segunda-feira, 31 de maio de 2021

NOVA GERAÇÃO DA TELEFONIA CELULAR (Pedro Doria, Revista Época, 28 5 21)

 HORIZONTE - A NOVA FRONTEIRA

A NOVA GERAÇÃO DA TELEFONIA CELULAR PROMETE REVOLUCIONAR AS CIDADES E MUDAR A MANEIRA COMO O HOMEM INTERAGE COM O MEIO

sexta-feira, 28 de maio de 2021 


 

Revista Época  / Capa

Pedro Doria


Quem entende do assunto diz que o leilão do 5G não sai, no Brasil, antes de setembro. O Chile já pretende estar com sua infraestrutura acelerada até lá. com vistas a cobrir todo o pais quando por aqui estivermos elegendo o próximo presidente. China c Estados Unidos estão numa competição por quem anda mais rápido — até março, já havia cobertura em 341 cidades chinesas e 279 americanas. Na Coréia do Sul são 85 e no Reino Unido 54, de acordo com a consultoria Viavi. Nas contas da Ericsson, mais de 200 milhões de pessoas já estão ligadas por redes super-rápidas. Mas o eterno adiamento ideológico do Brasil atrasa a entrada no futuro e nos coloca em profunda desvantagem nesta briga. Porque o 5G, afinal, não é apenas uma internet mais rápida no celular. A tecnologia é bem mais complexa e vai tão fundo na reinvenção dos ambientes em que vivemos que terminará por alterar nossas vidas de maneiras ainda não imaginadas. Nos próximos dez anos. É que o 5G vai digitalizar o mundo tísico. Sim, a promessa é de um mundo de ficção cientifica.




O supermercado no qual entramos e pegamos o que queremos sem passar pelo caixa. A loja de roupas que identifica a cliente na entrada, sabe que vestido ela viu no site e de cara já lhe oferece uma promoção. O Uber sem motorista e o robô que entrega pizza. O bueiro que, antes de entupir, já avisa à prefeitura para evitar a enchente. A lavoura que nunca é perdida porque, por mais vasta que seja a terra, nunca estará seca ou sem nutrientes. A criança no interior que precisa de uma cirurgia urgente e grave e pode ser atendida por um especialista a centenas de quilômetros, intermediado pelos dedos hábeis de outro robô. A casa que já dispara o ar-condicionado na temperatura da gente, acende a meia luz e ainda põe um Miles Davis para tocar, tudo no momento certo, porque, ora, ela já percebeu antes de chegarmos, pelos nossos batimentos, pelo suor que corre o rosto, que o dia foi duro e merecemos descanso.





 Foi o 4G que, de certa forma, nos passou a ilusão de que é velocidade o que muda em cada geração nova de celular. Mas não c\ A iG, que jamais foi chamada assim, inaugurou a ideia de um telefone que pudesse transitar pela cidade. É antiga, de 1970, e demorou décadas até ser implementada. A 2G também não foi apresentada a ninguém desse jeito. Mas era digital, e isso quer dizer que mensagens de texto por SMS eram possíveis de serem enviadas c, por meio de um protocolo chamado Edge, dava até para conectar computador e celular para oferecer na tela maior uma internet bastante precária. Já a 3G permitiu que os smartphones florescessem. Embora lenta, já Unha internet que permitisse navegar pela web, assistir a vídeos curtos.





Então: a primeira fez nascer os celulares, a segunda os digitalizou e a terceira tornou os aparelhos máquinas multimídia sempre conectadas à internet. Aí veio o 4G. que deu à telefonia móvel banda larga, e assim hoje assistimos com conforto a uma série por streaming sentados à mesa do bar.





O salto que o 5G dá é imenso. Pelo ângulo da rapidez, seu potencial é de alcançar velocidades muito maiores do que as bandas largas fixas já oferecidas no Brasil. Mas, simultaneamente, ele rompe outra barreira: a rede 5G pode interligar até 100 bilhões de aparelhos. Bom lembrar: não chegamos a 8 bilhões de humanos no planeta. Enquanto num quilômetro quadrado uma rede 4G é capaz de alimentar 4 mil aparelhos simultaneamente, a 5G liga 1 milhão no mesmo espaço, Não bastasse, o 5G tem baixa latência — e esse é um conceito importante.





Imagine um rio. Um rio muito largo permite que muitos barcos trafeguem simultaneamente. Um rio estreito vai ter de fazê-los navegar cm fila indiana. Isso é banda. Latência tem a ver com a velocidade da água. Quanto demora para o barco sair de um ponto c chegar ao outro. O 4G tem banda larga, mas é de alta latência. Demora para o barco chegar, embora muitos barcos trafeguem juntos. Além de ter muito mais banda, o 5G tem baixa latência. São ainda mais barcos juntos e eles vêm acelerados. Quer dizer. Uma quantidade imensa de dados sai de um ponto e chega ao outro quase instantaneamente.





E é essa infraestrutura que vai construir o mundo no qual o físico ganha características digitais e permitirá a criação daquilo que antes só imaginávamos na ficção. Não é difícil entender o porquê. O carro autônomo na frente precisa avisar ao carro autônomo atrás que ele vai frear bruscamente. Essa informação precisa chegar instantaneamente para evitar um acidente. O 5G garante isso. É o mesmo com o robô cirurgião. Muitas operações são particularmente delicadas e exigem precisão. Se uma médica no Rio de Janeiro gira o joystick para afastar uma veia com a mão robótica sobre o corpo de um paciente em Manaus é importante que entre o comando e a ação não exista intervalo de tempo. Tem de ser imediato. É o 5G que permitirá.





Então junte a banda muito larga com a latência muito baixa e multiplique de forma absurda o numero de aparelhos conectados O 5G vai fazer o celular virar só mais um objeto entre os muitos digitais e conectados. Os óculos que usamos poderão estar na internet, o marca-passo, assim como o relógio que fica de olho na pressão e tem acelerômetro para detectar queda. Quando seu avô cair, você — ou o hospital — será imediatamente informado.





A grande transformação está nos sensores conectados. O acelerômetro que mede a queda, claro, mas também muitos outros. É um sensor que percebe se um bueiro está entupindo. Outro avalia a temperatura e decide se liga o ar-condicionado ou se irriga um pouco mais as plantas. Um terceiro sensor funciona como um radar e informa caso algum objeto esteja em rota de colisão. Sensores de nível de luz decidem quando acender as lâmpadas. Sensores sutis poderão medir nossa taxa de oxigenação, a fluidez da sístole e da diástole e até se transpiramos demais. Câmeras são sensores potenciais quando inteligentes o bastante para identificar rostos, movimentos suspeitos ou só o momento exato de disparar aquela fotografia incrível. Esses sensores já existem, Não estão todos conectados simultaneamente. Cada maquininha destas, algumas do tamanho de uma unha ou menos, poderá estar on-line, enviando informação a um servidor em algum canto.





Some, pois, esses tantos sensores conectados a outras duas tecnologias muito recentes: big data e o tipo de inteligência artificial que batizamos “aprendizado de máquina”. O nome já diz. Algoritmos que fazem máquinas aprenderem. Cada infarto monitorado por sensores vai gerar uma montanha de dados sobre como o corpo estava antes do acidente. E conforme o número de casos se acumula, os sistemas que avaliam os dados dos sensores se tomarão mais e mais precisos, capazes de avisar do perigo iminente com horas de antecedência que bastam para evitar a morte. Serão acidentes de trânsito impedidos por carros cada vez mais digitais — mesmo aqueles que ainda dirigimos. As possibilidades são infinitas — é a câmera da loja que perceberá pelos gestos de alguém um furto próximo. Ou as microexpressões do rosto que podem indicar uma depressão como o melhor psiquiatra não necessariamente enxerga.





O mundo é de ficção cientifica, mas isso não quer dizer que é a realidade divertida dos Jetsons. Pode muito bem se tornar uma distopia como o 1984 de George Orwell, com um Grande Irmão — o Estado que tudo sabe sobre todos, e a toda hora. Ou a gigante do Vale do Silício — faz pouca diferença para quem é vigiado. Enquanto nossa sida digital está trancafiada naquelas poucas polegadas de tela dos celulares, a privacidade que, hoje, às vezes, parece um conceito abstrato não será quando entrarmos numa loja e ela nos cumprimentar pelo nome e nos oferecer produtos ao nosso gosto. Talvez até algumas transgressões. Quando, pelo movimento das câmeras pelas ruas, o Estado for capaz de determinar cada um de nossos passos. O seguro de saúde talvez queira nos dar um desconto inicial em troca de usarmos certos sensores — que dará a eles informação talvez excessiva sobre nossa saúde. Informação que poderá custar caro no futuro. Para não falar no que vai dar o conhecimento sobre aquelas buscas muito pessoais, que fazemos quando sozinhos, à noite, protegidos e cm casa.





O dilema da privacidade não é trivial. Câmeras em estádios lotados poderão identificar a presença de terroristas conhecidos, mas também de maridos infiéis. Poderão inocentar muitos que terão como provar onde estavam na noite do crime. Assim como poderão terminar cobrando mais caro por aquilo que precisamos muito — e o Grande Irmão saberá disso.





Tudo indica que, movido pela paranoia anti-China do governo, o Brasil será um dos últimos a entrar no mundo do 5G. Isso quer dizer que não serão startups brasileiras que desenvolverão muitas das tecnologias que alimentarão a construção desse futuro. Quer dizer que teremos o 5G que os outros construíram. Que não participaremos da largada dos muitos debates éticos. Chegar tarde e ser só consumidor é a sina brasileira.

domingo, 30 de maio de 2021

Fake News matam(Lidice da Mata,Carta Capital, 28 2 21)

 LÍDICE DA MATA - Fake News matam

É urgente que façamos algo contra a promoção da desinformação que brinca com vidas em nosso País

sexta-feira, 28 de maio de 2021


 

Revista Carta Capital  / Colunistas

LÍDICE DA MATA


Em standy by como dizem por aí, porém não em inatividade, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito das Fake News, instalada em 2019 no Congresso e afetada – assim como tantas outras comissões das Casas Legislativas – pela pandemia da Covid-19, observa com entusiasmo os passos dados pela nova CPI que investiga a “incompetência” ou a “ineficiência”, como mesmo disse Fábio Wajngarten, ex-secretário de Comunicação, em entrevista a uma revista semanal, referindo-se às ações do Ministério da Saúde e seus gestores. O ex-secretário foi o mesmo que mentiu diante dos senadores e quase saiu preso da sessão da comissão que colheu seu depoimento.


Nosso entusiasmo se dá na medida em que temos clareza do trabalho realizado pela CPMI das Fake News de entender e identificar uma suposta rede de desinformação promovida pelo governo Bolsonaro e seus apoiadores. Mais do que o estrago feito nas eleições de 2018 com a disseminação de inverdades sobre candidatos e suas biografias, o que evidenciávamos e se configurou em tragédia no Brasil foram as fake news produzidas durante a pandemia do Coronavírus. Vale lembrar que a incidência de notícias falsas talvez se tenha dado em menor grau na eleição de 2020, muito por conta dos alertas e do farto material que colhemos durante as sessões da CPMI. Estes puderam alicerçar a elaboração de ações implantadas pelo Tribunal Superior Eleitoral no último pleito e até mesmo no inquérito instalado no STF sobre atos antidemocráticos e ameaças aos ministros da Corte.


O que temos como certo é que vidas poderiam ter sido salvas se o próprio presidente da República não fosse um daqueles que defendem abertamente o tratamento precoce e ineficiente de uma doença que só pode ser evitada com distanciamento social, uso de máscaras, higiene máxima das mãos e com a tão sonhada vacina. E, apesar de concordar com os adjetivos proferidos pelo ex-secretário de Comunicação de Bolsonaro, não vou me apegar somente a eles, pois nominarei outros, uma vez que são criminosos o incentivo e os indícios do uso de dinheiro público na produção de notícias falsas em um período de emergência sanitária global como o que estamos enfrentando desde março de 2020.


É gravíssimo que sites governamentais possam ter sido usados para propagar informações inverídicas e que o orçamento público tenha abastecido teorias não científicas e absurdas em relação ao contágio de um vírus tão mortal quanto mutante. É abjeto que o chamado “gabinete do ódio”, com sede fixa no Palácio do Planalto, conforme as afirmações de ­depoentes inquiridos por parlamentares nas sessões da CPMI das Fake News em 2019 e 2020, tenha promovido uma verdadeira rede de desinformação que desafia a ciência e faz o País – exemplo de cobertura vacinal no mundo – duvidar da eficiência das vacinas. Mais doloso é o fato de parte expressiva da nação acreditar que um remédio como a cloroquina faz milagres e pode curar um vírus que comprovadamente ainda não tem cura. 


Ainda mais abjeto é saber que a desinformação em tempos de Covid-19 atinge em cheio as mulheres. Onde nos deparamos com notícias como estas: “Abortos indesejados disparam 366% seis semanas após vacinas contra Covid-19”, “Mulheres vacinadas desenvolvem câncer de mama”, ou “As vacinas causam infertilidade”, todas elas com a clara intenção de alarmar as mulheres e convencê-las de que as vacinas contra Covid-19 não são seguras – frase da jornalista Cristina Tardáglia, em seu preciso texto publicado no UOL. Como se não bastasse a pandemia acumular nas “costas femininas” o trabalho doméstico com o home office ou o desemprego, que se mostra mais fortemente para aquelas que são mães e têm de abandonar seus postos de trabalho para exercer também a função de professora nas lições online dos filhos. Desesperador é saber que os três boatos citados acima se encontram nos trending topics das redes sociais e se alastram como verdades em aplicativos de mensagens.  


É urgente, é para ontem, é para já que façamos algo contra a promoção da desinformação que brinca com vidas em nosso país. Como relatora da CPMI das Fake News e com a responsabilidade que este cargo representa, estarei atenta a todos os novos dados e indícios que possam ser colhidos na CPI da Pandemia, pois estes muito nos servirão no relatório final que fizermos com as evidências das digitais deste governo na história falsa construída para desacreditar a ciência, as autoridades sanitárias mundiais ou na possível destinação de recursos públicos para a produção de desinformação que confunde e causa o padecimento de brasileiros e brasileiras de forma lenta e sádica. E é com tristeza que lhes digo: não há fake news mais criminosa do que aquela que promove deliberadamente a morte de uma população.

Gripe russa foi um coronavírus?(Hélio Schwartsmanm, FSP, 30 5 21)

 Gripe russa foi um coronavírus?

COLUNISTAS

domingo, 30 de maio de 2021 


 

Folha de S. Paulo  / Opinião

Hélio Schwartsman


são paulo Não muito tempo atrás, o mundo já enfrentou uma mortífera pandemia de coronavírus. Essa fascinante hipótese é levantada por Nicholas Christakis em "Apollos Arrow", livro que já comentei aqui.


Em maio de 1889, em Bukhara (no atual Uzbequistão), uma doença um pouco diferente emergiu. Ela ficou conhecida como gripe russa e em pouco tempo ganhou o mundo. Em dezembro, já chegara a São Petersburgo, infectando cerca de metade da população. Em seguida, alcançou as metrópoles europeias.


O vírus não teve dificuldade para cruzar o Atlântico. Os americanos, que inicialmente desdenharam da doença, foram duramente atingidos. Na primeira semana de janeiro dei890, Nova York contoui.202mortos. Hospitais ficaram apinhados.


A gripe russa teve sua taxa de ataque estimada em 45% a 70%. A taxa de letalidade (CFR) foi calculada em 0,1% a 0,28%, e o Ro, em 2,1.


Tradicionalmente, essa epidemia é atribuída a uma cepa do vírus influenza, o H3N8 ou o H2N2, mas há indícios de que o agente causador possa ser um coronavírus. Parte significativa dos doentes apresentava mais sintomas gastrointestinais ou músculo-esqueléticos do que respiratórios, o que é mais comum com coronavírus do que com influenza.


Mais, a gripe russa causou muitos óbitos entre idosos e poupou as crianças, o que lembra muito o SarsC0V-2. 0 padrão da influenza é matar muito idosos e crianças, poupando mais os jovens e os adultos.


Análises genéticas do OC43, uma das espécies de coronavírus que infectam nossa espécie, mostram que ele saltou de um reservatório animal, provavelmente o gado, para humanos no final do século 19, o que o torna um suspeito cronologicamente plausível.


Se a hipótese de Christakis é correta, a boa notícia é que, depois de sucessivas ondas que se estenderam até 1892, o OC43 e seus hospedeiros humanos chegaram a um "modus vivendi". Hoje o OC43 não causa mais que resfriados comuns.

sábado, 29 de maio de 2021

Video com eclipse e lua gigante


 

O Brasil do meu coração(Larry Rohter, Época, 28 5 21)

 

L.R. - O Brasil do meu coração

sexta-feira, 28 de maio de 2021 

Larry Rohter

Sem perspectiva de pôr os pés em solo brasileiro até a pandemia terminar, gostaria de enumerar algumas das coisas de que sinto falta ou de que tenho lembranças afetuosas



Não gosto de farofa, não entendo muito de futebol e não sei sambar. Se eu fosse brasileiro, seria um péssimo exemplo de brasilidade. Mas gosto, gosto mesmo, do país, seu povo e suas variadas paisagens. Então, de longe, após 18 meses de ausência forçada e sem perspectiva de pôr os pés em solo brasileiro até a pandemia terminar, gostaria de enumerar nesta coluna de despedida de ÉPOCA algumas das coisas de que sinto falta ou de que tenho lembranças afetuosas:



O pôr do sol na Amazônia, com suas infinitas tonalidades de laranja, rosa e roxo no céu, e tudo se refletindo sobre as águas tranquilas de um rio ou igarapé. E também o nascer do sol na Amazônia. A maneira como os brasileiros se cumprimentam. Não falo apenas dos abraços ou beijos ao chegar ou ao se despedir, mas também de saudações como “Ô, gente boa!” ou “Ô, xará!”. E com minha idade cada vez mais avançada, é sempre bom ouvir alguém me acercar na rua e dizer: “Ô, moço”. O cheiro de sabonete Phebo, variedade odor de rosas, de cor negra. A própria embalagem amarela e vermelha, com sua tipografia art nouveau, relíquia de 1910 em pleno século XXI.



Viajar de táxi numa tarde chuvosa de inverno e escutar a “Ave-Maria” tocar no rádio às 18 horas. O sotaque pernambucano. O sotaque do interior de São Paulo. A sonoridade de certas palavras: crepúsculo, cicatriz, bugiganga. Eça de Queiroz tinha razão quando disse que o brasileiro fala “português com açúcar”. Cordel e os cordelistas. Xilogravuras e os xilogravuristas. Repentes e os repentistas. A voz de Milton Nascimento. A voz de Marisa Monte.



Tomar uma água de coco verde geladinha, sentado na mesa de um quiosque na Praia de Ipanema (ou qualquer outra) às 7 horas da manhã. Depois, pedir que abram o coco para poder desfrutar a polpa.



Moqueca de peixe, de camarão, de caranguejo. Capixaba ou baiana. Com pirão. (Sim, sim, sei que pirão é apenas farinha misturada com caldo, mas certas preferências não têm lógica.)



Os nomes de certos prédios em cidades grandes. Uma vez, em São Paulo, encontrei o Edifício Stan Getz e fiquei encantado. Outra vez, não me lembro onde, dei uma gargalhada satisfeita quando cruzei com quatro edifícios no mesmo quarteirão com nomes de poetas malditos franceses do século XIX: Ed. Baudelaire, Ed. Rimbaud, Ed. Verlaine, Ed. Mallarmé.



Nomes de alguns lugarejos que visitei como correspondente. Meus amigos sempre ficam entretidos quando falo de Gogó da Onça, no Pará, ou Jataí, em Goiás. Mas Puxa Faca, em Roraima, sempre os deixa atônitos.



Por falar de nomes poeticamente esquisitos, também os de duplas sertanejas. Ouvi Milionário & Zé Rico pela primeira vez num garimpo em Itaituba nos anos 1970, e adorei. Comecei a colecionar discos de duplas com nomes engraçados: Abel & Caim, Redator & Jornalista, Marechal & Rondon, Marlboro & Hollywood, Domyngo & Feryado.



O cheiro da floresta depois de uma chuva forte. Sebos. De livros ou de discos, não importa. Passar um domingo de manhã na feira dos nordestinos no Pavilhão de São Cristóvão.



Estar em casa às 17 horas de um domingo com a TV desligada e, mesmo assim, poder acompanhar o placar do jogo de futebol através do gritos e aplausos dos vizinhos. Muito barulho sempre significa gol do Flamengo.



Viajar numa gaiola de Tabatinga até Belém, descendo o Solimões até Manaus, com paradas em lugares como Santo Antônio do Içá e Fonte Boa, e depois o rio-mar do Amazonas.



Viajar de ônibus interestadual ou intermunicipal. De Santarém para Brasília via a Transamazônica foi uma aventura inesquecível. Mas mesmo os trajetos mais modestos, como Salvador-Juazeiro, Porto Alegre-Santo Ângelo, ou Vilhena-Porto Velho são fascinantes, devido às vistas espetaculares ou cenas do cotidiano visíveis da janela de um veículo em movimento. Até as paradas nos lanchonetes do tipo Graal são interessantes.



Passar o Natal numa praia ensolarada, tomando um refrigerante “estupidamente gelado” e pensando no frio e a neve da minha cidade natal, Chicago. Os orquidários de Petrópolis e Teresópolis. As orquídeas que brotaram no tronco do abacateiro no quintal da minha casa.



O Museu Goeldi, em Belém, com sua coleção de artefatos indígenas e seu zoológico e jardim botânico. A Casa do Pontal, no Rio, com sua coleção de artes populares. O Museu do Homem do Nordeste e o Instituto Ricardo Brennand, no Recife. Sorveterias. Em qualquer lugar e qualquer hora. Sabor preferido: coco queimado. Mas, em Santarém, sempre o sorvete de açaí.



Os azulejos no pátio da Igreja de São Francisco em Salvador. Os azulejos pernambucanos. Os azulejos de modo geral. Sentar naquele pátio numa tarde clara, comparando o azul do céu com o do azulejo.

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Classes média e alta puxam a retomada do consumo(Valor, 17 5 2021)

Classes média e alta puxam a retomada do consumo

Uma das características mais impressionantes da covid-19 é o seu efeito desigual. Muitas pessoas continuam saudáveis enquanto outras ficam gravemente doentes ou morrem. O impacto econômico da pandemia tem sido desigual da mesma forma, com algumas famílias sendo poupadas de qualquer dificuldade financeira, enquanto outras sofrem ou até mesmo são dizimadas.
Essas diferenças são importantes na medida em que olhamos para a recuperação da economia depois da pandemia. Embora os gastos do consumidor respondam por cerca de dois terços da atividade econômica dos Estados Unidos, eles são um mosaico, e não um monólito.
Recentemente analisamos no MckKinsey Global Institute a demanda e o comportamento dos consumidores durante a pandemia na China, França, Alemanha, Reino Unido e Estados Unidos. Dividimos os consumidores em grupos por idade e renda para determinar a força e o formato da recuperação dos gastos. Em seguida examinamos quais mudanças comportamentais induzidas pela pandemia poderão persistir depois do fim da crise. No geral, constatamos que a natureza excepcional do choque econômico provocado pela covid-19 oferece motivos para otimismo de que os gastos do consumidor se recuperarão rapidamente assim que a pandemia terminar. Ao contrário de muitas recessões anteriores, esta não envolve o elevado endividamento do consumidor, o colapso de bolhas de ativos ou flutuações de longo prazo no ciclo de negócios. A súbita e grande queda do consumo na China, EUA e Europa ocidental, que foi de 11% a 26% nos primeiros meses da pandemia, foi resultado principalmente de cortes na prestação de serviços presenciais, especialmente viagens, entretenimento e restaurantes. Esses setores vinham anteriormente crescendo de forma constante e pesquisas com consumidores indicam um provável forte aumento da demanda depois da pandemia. O crescimento de 10 a 20 pontos percentuais na taxa de poupança nos EUA e Europa Ocidental em 2020 (equivalente ao dobro da poupança anual nos EUA) deixou muitas famílias numa boa posição para gastar. Tão logo a China conteve o coronavírus, por exemplo, os consumidores começaram a gastar novamente, retornando a atividades pré-pandemia como comer fora, ir ao cinema e concertos e fazer voos domésticos para visitara família e amigos.
Mas nossa análise de diferentes segmentos por idade e renda mostra que a recuperação deverá ser desigual, especialmente nos EUA. Enquanto muitas famílias de renda mais alta sairão da crise em grande parte sem problemas financeiros, as famílias de renda mais baixa enfrentam o desemprego e a incerteza com a renda. Além disso, muitos empregos do setor de serviços mudaram, uma vez que as empresas automatizaram suas Operações e passaram a operar online, potencialmente reduzindo a recuperação do emprego. Desse modo, assim que as medidas de estímulos terminarem, o consumo poderá se tornar mais polarizado entre os segmentos de renda.
Diante disso, acreditamos que os gastos pelos grupos de média e alta renda nos EUA voltarão aos níveis pré-pandemia em 2021-2022, enquanto os gastos dos grupos de baixa renda poderão cair abaixo dos níveis pré-pandemia assim que as medidas de estímulo terminarem. Na Europa, esperamos uma recuperação mais lenta, mas mais equilibrada, com uma desigualdade menos pronunciada do que nos EUA, embora também lá, sem estímulos governamentais adicionais, os grupos de baixa renda provavelmente se recuperarão mais lentamente do que as famílias de renda mais alta.
Mas os alvos dos gastos dos consumidores também são importantes. E a pandemia interrompeu, acelerou ou mesmo inverteu muitos hábitos de consumo antigos.
Para determinar se essas mudanças de comportamento induzidas pela pandemia deverão pegar, examinamos seis mudanças de consumo em uma ampla faixa de setores que cobrem quase três quartos dos gastos dos consumidores. Essas mudanças incluem uma aceleração das compras de supermercado pela internet, uma queda muito grande nos gastos com entretenimento ao vivo, mais gastos com itens como equipamentos de ginástica para prática em casa, equipamentos de jardinagem e equipamentos de videogame (o chamado 'home nesting'), além de uma queda das viagens aéreas a lazer, a mudança para o aprendizado remoto e um aumento das consultas de saúde virtuais.
Dois padrões consistentes se destacaram. Primeiro, a pandemia de covid-19 acelerou a adoção digital, especialmente nas compras de supermercado e cuidados com a saúde, e acreditamos que isso vai continuar.
Segundo, a pandemia e os 'lockdowns' associados, ao encorajarem o chamado 'home nesting', reverteram o declínio de longa data do dinheiro e tempo gastos em casa. Acreditamos que esse comportamento também persistirá porque algumas pessoas de famílias de alta renda continuarão a trabalhar mais de casa depois da pandemia, enquanto as famílias de baixa renda manterão o entretenimento digital e de baixo custo em casa.
Ao mesmo tempo, outros comportamentos interrompidos pela pandemia - como as viagens aéreas a lazer, o ensino presencial e as refeições fora de casa - provavelmente serão retomados com a recuperação, embora possivelmente em formatos modificados.
Embora a demanda do consumidor seja um pré-requisito para as mudanças de comportamento, a velocidade e grau com que essas mudanças são inseridas em uma população dependem das ações dos governos e indústrias. Por exemplo, inovações em produtos e serviços moldam as escolhas dos consumidores e as regulamentações governamentais ajustam seu comportamento. O que empresas e autoridades fizerem moldará o comportamento do consumidor depois da pandemia, e também os próprios consumidores.
Cada grande crise econômica do passado deixou sua marca no comportamento do consumidor. A Grande Depressão criou uma geração de poupadores cautelosos. À crise do petróleo de 1973-1974 deu início a uma mudança em direção à eficiência energética e redução do impacto ambiental. Como a maior ruptura econômica desta geração, a pandemia de covid-19 também terá um impacto duradouro sobre o comportamento do consumidor mas um impacto que poderá ser mais variado e diferente de uma maneira nunca vista.

domingo, 16 de maio de 2021

Diplomacia e turismo da vacina(Celso Ming, Estado, 16 5 2021)

 CELSO MING - Diplomacia e turismo da vacina


domingo, 16 de maio de 2021 


 

O Estado de S. Paulo  / Economia

O país que primeiro entendeu a importância da chamada diplomacia da vacina foi a China. Logo no início da pandemia, colocou à disposição de outros países os insumos de suas vacinas. Seu objetivo foi dar um passo em direção ao mercado mundial da saúde, hoje avaliado em quase US$ 9 trilhões por ano.


Agências europeias vêm oferecendo pacotes de viagem que incluem vacinação com a Sputnik V em Moscou ou em São Petersburgo. Por iniciativa de governantes ou, mesmo, de instituições privadas, turistas passaram a ser convidados para se imunizar nos Estados Unidos. O prefeito de Nova York, Bill de Blasio, os chamou para serem vacinados na Times Square e algo assim foi o que fizeram empresas de Miami. É provável que outras autoridades também escolham esse caminho, com o objetivo de aumentar o fluxo de turistas.


Também é parte integrante da diplomacia da vacina dos Estados Unidos a sugestão do presidente Joe Biden de apoiar a proposta da África do Sul e da Índia na OMS de quebrar as patentes das principais vacinas. Além disso, a Casa Branca anunciou que, em dois meses, até 60 milhões de doses da AstraZeneca serão doadas a países pobres ou com a vacinação atrasada.


Do ponto de vista do governo dos Estados Unidos, este não é apenas mais um lance geopolítico de enfrentamento à China, que vai ocupando espaços globais, nem de um programa de ajuda a países carentes. Tampouco se trata apenas de operação de melhora da imagem depois do estrago produzido pela administração Trump. Tratase, principalmente, de iniciativa que apressa a recuperação dessas economias que, assim, tanto poderão voltar a importar dos Estados Unidos como voltar a produzir bens primários e intermediários em falta, o que vem sendo obstáculo para restabelecimento das cadeias globais de suprimento.


A União Europeia é que parece ter ido na contramão quando passou a defender a criação de um passaporte da vacina, cujo objetivo é barrar a entrada de potenciais infectados pela covid-19. Em todo caso, alguns dos seus políticos vêm lembrando que "ninguém está a salvo enquanto todos não estiverem a salvo".


O verão está chegando ao Hemisfério Norte e, com ele, a alta temporada do turismo. Esta é uma das principais atividades econômicas de países da Europa, que ficou estancada em 2020 pelo necessário distanciamento e pela proibição de inúmeros voos internacionais. É um setor que responde por 12% do PIB da Espanha; por 7,4% da França; cerca de 6,0% da Itália; 6,8% da Grécia; e 8,0% de Portugal, conforme dados da OCDE.


Aqui no Brasil, a proposta de que empresas privadas importem vacinas passou a ser incompreensivelmente considerada prática desleal. E, no entanto, se uma iniciativa dessas fosse acatada, mais gente estaria imunizada e mais rapidamente haveria recuperação da atividade econômica e do emprego.


Há quem veja prática antiética nos beneficiados pelo turismo da vacina, sob o argumento de que aumenta a desigualdade. Isso não faz sentido. Então, para enfrentar a desigualdade seria melhor não comprar computador, já que tanta gente não pode tê-los?

sexta-feira, 14 de maio de 2021

O ataque de Moscou(Pedro Doria, Estado, 14 5 21)

PEDRO DORIA - O ataque de Moscou


sexta-feira, 14 de maio de 2021 


 

O Estado de S. Paulo  / Economia

A Colonial Pipeline, empresa que controla o maior oleoduto americano, que vai do Texas a Nova York, pagou US$ 5 milhões em resgate para um grupo hacker russo. Foi agora, no fim de semana. Os "sequestradores" conseguiram injetar na rede interna da operadora um malware, espécie de vírus que pega os dados de uso corrente na empresa, criptografa tudo, e ninguém consegue mais trabalhar. Só com uma senha - e a senha entregam mediante resgate pago em criptomoedas como bitcoin. Impossíveis de serem localizadas.


O caso saiu na imprensa do mundo todo, mas não é raro. É, aliás, bem comum. Este chamou atenção porque 45% da gasolina, do diesel e do diesel de aviação consumidos na Costa Leste vêm por este duto. Não tem caminhão tanque em quantidade nos EUA ou em nenhum lugar para substituir. Descoberto no último dia 7, sexta-feira passada, fez com que o duto precisasse ser imediatamente fechado. Se a situação não tivesse sido regularizada até a terça, ia começar a faltar combustível em Nova York, Washington, Boston, Miami - alguns dos principais centro do país, inclusive a capital. Pior. As petroleiras no Golfo do México, a um ponto, poderiam também começar a ter dificuldade de escoar a produção diária, sem ter onde armazenar.


O resgate foi pago em horas, no próprio dia 7. Contra a recomendação do FBI, de acordo com a agência Bloomberg, que descobriu alguns dos detalhes de como foi a negociação. Quando a notícia apareceu nos jornais, sem que ninguém soubesse fora das altas esferas, os engenheiros da Colonial já tinham a senha e se dedicavam ao lento processo de decodificar a criptografia e botar de pé novamente os sistemas.


Estes ataques - chamados ransomware - são razoavelmente comuns. Atingem pessoas físicas que se descuidam e clicam no link de e-mails que não deviam, mas têm por alvos também grandes empresas. Há poucos meses, o Superior Tribunal de Justiça, aqui no Brasil, sofreu um do tipo. No caso da Colonial, porém, há ali um alerta particularmente importante.


O grupo responsável, DarkSide, começou a operar em meados do ano passado e se especializa em ataques de grande porte. Tudo na casa dos milhões de dólares. Alguns de seus integrantes já foram entrevistados por especialistas em segurança via sistemas de chat que garantem anonimato. Como se comunicam em russo, como a documentação de seu vírus é também em russo, como o software se baseia noutro vírus que é sabidamente russo, a suspeita é que sejam de lá.


Hackers russos são ambíguos. Muitos trabalham ou para o Exército ou para a FSB, a agência de espionagem. E, ao mesmo tempo, tocam em paralelo uma atividade criminosa. As linhas entre uma função e outra são tênues. O fato de agirem no underground lhes permite travar contatos que, em geral, hackers que operam para as forças da lei têm mais dificuldade de obter. Isto quer dizer, entre outras coisas, aprender técnicas. Mas como também trabalham para o governo, em Moscou, nunca está claro quando um ataque é uma operação de sequestro pura e simplesmente, ou quando é serviço de espionagem.


Mas a mensagem é claríssima: a Colonial pagou o resgate. Poderia ter recebido ou não uma senha para botar seus sistemas de pé em retorno. Recebeu. Não era certo. A Rússia, nesta semana, poderia ter interrompido o fluxo de combustível para a região mais populosa dos Estados Unidos.


Todo mundo está trabalhando com a ideia de que houve um crime praticado por piratas modernos. Mas o recado é claro. Poderia ter sido um ataque vindo de Moscou.


domingo, 9 de maio de 2021

Vacinação de crianças(Fernando Reinach, Estado, 9 5 2021)

Vacinação de crianças


sábado, 8 de maio de 2021 


 

O Estado de S. Paulo  / Metrópole

FERNANDO REINACH


Enquanto tentamos conseguir as doses necessárias para manter nossa lentíssima campanha de vacinação, os países que já estão em fase adiantada de imunização têm outras preocupações. A mais relevante para o Brasil é a vacinação das crianças.


Na Inglaterra e nos EUA, as pessoas ansiosas para serem vacinadas já receberam suas doses e a campanha está mudando de estratégia. Agora o desafio é vacinar quem resiste a ser vacinado e a compra da terceira dose, um reforço a ser ministrado com o objetivo de estender a proteção a novas variedades. Os principais fabricantes já estão desenvolvendo versões: a Moderna terminou um pequeno estudo de Fase 3 que demonstrou que sua terceira dose protege contra variantes, incluindo a de Manaus. A Pfizer divulgou resultados semelhantes para a variedade inglesa e da África do Sul.


Mas para esses países o mais importante é iniciar a vacinação de crianças e jovens. Os principais fabricantes já publicaram estudos, mostrando que suas vacinas são seguras e eficientes para esse grupo. A Pfizer já foi aprovada para uso de crianças a partir dos 12 anos no Canadá e provavelmente será aprovada nos EUA e na União Europeia nas próximas semanas. O plano atual é iniciar a vacinação imediatamente.


Por que tanta pressa se a covid-19 é geralmente mais fraca e menos frequente nos jovens (das mais de 560 mil mortos nos EUA só 332 tinham menos de 18 anos)? Duas razões são fáceis de entender: uma é o desejo de reabrir todo o sistema educacional de forma segura e definitiva. Outra é vacinar a maior fração possível da população para evitar novas ondas de infecção. Outro motivo envolve a direção em que o SARS-CoV-2 pode evoluir.


Na primeira onda, que ocorreu em 2020, o vírus atacou principalmente os mais velhos. A principal razão é que o vírus ainda não havia sofrido pressão evolutiva, sendo pouco infectante e menos letal. Essas características fizeram dos idosos e dos adultos com comorbidades as únicas vítimas possíveis para a cepa original. No início de 2021, surgiram variantes mais infecciosas, capazes de reproduzir com mais facilidade no corpo humano. Foi a seleção natural. Após surgirem ao acaso, resultado de mutações aleatórias, as variantes capazes de atacar adultos saudáveis passaram a infectar uma nova população de seres humanos que estava fora do alcance de seus ancestrais. Foi assim que ganharam espaço.


Até agora essas novas variedades ainda não se mostraram capazes de infectar facilmente jovens e crianças. Essa faixa etária, por enquanto, é o único grupo de humanos em que o vírus ainda não conseguiu penetrar. Na medida que os mais velhos são vacinados e os adultos também, as variedades atuais, e as novas que vão surgir, terão grande dificuldade para continuar a se propagar entre adultos. Isso cria uma enorme vantagem competitiva para qualquer variedade que seja capaz de se propagar entre jovens e crianças ou escape das vacinas. Para evitar seu surgimento e dispersão, o lógico é vacinar os adultos com a terceira dose e todos os jovens o mais rápido possível.


É importante ressaltar que apesar de muitos bebês e crianças estarem sendo infectados e internados nas UTIs, ainda não foi identificada uma variedade capaz de romper a barreira que impede que o vírus infecte os jovens (a natureza dessa barreira é pouco conhecida, mas investigada). Tampouco po- demos ter certeza de que essa barreira venha a ser rompida e novas variedades capazes de infectar crianças venham a surgir. Mas o que os cientistas têm certeza é de que a pressão da seleção natural causada pela vacinação em massa de adultos e idosos cria um ambiente propício para a rápida propagação de variedades capazes de infectar crianças e adolescentes, o que seria uma catástrofe.


É por esse motivo que países que acreditam na ciência e no processo de evolução estão se preparando para iniciar a vacinação dos jovens. Por aqui, onde só reagimos quando estamos com a água no pescoço, esse problema só vai ser enfrentado quando, numa terceira onda, crianças começarem a morrer nas UTIs. E óbvio, não teremos as vacinas necessárias. Não precisava ser assim.


Deve-se vacinar maior fração possível da população para evitar novas ondas de infecção



terça-feira, 4 de maio de 2021

Erradicação da pobreza: como a China conseguiu?(Yang Wanming, Correio Braziliense, 4 5 21)

Yang Wanming - Erradicação da pobreza: como a China conseguiu?



terça-feira, 4 de maio de 2021


 

Correio Braziliense  / Opinião

» Yang Wanming Embaixador da China no Brasil


A pobreza é um dos maiores desafios para o desenvolvimento e a governança global. Maior país em desenvolvimento do mundo, a China há muito tempo enfrenta esse flagelo. Desde 2012, o governo chinês travou uma batalha decisiva contra a pobreza. Ao retirar quase 100 milhões de pessoas da pobreza, a China cumpriu a árdua missão de erradicar a miséria absoluta. Pelos padrões do Banco Mundial, a China responde por mais de 70% da redução da população em pobreza mundial.


No livro branco Alívio da pobreza: Experiência e contribuição da China, lançado em abril deste ano, a China compartilha seus conceitos e ações nessa trajetória.


Em primeiro lugar, seguir uma filosofia centrada nas pessoas. Como a erradicação da pobreza é uma das prioridades do Estado, essa agenda está sempre presente em planos de desenvolvimento a médio e longo prazos, a fim de assegurar a coerência das políticas e a estabilidade dos apoios financeiros. Há planos de ação em todas as esferas de governo, além de um completo mecanismo de trabalho.


Segundo, adotar estratégias objetivas e adequadas. Diferentemente do assistencialismo tradicional, a China adotou uma abordagem por meio de promoção de desenvolvimento, com táticas mais precisas para impulsionar a melhoria das condições de desenvolvimento das áreas pobres e elevar o nível de escolaridade e de qualificação laboral da população carente. Tendo em vista as diferenças regionais e demográficas, foram tomadas medidas bem direcionadas: desenvolvimento industrial, realocação da população de áreas inóspitas, compensação ambiental, melhoria da educação, treinamento vocacional e seguridade social.


Xinjiang, por exemplo, a maior região autônoma da China em extensão territorial e em percentagem de população de minorias étnicas, tinha também vários bolsões de pobreza. Na região onde há maiores produtores de uva e melão, o governo local promove tecnologias de conservação e beneficiamento para aumentar o valor agregado desses produtos. Também são oferecidos cursos de produção de joias, aproveitando-se do recurso mineral de jade. Já nas áreas produtoras de algodão são difundidas técnicas têxteis e o manejo de colheitas mecanizadas. Nos últimos 60 anos, um total de 3 milhões e 89 mil habitantes locais saíram da pobreza, o PIB per capita de Xinjiang aumentou quase 40 vezes e a expectativa de vida subiu de 30 para 72 anos.


Terceiro, convergir esforços conjuntos. Para completar a meta de erradicar a pobreza, a China implementou um sistema abrangente, que conta com a participação do governo, da sociedade e do mercado. Por meio de incentivos tributários e outras políticas, promoveu o fluxo de talentos, capital e tecnologia de 342 localidades mais desenvolvidas do Leste para 570 destinos menos favorecidos no Oeste. Estimulou ainda empresas privadas, organizações sociais e indivíduos a contribuírem, conforme suas vantagens, para a redução da pobreza nos setores de indústria, ciência e tecnologia, educação, cultura, saúde e consumo. Ao mesmo tempo, valendo-se da tecnologia digital, foram incentivadas novas formas de negócios, como comércio eletrônico rural e ecoturismo, para motivar o empreendedorismo e a criatividade na população de baixa renda.


Quarto, promover a cooperação internacional. Nos mais de 70 anos desde a fundação da República Popular, a China disponibilizou mais de US$ 60 bilhões para ajudar quase 170 países e organizações internacionais, implementou mais de 5 mil projetos de assistência externa, apoiando os países em desenvolvimento na implementação dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. O governo chinês criou o Fundo China-Nações Unidas para a Paz e o Desenvolvimento e o Fundo de Amparo à Cooperação Sul-Sul, impulsionando a concretização da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU. A iniciativa chinesa "Cinturão e Rota" também ajuda os países parceiros no combate à pobreza. O Banco Mundial prevê que parcerias no âmbito dessa iniciativa ajudarão a tirar 7,6 milhões de pessoas da pobreza extrema e 32 milhões da pobreza moderada.


Sob o impacto do alastramento da pandemia, a humanidade vê crescer seu deficit de governança e de desenvolvimento. A China está disposta a trabalhar com o Brasil e os demais países para fortalecer o intercâmbio e a cooperação na redução da pobreza, unir forças para construir uma comunidade de futuro, compartilhado com vida digna e progresso comum.




sábado, 1 de maio de 2021

O fruto do nacionalismo(Fernando Reinach, Estado, 1 5 21)

 FERNANDO REINACH - O fruto do nacionalismo

COLUNISTAS

sábado, 1 de maio de 2021 


 

O Estado de S. Paulo  / Metrópole



O Brasil se mostrou incapaz de executar um distanciamento social rígido e longo o suficiente para controlar o espalhamento do coronavírus. Temos relaxado as medidas assim que as mortes se estabilizam.


Nessas condições, a única medida que pode controlar a pandemia, antes que todos sejam infectados, é a vacinação. O consenso nos países que estão controlando a pandemia é de que 70% a 85% da população precisa estar imunizada, pela vacina ou pela infecção, para conter a pandemia. Esses números podem mudar, dependendo das novas variantes.


Em meados de 2020, o governo definiu sua estratégia inicial. Recusou-se a comprar doses prontas de vacina e apostou na produção local pela Fiocruz e pelo Instituto Butantan. Como não estavam desenvolvendo as próprias vacinas, estes dois fizeram parcerias com produtores estrangeiros: o Butantan com a Sinovac, chinesa, e a Fiocruz com a AstraZeneca.


Esses contratos de transferência de tecnologia preveem duas etapas. Nos primeiros seis meses de 2021, os institutos receberiam a vacina praticamente pronta em grandes lotes e fariam o envase no Brasil.


Durante esse período, os dois institutos construiriam fábricas para produzir localmente a vacina (o chamado IFA), de modo que, a partir do segundo semestre, a produção fosse totalmente nacional. Para isso, ambas receberam financiamento do governo e doações para construir as fábricas. Se desse certo, o Brasil teria 400 milhões de doses até o fim de 2021, suficientes para vacinar toda a população.


Infelizmente o plano desandou. Estamos no início de maio e apenas 64,5 milhões de doses foram entregues 32,3% do previsto para o primeiro semestre. Já a importação de ingrediente farmacêutico ativo (IFA) tem sofrido atrasos e cortes - as fabricantes não têm cumprido os prazos.


Muito provavelmente a entrega do IFA correspondente aos primeiros 200 milhões de doses só chegará no segundo semestre. É isso que explica nossa vacinação a conta-gotas.


Além disso, as fábricas para produção nacional estão atrasadas: a Fiocruz promete agora que a sua estará em operação em setembro, mas sequer conseguiu fechar o contrato de transferência de tecnologia. O Butantan já anunciou que a sua só ficará pronta no início de 2022.


Para piorar a situação, as duas vacinas em que o Brasil apostou são provavelmente as de menor eficácia. Hoje os cientistas acreditam que as melhores vacinas são as baseadas em mRNA (Pfizer e Moderna). A da AstraZeneca, apesar de aprovada na Europa e no Brasil, ainda não foi aprovada nos Estados Unidos. E a Coronavac ainda é pouco conhecida e não se sabe se ela será aprovada pela Organização Mundial da Saúde.


Para amenizar o problema, o Instituto Butantan resolveu desenvolver em parceria com os americanos a Butanvac, cujos testes em humanos (fases 1, 2 e 3) sequer foram aprovados pela Anvisa. E, portanto, nada se sabe sobre sua eficácia.


Agora, com a chegada do primeiro milhão de doses da vacina da Pfizer, o Brasil está diversificando suas apostas, o que deveria ter feito um ano atrás. Se a Pfizer entregar de fato 100 milhões de doses até setembro, ela pode vir a ser vacina com mais doses no País - já que é pouco provável que o Butantan e a Fiocruz entreguem esse número de doses até lá.


A partir de agora, a estratégia mais lógica aqui é garantir que Butantan e Fiocruz consigam produzir o IFA o mais rápido possível, e combinar as doses desses programas com as vacinas importadas, de preferência as de tecnologia do mRNA (Pfizer e Moderna) e as que necessitam de somente uma dose (Jansen).


Essas vacinas provavelmente vão ser aprovadas para crianças nos próximos meses, o que dificilmente ocorrerá com a Coronavac. Se o governo tiver sucesso nessas negociações, pode ser que consiga aplicar as 400 milhões de doses até o fim do ano.


Mas uma coisa é certa, chegaremos no fim do ano com mais de 600 mil mortos ao evitarmos o distanciamento social rigoroso. Quantos dessas mortes poderiam ter sido evitadas se a estratégia de vacinação tivesse rejeitado o nacionalismo exacerbado é difícil de saber, mas serão centenas de milhares.


É difícil saber quantas vidas seriam poupadas ao evitar o nacionalismo exacerbado