHz) para o uso exclusivo de conexões Wi-Fi. Essa faixa vai funcionar como auxiliar e contribuir para que os celulares dos consumidores disponham da mesma velocidade obtida pelas operadoras de telefonia com a internet de banda larga, aquela contratada em casa. Hoje, as redes Wi-Fi podem manter conexões nas frequências de 2,4 e 5 GHz, que se encontram sobrecarregadas e tendem a prejudicar a qualidade de cobertura e de sinal pretendida com a nova geração de conexão móvel.


O 5G promete importantes vantagens para o consumidor: uma velocidade de conexão dez vezes maior do que a do 4G; continuidade de sinal e mais acesso, com diminuição das áreas de sombra (locais onde as redes apresentam ausência do sinal, como elevadores, túneis e áreas de difícil acesso); e diminuição do tempo de resposta da conexão (latência) entre um dispositivo e a rede.


A tecnologia já está em operação comercial em mais de 40 países, entre os quais Coreia do Sul, Estados Unidos, China, Uruguai e África do Sul.


Por causa de suas características, espera-se que o 5G traga benefícios que favoreçam a economia digital e permitam avanços tecnológicos que intensifiquem a criação de cidades inteligentes por meio de soluções de IoT (Internet das Coisas, na sigla em inglês) e circulação de veículos autônomos. Para ter acesso aos avanços pretendidos pela nova geração de rede móvel, o Brasil ainda precisa fazer investimentos em infraestrutura e realizar o leilão das frequências que serão utilizadas no 5G - evento previsto para o fim do primeiro semestre de 2021.


São iniciativas que ficarão majoritariamente a cargo de capitais privados. Esses investimentos não terão capital de recuperação. Ou seja, as empresas do setor não poderão revender os equipamentos antigos para ajudar a cobrir os custos da substituição. E a incorporação do sistema no Brasil dependerá da demanda ou da oferta de serviços mais baratos, aponta Maurício Pimentel, professor e gerente de inovação da Empresa de Tecnologia da Informação e Comunicação do Município de São Paulo (Prodam).


Pimentel adverte que o poder público deve ter uma visão estratégica do desenvolvimento do 5G no Brasil e se aliar à iniciativa privada de maneira a não restringir o acesso apenas aos centros urbanos, como acontece hoje com a conexão 4G. Nesse sentido, os avanços na economia digital a se tem obtidos na agricultura poderão ajudar nesse processo de interiorização.


O outro tema vem sendo mais comentado na imprensa. Trata-se de superar a disputa geopolítica com os Estados Unidos no fornecimento de equipamentos pela China. O presidente Bolsonaro tem feito de tudo para fazer o jogo dos Estados Unidos e barrar o acesso do mercado brasileiro aos equipamentos da chinesa Huawei. O presidente Trump quer banir a Huawei sob alegação de que seus equipamentos embutem instrumentos de espionagem. A propósito, nada garante que equipamentos de outra procedência sejam isentos desse problema.


O Congresso Nacional criou recentemente grupos de trabalho para acompanhar as decisões do governo sobre o tema. O objetivo é evitar que decisões arbitrárias dificultem a competitividade nas telecomunicações, uma vez que a Huawei é responsável por parte das atuais redes móveis de 4G e 3G no Brasil. E há a questão de custos: a infraestrutura chinesa tende a ser mais barata.


Arthur Barrionuevo, ex-conselheiro do Cade e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), não vê sentido em banir a chinesa Huawei no fornecimento de equipamentos de 5G para o Brasil: "Ainda não se provou nada contra a empresa e, apesar de a discussão sobre o controle de dados e espionagem ser fator relevante, todo mercado, e não só a Huawei, deveria ser submetido aos mesmos crivos nessa questão". / com PABLO SANTANA



terça-feira, 22 de dezembro de 2020

A entrega das empresas de internet para o Brasil(FSP, 22 12 2020)

A entrega das empresas de internet para o Brasil

Digitalização de restaurantes, mercados e parceiros abre portas para o futuro

terça-feira, 22 de dezembro de 2020 - 05:17


 

Folha de S. Paulo  / Tendência e Debates


Fabricio Bloisi


Pandemias, assim como guerras, geram horror, medo e incerteza. Provocam também mudanças sociais profundas e saltos tecnológicos. Se, por um lado, a onda de Covid-19 teve como efeito colateral empurrar as empresas tradicionais para a digitalização, por outro, para o iFood, que já nasceu digital, o efeito foi diferente. Deu-nos a oportunidade de usar tecnologia e a nova economia para contribuir para a sociedade e para o desenvolvimento do país.


Num momento em que o Brasil e o mundo discutiam se a estratégia era salvar vidas ou a economia, o iFood foi nas duas direções. Atendeu com comida e compras quem estava em isolamento e ajudou a manter vivos mais de 200 mil restaurantes, na imensa maioria pequenos e médios negócios. Também gerou renda para os cerca de 150 mil entregadores que são nossos parceiros Brasil afora.


Fundei minha primeira empresa de tecnologia há 20 anos, na pré-história da internet, produzindo mensagens SMS em uma pequena sala. Em 2014, quando investimos no iFood, éramos uma startup com 20 pessoas, e o negócio de delivery de comida era algo restrito à pizza do fim de semana.


Cerca de 85% dos restaurantes brasileiros são empresas familiares e, para a maioria, a ideia de fazer entregas via aplicativo parecia distante. Da noite para o dia, o delivery passou a ser sua única fonte de receita viável. Investimos cerca de R$ 200 milhões em capital próprio para que esses restaurantes se mantivessem vivos. Devolvemos parte da nossa receita a eles, zeramos a comissão de pedidos "para retirar" e, em parceria com o Itaú, diminuímos o prazo de repasse dos pedidos de 30 para 7 dias, injetando mais de R$ 5 bilhões em capital de giro no setor.


Além dos restaurantes, o iFood investiu, desde março, cerca de R$ 100 milhões em apoio aos nossos entregadores, e até hoje os que são dos grupos de risco estão em casa, recebendo. Doamos mais de quatro milhões de itens de proteção, como máscaras e frascos de álcool em gel.


Com a mudança de hábito, as pessoas passaram a lembrar do iFood em todas as horas do dia. O número de pedidos, naturalmente, cresceu muito. No dia da Black Friday de 2020 (27 de novembro), entregamos 2,5 milhões de pedidos e chegamos a quase 50 milhões de pedidos por mês. "Isso deve ter gerado um lucro astronômico", é o que sempre ouço. Na verdade, nosso prejuízo nos últimos dois anos supera R$ 1 bilhão.


A coragem de investir faz parte do negócio: nosso objetivo é de longo prazo, e nossa aposta no Brasil continua. Agora, com o Pix, vamos diminuir custos dos restaurantes e mercados, apostamos ainda num sistema de gestão sem taxas e na comunicação do restaurante com os seus clientes também sem custos, entre outras iniciativas.


Esse investimento volta na forma de satisfação de clientes e parceiros. Em dezembro, recebemos o mais importante prêmio de qualidade de atendimento, o Empresa Super Campeã do Reclame Aqui.


Temos orgulho também do nosso papel social. Doamos mais de 1.500 toneladas de alimentos, beneficiando 570 mil pessoas, e fomos reconhecidos pela ONU com a ONG Ação da Cidadania.


Neste cenário, as empresas de delivery que prestam bom serviço são uma mola propulsora de crescimento e geração de renda para os restaurantes e para toda sociedade. Hoje somos uma empresa com 3.000 pessoas, 1.000 delas trabalhando em tecnologia e inteligência artificial para melhorar nossa capacidade de prever que tipo de comida um cliente vai querer e como entregá-la rapidamente.


Há percalços, claro. E, com eles, aprendizados. Durante a pandemia, os holofotes da sociedade e da opinião pública foram jogados sobre empresas como o iFood â?"e esse tem sido um exercício de humildade para entendermos melhor nosso papel e nossos desafios.


A economia digital ainda gera muita angústia mundo afora e vivemos uma polarização como nunca antes, o que acaba resultando em narrativas distorcidas, algumas vezes motivadas por desconhecimento, outras por má-fé. Sabemos, porém, que quanto mais investirmos, maior será a percepção de que essas empresas cumprem o fundamental papel de fomentar o empreendedorismo e a tecnologia no Brasil.


A meta do iFood, antes, durante e depois da pandemia, será ajudar outros milhões de restaurantes, mercados e parceiros entregadores a se digitalizarem, abrindo as portas para o futuro e gerando riqueza para todo o ecossistema â?"e essa meta nós vamos entregar.


[...] Cerca de 85% dos restaurantes brasileiros são empresas familiares e, para a maioria, a ideia de fazer entregas via aplicativo parecia distante. Da noite para o dia, o delivery passou a ser sua única fonte de receita viável. (...) As empresas que prestam bom serviço são uma mola propulsora de crescimento e geração de renda

sábado, 19 de dezembro de 2020

Mortos da guerra da vacina(Fernando Reinach, Estado, 19 12 2020)

 FERNANDO REINACH - Mortos da guerra da vacina

COLUNISTAS

sábado, 19 de dezembro de 2020


 

O Estado de S. Paulo  / Metrópole


A ambição política transformou a vacinação numa guerra que mata pessoas e instituições. De um lado Bolsonaro com uma vacina de baixa eficácia (AstraZeneca/Oxford), ainda não aprovada, faz de tudo para boicotar o processo de vacinação, começando pela afirmação que não vai se vacinar. Do outro o governador de São Paulo, com uma vacina de eficácia desconhecida (Sinovac/Butantã), deseja se transformar no protagonista do esforço nacional para vacinar a população. Ambos têm o mesmo objetivo: a caneta presidencial em 2022. Salvar vidas se tornou um meio, não um fim. Essa luta resultou em duas grandes distorções, uma criada por cada candidato.


A primeira é a ideia de pedir às pessoas que serão vacinadas que assinem um termo de responsabilidade. Essa exigência é uma das maneiras mais eficientes de sabotar a vacinação. E a desculpa dada pelo governo federal é de que os fabricantes ainda não têm certeza absoluta de sua segurança e querem garantias do governo que não serão processadas. O que esquecem é que essa pequena incerteza é exatamente a razão pela qual até agora, no mundo todo, os fabricantes pediram somente a liberação emergencial, e não definitiva. Pedir a emergencial significa dizer: "Anvisa, eu admito que ainda não terminei os estudos e por isso não posso assumir total responsabilidade por essa vacina, mas dada a situação da pandemia acredito que os benefícios são muito maiores que os riscos e estou pedindo um registro de uso emergencial, você concorda?" Se a Anvisa, após analisar os dados, concorda, ela emite um registro. Esses registros emergenciais garantem que a vacinação possa ser monitorada nos primeiros meses, e o uso pode ser revogado, se necessário. É provável que algumas vacinas, como a da AstraZeneca, sequer consigam receber autorização emergencial das agências regulatórias mais rígidas. A Pfizer já obteve essa autorização em diversos países e tudo indica que assim será com a Moderna.


Solicitar essa assinatura da população demonstra que o governo federal não conhece o por quê da existência da Anvisa, do FDA e das outras agências regulatórias. Os órgãos regulatórios existem para avaliar o benefício de uma droga ou vacina, pesar esses benefícios contra os riscos e, com base na análise científica dos dados, garantir para a população que pode (ou deve) tomar a vacina. A diferença é que para o registro definitivo os estudos precisam estar absolutamente terminados.


Sem pandemia, e milhares de mortes todos os dias, nenhuma vacina receberia tão cedo uma autorização emergencial. Pedir a assinatura desse termo de consentimento equivale a abrir mão de uma das funções do Estado, que é garantir à população a segurança e a eficácia da vacina. É tornar a Anvisa irrelevante e se eximir de qualquer responsabilidade.


A segunda aberração veio de São Paulo. Sem ter divulgado a eficácia da Coronavac (que pode até ser muito eficaz), o governo de São Paulo decidiu, juntamente com a Sinovac, solicitar somente o registro definitivo de sua vacina (agora recuaram e aparentemente vão pedir os dois registros). E o motivo dessa estratégia, como divulgado, não foi a certeza de que todos os estudos de eficácia e segurança estivessem terminados. O motivo foi aproveitar a brecha numa lei editada às pressas no início da pandemia que exige que a Anvisa aprove em poucos dias pedidos de vacinas, remédios, respiradores e kits de teste, caso tenham sido aprovados nas agências tradicionais, como a de EUA, União Europeia, Japão e China.


A China foi incluída nessa lista não porque é uma agência regulatória tradicional, mas porque muitos dos insumos no início da pandemia eram oriundos desse país. Como a Sinovac é chinesa, o governo de São Paulo afirmou abertamente que iria aprovar a Sinovac na China, de modo a praticamente passar por cima da Anvisa.


Caso esse estratagema tenha sucesso, o Brasil será o único país a ter concedido um registro definitivo para uma vacina contra o coronavírus. Não só isso, mas a Coronavac será a única vacina no mundo com um registro definitivo. E a Anvisa a única agência no mundo louca o suficiente para conceder um registro definitivo em 72 horas após receber os dados.


Seria uma verdadeira vergonha para nosso incipiente sistema de vigilância sanitária. Essa estratégia de tentar driblar nosso sistema de vigilância é uma verdadeira vergonha e não se justifica nem que o governo Bolsonaro tenha preenchido alguns cargos na Anvisa com militares aliados contra as vacinas.


Essas duas aberrações mostram como uma guerra política não somente provoca a morte de pessoas, mas pode destruir os mecanismos que a sociedade vem criando faz décadas para garantir que possamos entrar numa farmácia, num posto de saúde ou num hospital e usarmos um medicamento ou uma vacina sabendo que um órgão técnico garante sua eficácia, qualidade e segurança. Em suma os dois lutadores nessa guerra imoral estão matando os mecanismos que garantem a segurança de parte da Medicina no Brasil.


"Estão matando mecanismos que garantem a segurança de parte da Medicina no Brasil "FERNANDO REINACH - 


sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Mudança de paradigma(Celso Ming, Estado, 18 12 20)

  Mudança de paradigma

COLUNISTAS

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020 


 

O Estado de S. Paulo  / Economia


CELSO MlNG


Nesta quinta-feira, a Mercedes-Benz anunciou o fechamento de sua fábrica em Iracemápolis, interior de São Paulo, inaugurada há apenas quatro anos. Razão principal: a empresa decidiu alterar sua estratégia de negócios e dedicar-se à produção de veículos movidos a motores elétricos.


Este é apenas um episódio que indica aceleração na mudança no paradigma energético do planeta.


Até há poucos anos, havia enorme resistência na adoção de novos padrões de energia no mundo em direção à produção e ao consumo de energia limpa e renovável. Os mais conservadores entendiam que se tratava de concorrência desleal destinada a alijar do mercado as indústrias que vinham operando de maneira convencional, o que também semeava desemprego nos principais centros produtivos. Esse foi o principal argumento pelo qual o Partido Republicano dos Estados Unidos trabalhou pela rejeição do Protocolo de Kyoto e foi, também, a razão pela qual o presidente Donald Trump abandonou o Acordo de Paris, que determina metas de redução da emissão de gases responsáveis pelo efeito estufa.


Paradoxalmente, este também foi o argumento pelo qual as esquerdas e, de uma maneira mais geral, os governos dos países em desenvolvimento combateram acordos que tinham os mesmos objetivos. Essas cláusulas - com certa razão - impunham aos países pobres aumentos de custos de produção que os países ricos não tiveram no passado quando desenvolveram a sua própria indústria.


Hoje, a questão ambiental ganhou regime de urgência. Há mais consciência sobre os estragos produzidos pelo aquecimento global e sobre a necessidade de medidas drásticas para evitá-los. O presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, promete acatar os termos do Acordo de Paris e anunciar incentivos a investimentos destinados a substituir os combustíveis fósseis.


A seguir, algumas metas já decretadas ou em estudo em alguns países: ? China: a partir de 2035, metade dos veículos novos será movida a "energia nova".


- Reino Unido: aumentam as pressões para que a proibição da venda de veículos movidos a combustíveis fósseis seja antecipada para 2030.


- Noruega: a meta é eliminar veículos novos a diesel e a gasolina até 2025. Em outubro deste ano, mais de 60% dos carros novos eram elétricos.


- União Europeia: Alemanha e França definiram 2040 como prazo final para venda de veículos novos a gasolina e diesel. Bélgica, Irlanda e Países Baixos fixaram como prazo 2030.


- Japão: estuda a proibição a partir de 2030. O primeiro-ministro Yoshihide Suga promete que até 2050 as emissões de CO serão reduzidas a zero.


- Califórnia: o governador Gavin Newsom anunciou em setembro que, até 2035, será proibida a venda de carros novos a combustíveis fósseis.


- C40: autoridades de 38 cidades que compõem o Grupo C40 se comprometeram a banir até 2025 as emissões de gás carbônico no setor de transportes urbanos (ônibus e vans).


Aviso para o Brasil: as coisas estão acontecendo. Omissões ou simplesmente deixar que o mundo gire e a Lusitana rode podem custar perdas irreversíveis de mercado e empregos.


COMENTARISTA DE ECONOMIA


» Bitcoin, valorização recorde O bitcoin já teve neste ano uma valorização de mais de 200% e não para de subir. Ultrapassou nesta semana a cotação de US$ 23 mil por unidade. Criptomoeda criada em 2008, cujas emissões se baseiam no pagamento de megasserviços prestados por computador ("mineração"), continua sendo considerada confiável. No início foi procurada por quem queria fugir dos bancos na intermediação de negócios. Hoje, também se tornou refúgio para quem quer escapar dos impostos ou vive de lavar dinheiro.


quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

A quem interessa o desmonte da política de saúde mental?(FSP, 17 12 2929)

 A quem interessa o desmonte da política de saúde mental?


quinta-feira, 17 de dezembro de 2020 


 

Folha de S. Paulo  / Opinião

Cenário Político-Econômico: Colunistas

Bruno Ferrari Emerich, Daniela Arbex e Silvio Yasai


Há poucas décadas, a única possibilidade de cuidado para alguém que sofresse de algum problema mental era ser compulsoriamente isolado e segregado da sociedade em um hospital psiquiátrico, onde o então paciente era submetido a tratamento no qual sua palavra e seu desejo eram desconsiderados.


A partir dos anos 1960 esse cenário foi se transformando. Muitos países optaram por reduzir de maneira drástica as internações em hospitais psiquiátricos, pois elas se revelaram pouco eficientes. Com a mudança de olhar passou-se a investir recursos em serviços comunitários de saúde mental mais próximos dos lugares onde os indivíduos habitam, onde a vida acontece e onde se dá o processo saúde-doença.


Além disso, ganhou destaque a percepção sobre a importância dos fatores sociais, econômicos e culturais que levam os sujeitos a apresentarem algum tipo de sofrimento psíquico e que devem ser levados em consideração ao se efetivar tuna proposta de tratamento e uma política de saúde mental.


Nesse contexto, diversos movimentos de combate a estigmas e preconceitos começaram a ganhar expressão internacional. Dentre eles, o movimento dos pacientes psiquiátricos que denunciavam e ainda denunciam a violação de seus direitos e a violência dos tratamentos aos quais foram (e ainda são) submetidos.


No Brasil, desde a década de 1970, tais denúncias também vieram à tona, escancarando a ineficiência do modelo de atenção até então vigente e a necessidade de construção de um sistema de saúde (incluindo a saúde mental) ancorado na seguridade social, no acesso universal e no dever do Estado em provê-la e sustentá-la, como um direito do cidadão.


Assim, no lugar de uma oferta compulsória e exclusiva de internação, criou-se tuna ampla, complexa e diversificada rede de serviços de saúde mental, como Centros de Atenção Psicossocial (Caps), residências terapêuticas, centros de convivência, Consultório na Rua e Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasfs), dentre outros.


Nesse modelo, valoriza-se o cuidado em liberdade no lugar onde o indivíduo habita, apostando no aumento da potência da vida do sujeito na construção de formas de lidar com seu sofrimento.


Esse processo está ancorado no contexto das transformações que a sociedade brasileira passou nos últimos 30 anos, especialmente a partir da promulgação da Constituição de 1988 e da construção do SUS, que estabeleceram um novo pacto social civilizatório.


Mas o risco de retrocesso tem sido permanente diante das ameaças do amai governo federal de retomar estratégias retrógradas que caminham na contramão das melhores práticas internacionais e nacionais. Recentemente, assistimos à intenção de revogar portarias que sustentam o financiamento e o funcionamento da Rede de Atenção Psicossocial (Raps). No contexto em que as atenções se voltam para a Covid-19 e o ano se aproxima do fim, aproveitam para continuar "passando aboiada".


Desmontar a Raps irá fragilizar a promoção, a prevenção, o tratamento e a reabilitação em saúde mental. Alimentará o aumento da iniquidade e da desassistência, dos casos mais leves aos mais graves. Além disso, o modo como está sendo tramada essa revogação é tuna clara tentativa de negação da participação social na implementação dos sistemas de proteção, cerne da reforma sanitária e da reforma psiquiátrica.


A quem interessa o desmonte sistemático da política de saúde mental? Aos grupos de poder econômico e político que, historicamente, foram os únicos beneficiados pela barbárie do antigo modelo.


Por outro lado, somos vários, milhares de trabalhadores, gestores, usuários e familiares que criamos ações e cuidados, com participação social, com critérios e evidências científicas.


Seguimos resistindo aos desmontes e construindo caminhos. Assim tem sido e assim faremos, enquanto necessário for. Entre a barbárie e a civilização, não há dúvidas sobre quem está a escolher um caminho ou o outro.


Desmontar a Rede de Atenção Psicossocial irá fragilizar a promoção, a prevenção, o tratamento e a reabilitação em saúde mental. Alimentará o aumento da iniquidade e da desassistência, dos casos mais leves aos mais graves. (...) É uma clara tentativa de negação da participação social na implementação dos sistemas de proteção

sábado, 28 de novembro de 2020

Em louvor a Janet Yellen, a economista(Paul Krugman, 28 11 2020)

 Em louvor a Janet Yellen, a economista

28 de novembro de 2020 


 

O Estado de S. Paulo  / Economia


PAUL KRUGMAN


E difícil extrapolar o entusiasmo dos economistas com a escolha de Janet Yellen para próxima secretária do Tesouro. Parte dessa euforia reflete o caráter revolucionário da sua nomeação. Ela não só é a primeira mulher a comandar essa secretaria, mas será a primeira pessoa a assumir todas as três posições de comando da política econômica dos Estados Unidos - como presidente do Conselho de Assessores Econômicos, do Federal Reserve e do Tesouro.


E, sim, existe algo de revanche contra Donald Trump, que negou a ela um muito merecido segundo mandato como presidente do Fed, ao que consta porque achava que ela era muito baixinha.


Mas a boa notícia sobre Yellen vai além da sua notável carreira no serviço público. Antes de assumir o cargo ela era uma pesquisadora séria. E, em particular, uma das figuras na vanguarda de um movimento intelectual que ajudou a salvar a macroeconomia como uma disciplina útil quando essa utilidade estava sob ataques internos e externos.


Antes de chegar a esse ponto, uma palavra sobre o tempo que Yellen passou no Federal Reserve, especialmente quando participou do conselho diretor da instituição no início de 2010, antes de presidi-la.


Na época, a economia dos Estados Unidos vinha lentamente se recuperando da Grande Recessão uma recuperação impedida, não por acaso, pelos republicanos no Congresso que fingiam se preocupar com a dívida pública impondo cortes de gastos que afetaram de maneira importante o crescimento econômico. Mas a questão dos gastos não era o único tema do debate; também eram ferozes as discussões sobre a política monetária.


Especificamente, muitas pessoas da direita condenavam os esforços do Fed para salvar a economia dos efeitos da crise financeira de 2008. A propósito, entre elas estava Judy Shelton, uma pessoa totalmente desqualificada que Trump ainda tenta colocar no conselho diretor do Fed e que, em 2009, alertou que as políticas adotadas pela instituição resultariam numa "ruinosa inflação" (o que não ocorreu).


Mesmo dentro do Federal Reserve havia uma divisão entre os que preconizavam medidas mais duras em relação à inflação e os defensores de uma política mais leniente permitindo um pequeno aumento da inflação que, no final, incentivaria o crescimento e a criação de empregos, e que o combate à depressão devia ser prioritário. Yellen era um deles e uma análise feita em 2013 pelo The Wall Street Journal concluiu que, entre os articuladores políticos do Fed, ela foi a mais precisa nas previsões.


Porque ela acertou? Parte da resposta, eu diria, remonta ao seu trabalho acadêmico na década de 1980.


Na ocasião, como já afirmei, a macroeconomia útil estava sob ataque. O que quero dizer com "macroeconomia útil" é o entendimento, compartilhado por economistas como John Maynard Keynes e Milton Friedman, de que as políticas fiscal e monetária devem ser usadas para o combate das recessões e reduzir o impacto negativo sobre as pessoas e sobre a economia.


Esse entendimento não falhou quando foi testado na realidade, pelo contrário, a experiência do início dos anos 1980 confirmou vigorosamente os prognósticos da tese macroeconômica básica.


Mas estava sob ameaça.


De um lado, políticos de direita defendiam doutrinas excêntricas, especialmente a tese de que os governos podem engendrar um milagroso crescimento reduzindo impostos devidos pelos ricos. De outro lado, um número importante de economistas rejeitava qualquer papel da política no combate das recessões, afirmando que ele era desnecessário se as pessoas agissemracionalmente em seus próprios interesses, e que a análise econômica sempre devia supor que as pessoas são racionais e buscam os próprios interesses. E mesmo um pouco de realismo sobre o comportamento humano renova a defesa de políticas agressivas para combater as recessões. Em trabalhos posteriores, Yellen mostrou que os resultados para o mercado de mão de obra dependem muito não só dos cálculos de ganhos e lucros, mas também da percepção de equidade.


Tudo isto parece ininteligível, mas posso responder, pela minha própria experiência, que esse trabalho teve um enorme impacto sobre muitos economistas jovens, basicamente dando a eles permissão para serem mais sensatos.


E me parece que existe uma linha direta do realismo disciplinado da pesquisa acadêmica de Janet Yellen para seu sucesso como estrategista econômica. Ela sempre foi alguém que compreendeu o valor dos dados e modelos. E, com efeito, a reflexão rigorosa se torna mais, e não menos, importante em tempos como estamos vivendo hoje, quando a experiência passada oferece pouca orientação sobre o que deveríamos estar fazendo. Mas ela também nunca esqueceu que a economia tem a ver com pessoas, que não são as máquinas de calcular insensíveis que os economistas, às vezes, querem que elas sejam.


Agora, nada disso significa que as coisas necessariamente vão de vento em popa. A corrida não édos velozes, como o pão não é dos sábios, e tampouco o entendimento dos responsáveis pelas políticas garante o sucesso, mas o tempo e a oportunidade possibilitamtudo isso. O gabinete de governo de Trump foi um show de palhaços possivelmente o pior gabinete na história dos EUA. Mas foi apenas em 2020 que as consequências da incompetênciadestegovernoficaram totalmente aparentes.


Mas é imensamente tranquilizador saber que a política econômica seráditadaporumapessoaque sabe o que está fazendo. / tradução de TERZINHA MARTINO

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Falando sozinho(William Waack, Estado, 26 11 2020)



WILLIAM WAACK - Falando sozinho


quinta-feira, 26 de novembro de 2020 


 

O Estado de S. Paulo  / Política


WILLIAM WAACK


E preciso um pouco de paciência, mas a força dos interesses privados brasileiros está conseguindo impor severos limites aos rompantes de política externa do governo Jair Bolsonaro. A 'linha" externa foi basicamente subordinar-se a Donald Trump, um erro grotesco do ponto de vista "técnico" de diplomacia e um exemplo já clássico de como a cegueira ideológica conduz a decisões que são pura estupidez.


O agronegócio foi o primeiro a gritar contra a gratuita hostilização de parceiros comerciais no Oriente Médio e na Ásia, seguido de perto por setores modernos industriais e do mundo financeiro em relação a políticas ambientais. Os mais novos grupos a entrar no "vamos dar uma segurada" são de setores tecnológicos ligados a telecomunicações e infraestrutura, preocupados com o dano que a hostilidade à China possa trazer a investimentos no 5G.


Especialmente no agro "tecnológico" - aquele que colocou o Brasil como uma superpotência na produção de grãos e proteínas - a postura externa do governo Bolsonaro é vista com consternação e abertamente criticada. O racha já chegou à relação entre entidades que representam os variados grupos desse setor. Aqueles apelidados de "ruralistas", e identificados com a soja e a pecuária "primitiva", continuam apegados à noção de que, sendo o Brasil um campeão na produção de alimentos, não importa o que aconteça ou o que se diga, o mundo continuará comprando aqui.


Mas coligação de peso é a que passa pelos bancos, grandes indústrias (química, por exemplo) , instituições financeiras (plataformas de investimentos), empresas de ponta no setor digital (aplicação de inovação digital na agricultura, por exemplo), serviços e varejo de massa (por suas ligações com o exterior). Elas se entendem como parte de grandes cadeias internacionais, o que significa levar em grande consideração o que vai pela cabeça de massas de consumidores - e as preocupações de acionistas idem.


Estabeleceram com o presidente do Conselho da Amazônia, o general Hamilton Mourão, uma espécie de interlocução que se faz notar, por exemplo, na maneira como o vice-presidente reagiu ao anúncio de Biden de que retornaria aos acordos do clima de Paris - mais uma vez, a voz de Mourão é abertamente dissonante em relação à de Bolsonaro. Aliás, na cabeça dos executivos desses grupos a vitória de Joe Biden é vista como uma excelente oportunidade de, pelo menos, restaurar parte das cadeias produtivas globais. E fala-se da China com bem menos hostilidade política.


Nenhum desses dirigentes admite em conversas particulares enxergar qualquer vantagem no isolamento internacional a que as posturas de política externa de Bolsonaro levaram o País, e simplesmente ignoram o que diz o governo. Olham para os acordos de comércio recentemente assinados na Ásia (abrangendo 30% do PIB mundial e alguns países "ocidentais" como a Austrália, por exemplo) e examinam em grupos nutridos de análise da situação internacional como não perder o bonde (mais um).


Nesse sentido, a anunciada adesão do Brasil à iniciativa americana de "rede limpa" (clean network), que exclui a chinesa Huawei do 5G brasileiro, foi considerada prematura e desnecessária também por militares envolvidos em programas de Defesa- e que não viram na dedicação de Bolsonaro a Trump qualquer vantagem prática em termos de acesso a tecnologias sensitivas (notadamente nos setores nucleares e de mísseis) tradicionalmente bloqueadas por governos americanos, democratas ou republicanos.


Qual o resultado de tudo isso: será o retorno às deliberações multilaterais (incluindo o acordo de Paris), a moderação na resposta às críticas à política ambiental, mais cuidado no trato com parceiros comerciais importantes na Ásia e Oriente Médio e a reiteração (bem antiga, já) aos que controlam tecnologias de Defesa de que somos internacionalmente "adultos e responsáveis". Em outras palavras, é deixar a área externa do governo, incluindo filhos, assessores e alguns ministros de Bolsonaro, falando sozinhos.


Os principais freios à política externa de Bolsonaro vêm da iniciativa privada

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

A transição(Monica de Bolle, Estado, 25 11 2020)

 MONICA DE BOLLE - A transição


quarta-feira, 25 de novembro de 2020 


 

O Estado de S. Paulo  / Economia


MONICA DE BOLLE


No fim, as profecias mais pessimistas sobre "o fim da democracia americana", entoadas com ar de gravidade por diversos analistas nos EUA e no Brasil, não se confirmou. E era mais do que esperado que não se confirmasse. Como escrevi tanto neste espaço quanto em coluna para a revista Época, Donald J. Trump gosta de quebrar porcelana, mas, quando se trata das instituições deste país onde vivo há muitos anos, entre idas e vindas, tudo funciona conforme se espera.


O Judiciário descartou praticamente todas as tentativas de Trump de subverter as eleições, muitas das quais risíveis. Cenas absurdas marcaram as semanas que transcorreram desde 3 novembro, e a elas voltarei em um instante. Além do Judiciário, as legislaturas estaduais, os responsáveis pela certificação das eleições, entre outros, não se deixaram abalar pelas investidas do ainda presidente, que já havia desistido de governar para se entregar a tentativas esdrúxulas de invalidar as eleições e a rodadas de golfe nos fins de semana. Prevaleceu o que prevaleceria: a vitória do presidente eleito, o democrata Joe Biden.


Para falar sobre a transição de Biden, é preciso discorrer sobre os absurdos que testemunhamos desde a coletiva no estacionamento da hoje famosa Four Seasons Total Landscaping. Para quem não se lembra do episódio, ele aconteceu no dia em que Biden foi declarado vencedor pelos principais veículos de notícias. Nesse dia, Rudy Giuliani, advogado de Trump, convocou a imprensa para falar sobre a estratégia jurídica da campanha. Desafortunadamente para ele - para muitos foi uma delícia -, alguém da equipe apontou e acertou no Four Seasons errado. Por força do erro, a entrevista se deu não no sofisticado hotel, mas em um dilapidado estacionamento que fica entre o crematório e a "Ilha da Fantasia", nome do sex shop ao lado. A Four Seasons Total Landscaping desde então faz sucesso com a venda de camisetas e máscaras protetoras com dizeres variados.


O segundo episódio dentre aqueles absurdos se deu na semana passada, quando um Giuliani de aparência desarranjada suava em frente às câmeras, a tinta do cabelo escorrendo pelas bochechas. A imagem foi menos lúdica do que a do famoso estacionamento, mas, no conjunto, os dois episódios ilustram bem por que o ar grave no trato do resultado das eleições e as sentenças de morte da democracia eram descabidos. O que havia era não um ato ominoso, mas uma chanchada, algo burlesco.


Na segunda-feira, a agência responsável liberou os recursos federais e deu permissão para que a transição se inicie. Mas Biden não está perdendo tempo. Antes mesmo de ser "oficializada" a troca de comando, já tinha se reunido com aqueles que pretendia indicar para os cargos mais importantes. Em pouco mais de um par de dias, anunciou quem seriam os principais assessores da Casa Branca, quem ocuparia a chefia do Departamento de Estado, do Tesouro, da Segurança Nacional, entre outros. Para o Departamento de Estado, escolheu Antony Blinken, diplomata de carreira, tarimbado e experiente tanto em assuntos externos quanto em temas de segurança nacional. O presidente eleito sinaliza, assim, que seu governo retomará as rédeas do multilateralismo achincalhado por Trump e por adeptos da tese do globalismo malvado mundo afora. Tal grupo inclui vários membros de alto escalão do governo Bolsonaro, gurus de seus filhos, além de seus filhos.


Para o Tesouro, Biden chamou Janet Yellen. Yellen foi a primeira mulher a presidir o Fed, durante o governo Obama. Agora ela será a primeira mulher a chefiar o Tesouro. Tive o prazer de conhecê-la e estar com ela em várias ocasiões aqui em Washington, tanto em palestras no Peterson Institute for International Economics, onde trabalho, quanto em ocasiões mais prosaicas. Yellen era frequentadora assídua de uma cafeteria onde eu costumava almoçar antes da pandemia. Sempre em companhia ilustre, a economista nunca deixou de me cumprimentar. Yellen reúne qualidades únicas: é uma acadêmica de peso, além de uma grande gestora de política econômica. Sua visão sobre os males que afligem os EUA passa por um entendimento sofisticado e abrangente das mazelas estruturais responsáveis pela desigualdade no país. É de alguém como ela que precisamos na futura liderança do Ministério da Economia.


A transição de Biden, ainda que a pandemia esteja se agravando por aqui, tem deixado claro algo que precisa ser internalizado também no Brasil. Os surtos de anomalia aguda, os gravíssimos acidentes históricos representados pela ascensão de Trump e de Bolsonaro, são parte da história. Vêm e vão. O Brasil não está destinado a perecer nas mãos da incompetência, assim como não o estavam os EUA. Tudo muda. Tudo está sempre em transição.


ECONOMISTA, PESQUISADORA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Talentos para o petróleo(Décio Oddone, 23 11 2020)

 23/11/2020 09:40 - DÉCIO ODDONE: 

É PRECISO CONTINUAR ATRAINDO OS TALENTOS NECESSÁRIOS PARA O SETOR DE PETRÓLEO E GÁS 

Com a queda dos preços causada pelo Covid-19, as empresas de petróleo e gás natural adotaram a receita clássica. Custos, investimentos e empregos foram cortados. O advento do petróleo forjou o mundo moderno. Até os anos 1970, no entanto, a atividade estava concentrada em terra. A indústria se sofisticou a partir das duas crises que mudaram o mundo e estimularam a busca de petróleo no mar. A utilização cada vez mais intensa de novas tecnologias foi uma espécie de ida à lua da indústria do petróleo, que passou a adotar inovações em ritmo acelerado. Se fortaleceram as grandes operadoras e prestadoras de serviço. A maior complexidade das operações marítimas demandou desenvolvimentos tecnológicos e a contratação de grande número de engenheiros, geólogos, economistas e administradores. A indústria passou a ser mais atraente e a oferecer melhores benefícios. Não teve dificuldades para atrair os melhores profissionais. A queda de preços de 1986 trouxe o primeiro grande ajuste, com uma onda inédita de demissões. 

Quando, mais de uma década depois, a cotação voltou a subir, o setor, já enfrentando a concorrência das companhias de tecnologia digital, encontrou dificuldades para atrair empregados nas regiões de economia mais diversificada. O advento do shale revolucionou a indústria e o mercado de trabalho nos EUA, tendo sido responsável por uma nova leva de contratações. Os salários em locais como Dakota do Norte chegaram a ser os maiores do país. No Brasil, a euforia do início da década passada foi substituída pela debacle de 2014 e 2015. Quando a retomada iniciada em 2016 começou a tomar forma, vieram a pandemia e os cortes vivenciados recentemente. Na crise anterior, uma vez recuperado o preço, não houve grandes problemas para contratar. A situação agora é diferente. Se acentuou a competição pelos profissionais mais promissores que ingressam no mercado de trabalho. Áreas como as de energia renovável e tecnologia podem parecer mais atraente que uma indústria que começa a ver queda de demanda, em função da aceleração da transição energética. 

O consumo de petróleo e gás continuará relevante por décadas. Para se manter competitivo, o setor precisará continuar atraindo talentos. Fazer isso, ao mesmo tempo em que a sociedade se moderniza, as energias limpas avançam, as formas de comportamento e trabalho se adaptam aos novos tempos e os hidrocarbonetos caminham lentamente para a obsolescência será um desafio. Superá-lo vai demandar conhecimento, atitude e capacidade de gestão. Nos debates sobre como superar a pandemia dois conceitos foram lembrados: “O paradoxo Stockdale” e “O efeito Dunning-Kruger”.

 O primeiro faz referência ao General Stockdale, militar americano de mais alta patente capturado no Vietnã. Relatos dão conta que a sua liderança foi fundamental para a manutenção do moral dos prisioneiros de guerra. Sua tese: em uma situação de crise, um líder deve ser brutalmente honesto e apresentar bases razoáveis para esperança. O segundo trata da incapacidade que os indivíduos têm de reconhecer suas próprias limitações. Indica que pessoas que têm pouco conhecimento de um tema tendem a acreditar que sabem mais que outros, que apresentam maior familiaridade com o assunto, e vice-versa. O paradoxo Stockdale e o efeito Dunning-Kruger servem para ilustrar como o papel da liderança impacta um grupamento humano. A indústria do petróleo se caracterizou por oferecer um ambiente de trabalho estimulante, com perspectivas de longo prazo e planos de carreira. As viagens a trabalho, a participação em eventos e os treinamentos eram parte da rotina, como a atuação em várias regiões ou países. Como a integração das equipes e a manutenção da cultura corporativa eram importantes, a empresa definia os caminhos que os seus profissionais deviam seguir. 

Os novos profissionais assumem um papel cada vez mais ativo na gestão das suas carreiras e valorizam mais a mobilidade profissional. A troca de emprego e de setor são cada vez mais comuns. Os jovens estão mais atentos para questões como meio ambiente, diversidade de gênero e de oportunidades, reputação organizacional, internet das coisas, digitalização e inteligência artificial. A pandemia está provocando mudanças de comportamento. No novo normal, a flexibilidade e a capacidade de adaptação serão mais importantes. As viagens profissionais e as participações em eventos e em treinamentos externos devem se reduzir. Como criar, manter, divulgar e aperfeiçoar a cultura de uma organização serão temas de debate. Formas inovadoras de integração e capacitação deverão ser desenvolvidas. A justiça e a diversidade no ambiente de trabalho e a motivação dos funcionários que permanecerem em casa ou que frequentarem o escritório de forma mais esporádica devem ser estimuladas. As avaliações de desempenho devem ser feitas de forma a dar oportunidades a todos, não só aos que tiverem proximidade física com os gerentes. Questões como equidade, reputação, governança e a adoção de novas tecnologias e práticas de gestão vão estar cada vez mais presentes no cotidiano das empresas. 

Nesse novo ambiente, as lições de Stockdale, Dunning e Kruger não devem ser esquecidas. Os líderes do setor precisarão ser brutalmente honestos com as equipes nesses tempos de mudanças constantes e rápidas. Devem admitir que a transição energética está a caminho, mas recordar que o petróleo e o gás têm espaço garantido na matriz energética global por várias décadas ainda. Necessitarão reconhecer suas próprias limitações e perceber que novas práticas e habilidades devem ser incorporadas ao dia a dia das suas empresas. Devem aceitar que comportamentos e atitudes que não eram importantes no passado serão cruciais no futuro. Só assim serão capazes de atrair os talentos necessários para dar continuidade à longa trajetória de sucesso da indústria de petróleo e gás. 

 Décio Fabrício Oddone da Costa é engenheiro e 

CEO da Enauta S.A. 

Escreve mensalmente para o Broadcast. 

Este artigo representa exclusivamente a visão do autor.


segunda-feira, 23 de novembro de 2020

O ovo da serpente(Luiz Carlos Trabuco Cappi, Estado, 23 11 2020)

O ovo da serpente


segunda-feira, 23 de novembro de 2020


O Estado de S. Paulo  / Economia


LUIZ CARLOS TRABUCO CAPPI


Bem mais precioso que uma sociedade pode legar aos seus cidadãos, a educação é uma das maiores vítimas dos efeitos destrutivos da pandemia de coronavírus. O fechamento compulsório de escolas, o isolamento de estudantes e as incertezas sobre a retomada de atividades presenciais restringiram, ao longo deste ano, o acesso ao ensino. Nessa medida, a desigualdade educacional se agravou.


É uma evidência que alunos com melhor acesso à tecnologia e suas ferramentas, da conexão firme e veloz à internet ao uso de iPads de última geração, têm melhores meios de mitigar os danos causados pela abrupta interrupção do ano letivo e a rápida introdução do ensino a distância.


Global, o fenômeno ganha relevância em países nos quais as diferenças sociais são mais acentuadas, como é o caso do Brasil. Esse desequilíbrio aumenta o déficit educacional. O preço a pagar projeta danos irreversíveis. Uma sociedade deficiente em educação não avança e, pior, aponta para o atraso. Forma cidadãos sem conteúdo para compartilhar conhecimento, construir sonhos e forjar oportunidades econômicas. Cria uma geração sem esperança.


É o ovo que gera a serpente da desinformação, da proliferação das fake news e da polarização política perigosa. Engessa o progresso, divide a cidadania, anula a solidariedade e radicaliza o individualismo. A deseducação é o que põe em risco a democracia.


A contraface dessa moeda é paz e prosperidade. Enfrentar com prioridade a questão da educação envolvendo soluções que unam governo, iniciativa privada e setores que acumulam massa crítica sobre o tema trará ganhos a todos.


O ensino abre portas para o desenvolvimento inclusivo, meio mais eficaz de combater as desigualdades. Aprimora e reforça os valores civilizatórios. Barra humilhações à Nação e seu povo.


A educação impulsiona política social de base ampla - abarca da criança ao jovem adulto, proporcionando desde o acesso à merenda, nos primeiros anos, ao emprego e renda, no curso da formação. O filósofo Immanuel Kant definiu o ensino como "o grande segredo do aperfeiçoamento da humanidade".


Os indicadores atuais mostram a dimensão do desafio. Em 2019, somente 27% da população com 25 anos ou mais exibiam o ensino médio completo, enquanto 32% nessa faixa etária não tinham concluído o ensino fundamental. A evasão no ensino médio atingiu 18% entre jovens de 19 anos. Apenas 21% dos brasileiros de 24 a 35 anos têm ensino superior, segundo a OCDE, ante 70% na Coreia do Sul. As instituições privadas de ensino superior calculam que 400 mil dos seus 6,5 milhões de alunos deixaram de estudar este ano por conta da pandemia, maior evasão já registrada.


A inversão dessas tendências é tanto mais complexa pela delicada situação fiscal que o País atravessa. Não conseguimos hoje sequer sonhar com uma situação como a da Alemanha, cujo governo anunciou um aporte de ? 160 bilhões, no período de 2021 a 2030, para universidades e centros de pesquisa.


O Brasil precisa de criatividade e sentido de urgência para encontrar os caminhos de um sistema educacional moderno e inclusivo em todos os níveis. A educação a distância, que os especialistas dizem ter vindo para ficar, é nossa aliada nessa corrida, mas é preciso equalizar os acessos à tecnologia a todas as camadas da sociedade, e isso demanda investimento. A qualificação de professores é outra condição para que o País saia do risco de apagão no setor que ilumina o futuro.


Os investimentos em educação têm maturação de longo prazo. Muitas vezes, os governantes preferem se ocupar de outras áreas, em busca de um reconhecimento mais rápido, do que tratar desse setor basal. Considerar, porém, a educação como uma rubrica de gastos incômodos leva à perpetuação do atraso.


Para nossa sorte, o nonagenário educador americano e ex-presidente de Harvard Derek Bok já esclareceu esse dilema: "Se você acha a educação cara, experimente verificar os custos da ignorância."


"Uma sociedade deficiente em educação não avança e, pior, aponta para o atraso"


PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DO BRADESCO.



Home office e inovação: um casamento difícil(CB, 23 11 2020)

 Vivaldo José Breternitz - Home office e inovação: um casamento difícil


segunda-feira, 23 de novembro de 2020


 

Correio Braziliense  / Opinião


» Vivaldo José Breternitz Doutor em ciências pela Universidade de São Paulo


A Microsoft acaba de publicar os resultados de uma pesquisa que desenvolveu acerca do trabalho na modalidade home office, que no exterior é mais conhecido como work from home, ou WFH. Foram ouvidos nove mil executivos e funcionários de empresas que operam em 15 países da Europa. O número de funcionários se dizendo satisfeitos por trabalhar em casa chegou a 69%, com justificativas como economia de tempo para deslocamento e de dinheiro, por fazer refeições em casa, a possibilidade de uso de roupa informal, de personalizar o ambiente de trabalho, de trabalhar próximo aos seus animais de estimação etc.


Também da parte dos gestores, algumas conclusões esperadas ficaram evidentes, como a possível redução de custos com escritórios. Mas, algumas informações interessantes vieram à tona, como a de que a esperada queda na produtividade dos empregados não aconteceu: 82% dos executivos disseram que a mesma se manteve ou aumentou. Além disso, acreditam que a oferta de oportunidades de trabalho na modalidade WFH será um fator que ajudará a reter seus atuais empregados e atrair novos talentos.


Acredita-se que esses números relativos à produtividade se devem ao fato de os funcionários não terem sua atenção desviada, como no escritório, por movimentos, ruídos e conversas com colegas. Pesquisa de 2019 mostrou que 52% apontavam estas como causas de perda de tempo, número que caiu para 41% após o início da pandemia.


Analisando os resultados da pesquisa, parece claro que as empresas devem, no pós-pandemia, manter políticas flexíveis para trabalho WFH. Essa é também a opinião do professor Michael Parke, da Wharton School da University of Pennsylvania, um dos responsáveis pela pesquisa, que chama nossa atenção para alguns temas mais delicados levantados, entre eles o fato de empregados perderem o senso de propósito de seu trabalho, que é obtido quando mantêm relações próximas com seus colegas e podem entender como suas tarefas se conectam com as de seus colegas e contribuem para que a organização atinja seus objetivos. Trabalhando de casa, fica muito mais difícil estabelecer e manter essas relações, levando os funcionários a se sentirem desconectados de sua empresa e, consequentemente, impactando a capacidade de inovação da mesma.


A pesquisa de 2019 apurou que 56% dos executivos consideravam suas empresas inovadoras em termos de produtos e processos. Esse número caiu para 40% neste ano, fato que se deve, na opinião dos entrevistados, pela impossibilidade da proximidade física e na dificuldade para a realização de brainstormings a distância.


Um recente estudo, conduzido pela HP, chegou a conclusões semelhantes, apontando também queda na lealdade dos empregados à empresa, especialmente no caso de pessoal mais jovem. Aproximadamente a metade dos pesquisados pertencentes à Geração Z, aqueles nascidos a partir de meados dos anos 1990, disseram sentir-se desconectados da cultura da empresa.


Manter talentos que se sentem assim é um desafio crítico para as organizações. Para continuar inovando, fator crítico para seu sucesso, a Microsoft recomenda aos seus gerentes de nível médio que empoderem seus subordinados, dando-lhes tarefas com mais responsabilidade e mais autonomia para tomada de decisões. Isso é mais fácil de dizer do que fazer, já que 60% dos profissionais da Microsoft que ocupam cargos desse nível disseram não se sentir preparados para trabalhar dessa forma.


Teremos tempos difíceis à frente: certamente as coisas não voltarão a ser como eram e, também, não permanecerão como estão. Para garantir seu crescimento e perenidade, as empresas só não podem fazer uma coisa: aguardar o desenrolar dos acontecimentos.

domingo, 22 de novembro de 2020

Catar: a dois anos do sonho(Correio Braziliense, 21 11 2020)

A dois anos do sonho

Copa começa daqui a exatos 730 dias. Atacante brasiliense Tiago Bezerra e meia Rodrigo Tabata contam ao Correio como estão as obras no badalado país árabe. Lusail, cidade erguida do zero para a final, já é atração

sábado, 21 de novembro de 2020 


 Correio Braziliense  / Esportes


Marcos Paulo Lima


O brasiliense Tiago Bezerra é um privilegiado. A dois anos da Copa, com jogo de abertura programado para 21 de novembro de 2022, no Al Bayt Stadium, em Al Khor, o atacante do Al-Sailiya, nascido em Sobradinho, pode se dar o luxo de passear pelo Catar sentindo o cheirinho de novo das instalações do país do Golfo Pérsico para a 22ª edição do megaevento da Fifa. Um dos destinos da moda na nação de 11.571km² -- pouco mais da metade da área de Sergipe (21.910km²), o menor estado brasileiro -- é a recém-construída Lusail. A cidade planejada em meio ao deserto para receber a final foi erguida do zero. Abriga o Lusail Stadium, com capacidade para 80 mil torcedores.


A primeira Copa no Oriente Médio terá oito arenas. Cinco estão prontas: Al Bayt Stadium, Education City Stadium, Al Rayyan Stadium, Khalifa International Stadium e Al Janoub Stadium. Os outros três estádios só não estão prontos devido aos efeitos colaterais da pandemia, mas a velocidade das obras prevê as entregas do Lusail Stadium, Ras Abu Aboud Stadium e Al Thumama em 2021. O primeiro estádio brasileiro inaugurado para a Copa de 2014 foi a Arena Castelão, em dezembro de 2012, ou seja, faltando um ano e meio para o início da competição.


Não há comparação entre as capacidades de investimento. Turbinado por gás natural e petróleo, o Catar é um dos países mais ricos do planeta no quesito PIB per capita -- Produto Interno Bruto divido pelo número de habitantes. A projeção do Banco Mundial para o Catar em 2020 é R$ 126 mil, oito vezes mais do que a estimativa da instituição para o Brasil (R$ 15,4 mil).


Apelidada de cidade-fantasma quando começou a sair do papel, a cidade anfitriã da final já tem vida própria. Cerca de 45 mil operários colocaram o município de pé. Erguê-la teria custado R$ 176 bilhões ao governo do emir Tamim bin Hamad. Do montante, R$ 3 bilhões aplicados no Lusail Stadium. O dobro do valor aplicado pelo Governo do Distrito Federal na construção do Mané Garrincha, a arena mais cara da Copa disputada no Brasil.


Tiago Bezerra mora na capital Doha, em um bairro chamado Pearl. É vizinho de Lusail. "Fica a cinco minutos", conta. Encantado, o brasiliense está tentado a trocar de cidade. "A gente (família) quase foi para lá. Tem casas, apartamentos. Ainda não abriram a área da praia. Aqui, é tudo de outro mundo", impressiona-se o jogador.


Sonho de consumoA proximidade dos bairros permitiu a Tiago observar a evolução das obras no Lusail Stadium. "Cheguei aqui no Catar em janeiro de 2019. Vi a construção desde o início. Passo lá todo dia. Foi uma obra rápida. Falta só o acabamento". Afinada com a cultura local, a arena tem um formato personalizado. Conta um pouco da história do país. O desenho faz referência a tigelas e vasos encontrados há séculos em todo o mundo árabe.


Com arenas lindas e modernas para todo lado, Tiago elege a predileta. "Por enquanto, o Al Bayt Stadium é o mais bonito. A arquitetura impressiona". O estádio recebeu o nome em homenagem a um verso poético árabe: "bayt al shaar", referência às tendas usadas pelos povos nômades do Catar e na região do Golfo Árabe.


Quer uma impressão de como o Catar pretende surpreender? O McDonad's construiu uma réplica da tenda do Al Bayt Stadium, ao lado da arena, para receber os famintos frequentadores do estádio sede do jogo de abertura.


"Lusail fica a cinco minutos da minha casa. Quase fomos morar lá. Aqui, é tudo de outro mundo"


Tiago Bezerra, atacante brasiliense do Al-Sailiya, time da primeira divisão da Qatar Stars League, a liga nacional do país


28 dias


Tempo de duração da Copa 2022, de 21 de novembro a 18 de dezembro


55km


Maior distância entre os estádios do próximo Mundial. Estima-se que é possível ver três jogos em um dia


Sete perguntas para...


Rodrigo Tabata, meia brasileiro do Al Sadd e ex-jogador da seleção nacional do Catar


Como imagina o Catar em 21 de novembro de 2022?Muito lindo. Com uma estrutura incrível. A Copa vai ser na melhor época do ano aqui no Catar, com aquele frio gostoso à noite. O clima é esse no momento.


Lusail está 85% pronta. Você tem ido lá?Sim. Tem bastante gente morando, tem restaurantes. Recentemente, uns amigos meus estavam aqui e os levei a Lusail. É pequeno, mas, ao mesmo tempo, gigante. Você anda uma hora e não termina. Até pouco tempo, ali era só deserto e água do Golfo. Aqui, eles não brincam em serviço (risos).


E o Lusail Stadium, palco da final. Qual é a maior ostentação possível?Esse estádio será sensacional. Um multimilionário, por exemplo, pode ancorar no mar e ter acesso privativo direto ao estádio. Mas, isso é privilégio de alguns. A obra é gigante.


Fez o "test-drive" em alguma arena da Copa?Treinamos no Al-Bayt e no Al-Rayann. Os dois são top. A tenda árabe (Al Bayt) é a mais linda (arena). Incrível. A velocidade com que eles constroem é sensacional. Sonham com uma Olimpíada aqui.


O que os astros da Copa vão curtir?Os deslocamentos das seleções. Isso é fantástico. Vai ser rápido. Testamos isso aqui na Champions League da Ásia. A mobilidade impressiona. Ninguém fica muito tempo dentro do ônibus. Aí, no Brasil, o Catar demorou mais de duas horas para chegar ao Morumbi no jogo da Copa América (em 2019, contra a Colômbia).


Os embargos dos países vizinhos ainda atrapalham?O Catar está produzindo alimentos para não depender. Você vai ao supermercado e já nota a diferença, encontra produtos nacionais.


Quais são os planos até a Copa?Quero jogar até 2022 e fixar residência aqui. Minha mulher ama o Catar. Meus filhos estão adaptados. Foram alfabetizados em inglês, falam português e francês, que é uma opção de idioma aqui. Estamos adaptados.


Imponente e futurista


Anfitriã da final da Copa do Catar em 2022, Lusail tem 38km². É menor do que a Região Administrativa do  Setor de Indústria e Abastecimento (SIA) no Distrito Federal. Projetada pela Qatari Diar, construtora da família real, a cidade atrai com o discurso de mobilidade, sustentabilidade e tecnologia. A projeção é de que o espaço acomode 450 mil pessoas, sendo 250 mil habitantes regulares. A dois anos do Mundial, a população é de 20 mil moradores.


Novinha em folha, Lusail já tem Universidade, escolas para todas as idades, postos de saúde, vários prédios de serviços governamentais (companhias de luz, água e infraestrutura), postos de polícia, marinas, áreas residenciais, resorts em ilhas, distritos comerciais, lojas de luxo, instalações de lazer, uma comunidade de campo de golfe, ilhas artificiais e vários distritos de entretenimento.


As obras continuam a todo vapor, mas Lusail está 85% pronta. Alcançará 100% em 2022. O serviço de transporte está pronto e funcionando. Há opções de metrô, VLT, ônibus, táxi convencional, por aplicativo e ciclovia.


Lusail hospeda uma academia do Paris Saint-Germain, clube bancado pelo Catar, federação do tiro, circuito de GP de Motovelocidade, abrigou o Mundial de Handebol, em 2015, numa das quadras esportivas mais sofisticadas do planeta, em que o Catar conquistou a medalha de prata, e passou a contar com um time de futebol.


O Lusail Sports Club, com sede em Lusail, foi fundado neste ano e disputa a segunda divisão da Qatar Stars League, como é chamada a liga nacional do país. "A projeção é de que eles subam para a primeira divisão em três anos. É um projeto ambicioso da família do emir", conta o atacante brasiliense Tiago Bezerra.


Os inúmeros atrativos em um espaço tão pequeno miram o futuro. O governo deseja desenvolver uma economia baseada no conhecimento, que não dependa tanto do gás natural e do petróleo. A projeção é transformá-la  em uma espécie de centro de pesquisa e desenvolvimento.

O risco de uma geração(Estado, 22 11 2020)

O risco de uma geração


domingo, 22 de novembro de 2020 


O Estado de S. Paulo  / Notas e Informações

Cenário Político-Econômico: Colunistas

A crise desencadeada pela pandemia de covid-19 poderá aprofundar ainda mais a desigualdade econômica e social no País, uma de nossas mais renitentes mazelas. A necessidade de contribuir para a renda familiar, ou mesmo para garantir a própria subsistência, pode levar milhões de jovens de baixa renda a abandonar os estudos em busca de um emprego. No limite, o ano letivo perdido poderá subtrair R$ 1,5 trilhão da renda dos brasileiros nos próximos 50 anos, de acordo com uma projeção feita pelo economista Ricardo Paes de Barros, do Insper, um dos maiores especialistas em desigualdade no País.


Cada ano de estudo perdido limita a oferta de oportunidades de trabalho para esses jovens e, consequentemente, sua remuneração. Esse déficit educacional é um desastre individual e coletivo. O jovem com baixa escolaridade terá de superar barreiras praticamente intransponíveis para construir um futuro melhor para si e sua família. Com excesso de mão de obra menos qualificada, a produtividade do País, há muito tempo um dos entraves para o desenvolvimento, também tende a cair cada vez mais, alimentando um círculo vicioso que mantém o Brasil aferrado ao atraso.


O estrago só não se consumará como a pior projeção feita por Paes de Barros porque uma parte dos alunos conseguiu manter algum tipo de atividade educacional por meio remoto em 2020; e porque aquele número desolador pode servir como um despertar de consciência para as autoridades responsáveis por planejar e executar políticas na área de Educação.


A propósito, o que tem feito o Ministério da Educação (MEC)? Qual será o plano do ministro Milton Ribeiro para coordenar em nível nacional com os secretários estaduais e municipais de Educação uma volta às aulas segura? O Estado tenta obter um posicionamento do MEC sobre esse tema fundamental para o País desde o dia 23 de outubro, sem sucesso. No final de setembro, convém lembrar, o ministro Ribeiro praticamente lavou as mãos ao afirmar que "acesso à internet e volta às aulas não são temas da pasta" que está sob sua responsabilidade. O que haveria de ser, então? Mais não disse.


Só não se pode afirmar que "lavar as mãos" tenha sido a tônica da atuação do governo do presidente Jair Bolsonaro no curso da pandemia porque não foram poucas as vezes em que o próprio presidente sujou as suas para, pessoalmente, sabotar ações corretas adotadas por governadores e prefeitos, amparadas pela comunidade científica.


A ironia desse descalabro é que Bolsonaro sempre se defendeu argumentando que buscava "proteger a economia", cuja debacle, em suas palavras, "mataria muito mais do que o vírus". Pois é o obscurantismo do presidente da República um dos maiores riscos à vida e à atividade econômica nessa hora tão grave para o País.


Os jovens fora da escola não poderão se beneficiar do que os economistas e especialistas em educação chamam de "efeito-diploma". Os alunos que concluem o ensino médio, em geral, têm um incremento de R$ 212 na sua renda mensal, de acordo com uma estimativa do economista Naércio Menezes Filho, do Centro de Políticas Públicas do Insper. A cada ano de estudo até a conclusão do ensino médio, o incremento na renda mensal do estudante é de R$ 70. O impacto benfazejo do chamado "efeito-diploma" é ainda mais substancial no ensino superior, cuja conclusão é capaz de dobrar a renda média do trabalhador.


A inação do governo federal diante da emergência sanitária tem causado muitos danos ao País. As mais de 165 mil vidas perdidas para a covid-19 são a face mais dolorosa da negação da gravidade da doença e do desdém de Bolsonaro pelo bem-estar dos brasileiros. Mas tantas outras vidas, de milhões de jovens, também podem ficar aquém de suas potencialidades porque não lhes foram dadas as condições para seguir estudando.


A desarticulação das esferas de governo para formular e executar ações concretas para mitigar os efeitos da pandemia sobre esses jovens não põe em risco apenas o futuro de cada um deles. Atrela os dramas individuais ao destino da Nação.


Milhões de jovens podem abandonar os estudos por falta de amparo na pandemia

Paris, Pandemia


 

sábado, 21 de novembro de 2020

Biden não hostilizará o Brasil(Paulo Sotero, Estado, 21 11 2020)

 Biden não hostilizará o Brasil


sábado, 21 de novembro de 2020 


 

O Estado de S. Paulo  / Espaço Aberto

Cenário Político-Econômico: Colunistas

Paulo Sotero


O governo de Joseph Biden não hostilizará o Brasil. Mas não terá tempo para o País enquanto arautos do trumpolavismo e passadores de boiada derem cartas em Brasília. Como pouco ou nada se espera em Washington do presidente do Brasil, a ausência dos cumprimentos protocolares ao presidente eleito dos EUA não faz diferença. Já os comentários de Jair Bolsonaro e de membros de seu séquito sobre o processo eleitoral americano pesam e pesarão contra o País.


No momento apropriado, a futura administração em Washington buscará um diálogo construtivo com o Brasil em duas questões prementes de interesse mútuo. A mais urgente é a contenção do vírus que tem aliados em Bolsonaro e Trump e fez dos dois países os maiores necrotérios mundiais de covid-19, com mais de 400 mil mortos entre eles - um número que pode dobrar antes de ser controlado no ano que vem. Os assessores do presidente eleito dos EUA sabem da qualidade da medicina sanitária no Brasil e de sua capacidade na produção de vacinas em escala industrial. Ajudaria, é óbvio, que o País tivesse um ministro da Saúde à altura do desafio posto pela segunda onda do vírus em pleno curso no Hemisfério Norte e que, inevitavelmente, chegará ao Brasil.


O segundo assunto premente de interesse mútuo é a contenção do aquecimento global. Um dos primeiro atos do presidente Biden, em janeiro, será a readesão dos EUA à Convenção das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, que Trump abandonou. Lançada na Rio-92, a convenção produziu um acordo histórico em Paris, em dezembro de 2015, sobre a redução voluntária pelos países signatários de suas emissões dos gases poluidores a níveis que mantenham o aquecimento da atmosfera abaixo de dois graus centígrados. As emissões brasileiras estão entre as maiores e derivam, principalmente, do desmatamento e da expansão desordenada da pecuária no arco da Amazônia.


De imediato caberá a atores e instituições da sociedade civil brasileira cultivar laços com a nova administração e compensar as faltas do governo, que é obviamente pior que a Nação. Brasília ajudará se não der palpites sobre a crise potencialmente gravíssima provocada pela resistência de Trump a reconhecer a vitória de Biden e sabotar a transição.


"Estou alarmado" com as ações desse "patife e fora da lei", afirmou à MSNBC o exgeneral Barry McCaffrey, ministro do governo Clinton e um dos militares mais condecorados de seu país, referindo-se a Trump. A fúria de McCaffrey, compartilhada por seus colegas ex-generais, foi provocada pela decisão de Trump de exonerar pelo Twitter o secretário da Defesa Mark Esper e trocar o alto comando do Pentágono por ideólogos inexperientes, da mesma laia dos amadores que compõem o gabinete do ódio incrustado no Palácio do Planalto, com o beneplácito de Bolsonaro. Trocas parecidas podem ocorrer no comando da CIA e do FBI, como no Departamento de Segurança Interna. Mudanças imprudentes, desnecessárias e injustificáveis às vésperas da troca do governo alarmam os generais e os especialistas civis em segurança nacional. O temor é que adversários dos EUA usem as oportunidades que elas obviamente oferecem e façam movimentos que requeiram uma resposta militar.


Tendo negado, durante a campanha, comprometer-se com uma transição ordeira de poder caso perdesse a eleição, Trump embarcou numa irresponsável estratégia para alimentar o caos - sua especialidade -, tumultuando a recontagem automática de votos nos Estados onde perdeu por pouco e aprofundando a divisão política e o ódio racial até as vésperas do início da nova administração. O palco da contenda são as acirradas disputas por duas vagas ao Senado federal no Estado da Geórgia, a serem decididas em segundo turno na primeira semana de janeiro. Elas criam espaço para Trump continuar a fazer estragos, com a ajuda da liderança do Partido Republicano, que conseguiu aumentar sua bancada na Câmara dos Representantes, onde é minoritário, e está na briga para manter a maioria no Senado, que perderá se os democratas elegerem dois senadores na Geórgia.


Esse é o tenso contexto no qual o Brasil não se deve meter, pois nada de relevante tem a dizer ou a ganhar e muito perderá dando opiniões em assuntos que não são de sua conta. Declarações de Bolsonaro prometendo "pólvora" se os EUA impuserem sanções contra o Brasil por conta do desmatamento na Amazônia preocupam - sobretudo por revelarem o despreparo do líder brasileiro. Sanções contra o Brasil inevitavelmente virão, mas de países da Europa importadores de nossos produtos agrícolas, e/ou sob a forma do sepultamento do acordo comercial Mercosul União Europeia, já há tempo nas cordas.


Preocupa também a inclinação do atual comando do Itamaraty, instituição outrora respeitada, a dizer e fazer tolices, como vangloriar-se do novo status de pária internacional do País. Bravatas e declarações estúpidas mostram que a presença do Brasil na cena internacional deixou de ser indispensável.


Mas o presidente eleito dos EUA não terá tempo para o trumpolavismo de Bolsonaro


JORNALISTA, É PESQUISADOR SÊNIOR DO BRAZIL INSTITUTE NO WILSON CENTER, EM WASHINGTON

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Neil Tyson, sobre o Brasil


 

Emitir moeda para cobrir o rombo fiscal?(Celso Ming, Estado, 20 11 2020)


 Emitir moeda para cobrir o rombo fiscal?


sexta-feira, 20 de novembro de 2020 - 

 

O Estado de S. Paulo  / Economia


CELSO MING


O economista Raul Velloso, respeitado especialista em Contas Públicas, passou a defender velho expediente usado pelos chefes de Estado em situações de guerra: a pura e simples emissão de moeda para alimentar o Tesouro.


Essa emissão de moeda viria para substituir novas emissões de títulos de dívida no financiamento de despesas com auxílios emergenciais para enfrentar a pandemia, como sugeriu Velloso em entrevista ao jornal Valor Econômico de 18 de novembro. Também cobriria investimentos públicos para relançar a atividade econômica, hoje prostrada pelo rombo fiscal.


Velloso afirma com todas as letras que essas emissões de moeda não provocariam aumento da inflação. E porque são uma dívida pública que não cobra juros, também não aumentariam o passivo em títulos do Tesouro que adviesse da incorporação dos juros ao principal. Se tantos países já fazem isso, pergunta ele, por que o Brasil deveria continuar seguindo rigidamente a ortodoxia monetária?


Um discurso desses é mamão com açúcar para o governo Bolsonaro, que faz de tudo para refugar a exigência do teto dos gastos e que quer mais recursos para distribuir à população carente e, assim, encorpar seu cacife eleitoral.


Antes de prosseguir, algumas considerações. Quem primeiro recomendou "lançar dinheiro de helicóptero" em situações especiais - como para enfrentar grandes crises - não foi ninguém menos que o guru do monetarismo e da Escola de Chicago, Prêmio Nobel de Economia (1976), Milton Friedman. Foi também o que em 2008 repetiu para justificar suas emissões o então presidente do Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos), Ben Bernanke.


No Brasil, postura semelhante do Banco Central vem sendo defendida por um dos pais do Plano Real, o economista André Lara Resende. Para ele, a velha ordem monetária ruiu e, em seu lugar, deve ser adotada a Teoria Monetária Moderna (MMT, na sigla em inglês). Um dos pressupostos dessa teoria é o de que a inflação não é o resultado da expansão de moeda, mas das expectativas do mercado. Se as expectativas de inflação estão bem ancoradas, não há razões especiais para a disparada dos preços. Como consequência desse ponto de vista, além de sacrificar demais a população, as políticas baseadas na austeridade fiscal são burras e desnecessárias. E a dívida pública poderia perfeitamente ser rolada com base em prazos mais dilatados (substituição de dívida de curto prazo por dívida de longo prazo) para evitar o alastramento da desconfiança. Finalmente, os juros poderiam permanecer muito baixos e, nessas condições, deixariam de ser fator de aumento da dívida pública e, portanto, de fuga de capitais.


Quando afirmou no dia 10 que uma excessiva expansão da dívida poderia conduzir rapidamente à hiperinflação e que, se houver uma segunda onda da pandemia de covid-19, será necessário distribuir nova rodada de ajudas emergenciais, o ministro da Economia, Paulo Guedes, um dos discípulos da Escola de Chicago, parece inclinado, em situações extremas, a um despejo de moeda "por helicóptero".


A questão central é a de que a MMT se baseia em expectativas bem ancoradas, portanto num fator psicossocial que depende da confiança na política econômica e nos rumos da economia. Como o Brasil é terra de enforcados, falar em corda ou até não falar nela não deixa de ser problema.


E temos o que aconteceu nos últimos meses. Bastou a distribuição de auxílio emergencial para que se produzisse um estouro na demanda de alimentos e de materiais de construção. E a inflação, que parecia desmaiada, voltou a se pôr em pé.


Não basta argumentar que isso apenas aconteceu porque houve momentânea desorganização da oferta (desencontro de estoques) e desconsiderar o efeito do excesso de moeda.


Nos países em que, apesar da forte emissão de moeda, a inflação se mantém em torno de zero e 2% ao ano, além de forte confiança, houve e continua a haver grande "empoçamento" de liquidez. Ou seja, os recursos não circulam e não se multiplicam a ponto de produzir grande expansão de demanda - até porque as incertezas em relação ao futuro e à quebra de patrimônio pelos juros em torno de zero induziram o consumidor a não se atirar às compras.


Enfim, a economia brasileira teria de ganhar muito mais saúde e musculatura antes de adotar essas novidades.


COMENTARISTA DE ECONOMIA