sábado, 31 de outubro de 2020

O que esperar da vacina(Fernando Reinach, Estado, 31 10 2020)


FERNANDO REINACH - O que esperar da vacina

COLUNISTAS

sábado, 31 de outubro de 2020 


  

O Estado de S. Paulo  / Metrópole


Sem um medicamento que cure a covid-19 e com uma tolerância cada vez menor para as medidas de distanciamento social, todas as esperanças foram depositadas na vacina. É aconselhável diminuirmos as expectativas. É muito provável que no próximo ano a vacina não vá acabar com a necessidade de distanciamento social.


Infelizmente existe um compromisso entre a velocidade com que a Fase 3 dos testes é conduzida e o que saberemos sobre as propriedades das vacinas. Quando uma pessoa é exposta ao Sars-CoV-2 ela pode se infectar ou não. Uma vez infectada, essa infecção pode ser tão leve que a pessoa sequer apresente sintomas ou tenha leves. Outros podem precisar de hospital, e de oxigênio. Algumas pessoas serão entubadas. Finalmente, a pessoa pode se recuperar ou morrer. Uma vacina pode interferir em cada um desses passos. Ela pode impedir que a pessoa seja infectada, ou pode, se for infectada, aumentar as chances de que a infecção seja assintomática. Caso não tenha nenhum desses efeitos, ela pode garantir aos vacinados uma covid-19 com sintomas leves (é o caso da gripe). Mas ela pode reduzir a mortalidade mesmo dos que apresentem sintomas mais graves. Além disso, a vacina pode funcionar em toda a população ou ser mais eficaz em jovens.


Quando os cientistas planejam um estudo de Fase 3, é necessário definir qual desses efeitos se quer medir, qual a pergunta que o estudo pretende responder. São os chamados desfechos do estudo (endpoints). O estudo pode ter como objetivo saber se os vacinados são menos infectados, ou verificar se os vacinados morrem menos ou têm casos mais leves. Idealmente um estudo de Fase 3 deveria tentar responder a todas essas perguntas, permitindo entender exatamente o efeito da vacina sobre a história natural da doença nos vacinados.


O problema é que, para medir cada um desses desfechos, a duração e o tamanho do estudo (número de voluntários envolvidos) são muito diferentes. Em um estudo que dure seis meses e os vacinados estejam em um ambiente em que ocorre 0,12 infecção por dia em cada grupo de 1.000 pessoas (como durante o pico de casos na Inglaterra) são necessários 1.880 pessoas para verificar se a vacina diminui a taxa de infecção. Para saber se a vacina altera o número de casos sintomáticos são necessários 3.154 voluntários e para saber se altera a mortalidade são necessários incríveis 619.130 voluntários.


Esses números são para pessoas de 20 a 29 anos (nas quais a letalidade é muito baixa). Mas se o estudo deseja determinar o efeito da vacina sobre letalidade entre pessoas de mais de 80 anos o número cai de 619 mil para 24 mil voluntários. Esses números são válidos para um ambiente onde a taxa de contaminação é muito alta.


A necessidade de aprovar e colocar a vacina no mercado rapidamente forçou os epidemiologistas a planejar estudos de Fase 3 que, num prazo de 4 a 6 meses, pudessem dar o máximo de informação. Esses estudos têm como objetivo inicial (desfecho ou endpoint medido) saber se a vacina candidata reduz ou não o número de infectados. Num primeiro momento não serão suficientes para informar com uma certeza estatística se as pessoas infectadas após serem vacinadas terão casos mais leves ou menor chance de morrer.


Esses dados só serão obtidos muito mais à frente, talvez depois de 1 ou 2 anos de estudo. Além disso a barreira para aprovar as vacinas foi baixada. O que se pode esperar das primeiras vacinas aprovadas é que elas diminuam em mais de 50% a probabilidade de uma pessoa ser infectada, mas não saberemos se essa pessoa for de fato infectada se a doença será mais brande e se a letalidade do vírus será reduzida pela vacina.


É o melhor que a ciência pode entregar nesse curto prazo, mas seguramente não vai permitir que abandonemos tão cedo as máscaras e outros cuidados.


MAIS INFORMAÇÕES: WHAT DEFINES AN EFFICACIOUS COVID-19 VACCINE? A REVIEW OF THE CHALLENGES ASSESSING THE CLINICAL EFFICACY OF VACCINES AGAINST SARS-COV-2. LANCET INFECT DIS HTTPS://DOI.ORG/10.1016/ S14733099(20)30773-8




É provável que ela não vá acabar com a necessidade de distanciamento social


sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Nelson Gonçalves eterno


 

Vulnerabilidade(Celso Ming, 30 10 2020)


 CELSO MING - Vulnerabilidade


sexta-feira, 30 de outubro de 2020


  

O Estado de S. Paulo  / Economia


Em audiência pública na Comissão Mista do Congresso, o ministro da Economia, Paulo Guedes, expôs a relação íntima entre a guerra sanitária contra a covid-19 e o desempenho da economia: "Só com a vacina estaremos livres desse pesadelo; antes disso, continuamos vulneráveis". A vulnerabilidade da sociedade não é apenas ao novo coronavírus; é, também, à economia.


Trata-se de avaliação bem diferente da que foi feita há dias pelo presidente Bolsonaro, para quem vacina boa tem de necessariamente a ver com a cor do rótulo da ampola: se for chinesa, não presta, sabe-se lá por quê. Não importa para ele se o gato caça ou não a rataiada, mas a cor da pelagem do felino.


Quando desabaram nestas quarta e quinta-feira, os mercados se comportaram como se a segunda onda de covid19, que atinge fortemente a Europa, passasse a exigir novas medidas de isolamento social também por aqui - como Alemanha e França já decretaram e, provavelmente, os Estados Unidos decretarão logo após as eleições.


Por enquanto, não há sinal de segunda onda no Brasil. Mas, se ela acabar chegando, será inevitável reforçar as medidas de isolamento social. E, nessas condições, a atividade econômica pagará outra vez seu preço, como começa a pagar na Europa.


Nesse sentido, a partir de quando estiver disponível, a vacina não livrará o Brasil apenas do pesadelo da doença, como lembrou o ministro Paulo Guedes, mas, também, de nova paradeira e do agravamento das condições das finanças públicas. Infelizmente, a despeito de algumas declarações de políticos, não há garantia de que a vacina, seja qual for sua procedência, estará amplamente disponível no Brasil ainda neste fim de ano.


Foi por levar em conta essa vulnerabilidade potencial que o Banco Central entendeu que devesse manter uma política de dinheiro mais solto (e de juros básicos de apenas 2,0% ao ano), sem prazo para revertê-la.


Mas isso não basta. Vai ser preciso atacar a frente fiscal. A maneira mais eficaz de fazer isso é dar andamento firme às reformas administrativa e tributária. Se não houver uma sinalização clara nessa área, a falta de confiança poderá se acentuar, o dólar voltará a empinar e será difícil evitar que a alta dos importados e dos demais produtos cotados em dólares (combustíveis, fertilizantes, derivados de soja, milho e trigo) não seja repassada para os preços finais em reais e volte a puxar pelo custo de vida do consumidor.


Sinalização clara é o que a gente não tem do presidente Bolsonaro. Cada dia fala uma coisa. Com a mesma facilidade com que assina um decreto pela manhã, recua à tarde, como aconteceu na quarta-feira com a privatização do SUS. A sensação de falta de rumo continua forte no País.


O momento é, também, de grande incerteza para todos aqueles que mantêm uma reserva pessoal ou familiar aplicada no mercado financeiro. A inflação do ano vai para a altura dos 3%. No entanto, os juros básicos (Selic) estão parados nos 2,0% ao ano. Ou seja, os poupadores veem a enchente chegar e levar as coisas deles, sem terem para onde arrastar o sofá da sala, sem terem para onde fugir. É mais um fator que puxa pelo aumento das cotações do dólar.


COMENTARISTA DE ECONOMIA


Baixa oscilação


Apesar da forte turbulência nos mercados, a percepção de risco dos títulos do Tesouro do Brasil de 5 anos não sofreu nos últimos dias. Começou outubro à altura dos 250 pontos, mas ficou na casa dos 219,61 pontos nesta quinta-feira, mostrando risco mais baixo. Esse número diz que, para ficar com títulos do Tesouro do Brasil de 5 anos, o investidor internacional exigiu uma remuneração de 2,1961 pontos porcentuais acima da remuneração de referência, que é a do título do Tesouro dos Estados Unidos.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Turbulência financeira e a nova onda da covid-19(Celso Ming, Estado, 29 10 2020)

 

CELSO MING - A turbulência financeira e a nova onda da covid-19


quinta-feira, 29 de outubro de 2020 


  

O Estado de S. Paulo  / Economia


Nesta quarta-feira, os mercados financeiros foram invadidos por onda de forte aversão ao risco. É como se todos os bichos da floresta fugissem para suas tocas.


Veio abaixo até mesmo o mercado do ouro, multissecular porto seguro em meio a quaisquer turbulências. A onça-troy (equivalente a 31,1 gramas) chegou a cair 2,04% e fechou em baixa de 1,65%. O único ativo que continua inspirando segurança é o dólar.


Os gráficos apresentam quanto caíram algumas das principais bolsas de valores e qual foi, nesta quarta-feira, a trajetória do dólar em relação ao real, ao rand sul-africano, ao euro e ao iene.


O alarme foi disparado pelo novo toque de recolher (lockdown) parcial na Alemanha e na França, decretado para enfrentar a nova onda da covid-19. Por mais paradoxal que pareça, a principal diferença entre esta recaída e o início da pandemia ainda não está disponível. Trata-se da vacina. Mesmo as que estão em fase final de testes ainda precisarão de tempo para produção e para distribuição. Mas não estão mais no ponto zero, como em fevereiro e março, quando os pesquisadores ainda não conheciam o inimigo. Por esse ponto de vista, contra essa aversão ao risco há um limitador importante. Chegada a vacina, não haverá mais necessidade de medidas drásticas, mas, nesta quarta-feira, ninguém levou isso em conta.


Outra fonte de incerteza extrapola o campo sanitário. É a das eleições nos Estados Unidos. Por mais bem elaboradas que sejam, as pesquisas nem sempre preveem corretamente os resultados. E se há alguma probabilidade de que a voz das urnas seja submetida à decisão judicial, como pode ser desta vez, então fica inevitável a disseminação de ansiedades, que acabam passando para o preço dos ativos.


Afora esses males globais, há os específicos do Brasil. E aqui estão dois deles: o impacto da inflação e as mazelas das contas públicas.


A prévia do IPCA (que é o mesmo índice mensal, mas medido a partir de cada dia 15) mostrou uma esticada de 0,94% neste mês de outubro. Não é uma inflação que preocupa, porque é o resultado de desencontros episódicos de contas. A pandemia interferiu nos fluxos econômicos. A paradeira que se seguiu ao confinamento das famílias derrubou o consumo e desorganizou as redes de produção e distribuição. Depois, veio a distribuição do auxílio emergencial, que aumentou repentinamente o consumo de alimentos e de materiais de construção num mercado semiabastecido. O afrouxamento dos esquemas de confinamento, por sua vez, voltou a acionar o consumo e pegou muitas empresas desprovidas de matérias-primas para a retomada.


Esses descasamentos nas redes de suprimentos produziram uma inflação momentânea que tende a perder força à medida que a vida econômica se normalizar. Questão mais grave e ainda sem resposta é a do agravamento da situação das contas públicas. A dívida vai para 100% do PIB, os juros de longo prazo embutidos nos negócios de revenda de títulos públicos voltaram a embicar para cima, o que demonstra preocupação crescente com a capacidade de solvência do Tesouro. O governo permanece calado sobre como pretende enfrentar essa encrenca. Mas, passadas as eleições municipais, ficarão inevitáveis a edição de mais um saco de maldades para tentar contê-la e de mais movimentos novos que encaminhem as reformas. Se não vierem, o dólar tenderá a disparar e a alta dos importados contaminará a inflação.


Em sua reunião desta quarta-feira, o Comitê de Política Monetária (Copom) deu mais importância à deterioração do quadro fiscal do que ao repique da inflação, como ficou claro no seu comunicado.


COMENTARISTA DE ECONOMIA

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Cristiano Ronaldo e Pelé!


 

As novas ameaças e o Brasil(Rubens Barbosa, Estado, 27 10 2020)

 As novas ameaças e o Brasil


terça-feira, 27 de outubro de 2020 


  

O Estado de S. Paulo  / Espaço Aberto


Rubens Barbosa


Grande parte das facilidades da nossa vida no planeta Terra depende, para seu funcionamento diário, de objetos baseados no espaço. Sistemas de comunicação, transporte aéreo, comércio marítimo, serviços financeiros, monitoramento de clima e defesa dependem da infraestrutura espacial, incluindo satélites, estações terrestres e movimentação de dados em âmbito nacional, regional e internacional. Essa dependência apresenta sérios - e frequentemente pouco percebidos - problemas de segurança para empresas provedoras e para os governos.


Nesse cenário, começam a ser examinadas novas ameaças de ataques aos satélites em órbita que podem afetar todos os serviços e facilidades mencionados. Essas ameaças devem estar sendo avaliadas pelo governo brasileiro. Além disso, a utilização do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), no Maranhão, tornada possível depois de décadas de decisões equivocadas, representa um grande desafio para o governo e as empresas brasileiras. Não só pela necessidade de melhoria na infraestrutura da região e do próprio centro, mas também na legislação interna, sobre uma lei do espaço (que defina as atividades comerciais no espaço, como a utilização de detritos espaciais), sobre o órgão responsável pela negociação com empresas interessadas na utilização do CLA, a definição do contrato de licenciamento de lançamento, a ser assinado com a autoridade nacional e o comércio de tecnologia espacial.


Como qualquer outra infraestrutura digitalizada, satélites e outros objetos baseados no espaço são vulneráveis, em especial, a ameaças cibernéticas. As vulnerabilidades cibernéticas apresentam riscos muito sérios não só para esses objetos, mas também para infraestruturas essenciais terrestres. Se não forem contidas, essas ameaças poderão interferir no desenvolvimento econômico global e, por extensão, na segurança internacional. Cabe registrar que essas preocupações não são meramente hipotéticas. Na última década mais países e atores privados conseguiram adquirir e empregar meios para afetar esses objetos espaciais críticos com aplicações inovadoras que começam a representar uma ameaça real ao seu funcionamento.


A ideia da guerra espacial não é nova, começou com os foguetes V-2 da Alemanha. A eventual atividade bélica no espaço hoje se concentra nos instrumentos utilizados para as guerras na Terra. Os satélites são utilizados nas operações militares para identificar alvos e responder a questões estratégicas, além de localizar as forças militares e bombas e obter informações nos teatros de guerra. Isso torna os satélites alvos atrativos para mísseis terrestres. EUA, China e índia estão desenvolvendo armamentos destrutivos de objetos no espaço, visando a impedir os sinais para a Terra dos satélites militares com lasers ou mesmo os explodindo, fazendo detritos se espalharem pelo cosmo. Estão também tornando suas Forças Armadas voltadas para o espaço. Em 2019 foi criada pelo governo dos EUA a Força Espacial, serviço militar independente cujos doutrina, treinamento e capacidade estão sendo definidos pelo Pentágono.


Para tentar evitar uma lei da selva espacial começa a ser discutido algum tipo de regime multilateral. No momento não há leis nem normas específicas para uma eventual guerra espacial. O Tratado sobre o Espaço Exterior, de 1967, proíbe a utilização de armas de destruição em massa no espaço, mas não trata de armas convencionais. Se dois satélites, por exemplo, ficam muito próximos de maneira ameaça- dora, não há respostas adequadas. Em 2008 a União Europeia propôs um código de conduta voluntário para promover "comportamento responsável" nessa área. No mesmo ano, para se contrapor a essa iniciativa, China e Rússia propuseram um tratado que proibiria armas no espaço. O tratado não visava armas antissatélites, mas armas antimísseis baseadas no espaço. A oposição à iniciativa europeia, além da Rússia e da China, veio da América Latina e da África. Apesar de apoiar a desmilitarização do espaço, os países dessas regiões não aceitaram que os países com objetos no espaço pudessem ter o direito de usar a força para defendê-los. Nenhuma das duas iniciativas prosperou, mas experimentos militares com fins ofensivos continuam a ser feitos visando à eventual destruição de satélites que poderão ter efeitos devastadores para a defesa e as comunicações globais.


O governo brasileiro não poderá perder de vista as transformações positivas que ocorrerão na área aeroespacial pela redução de custos, por novas tecnologias e, sobretudo, pelo aparecimento de uma nova geração de empresários privados operando ao lado dos governos. Turismo para os ricos e mais avançada rede de comunicações para todos, exploração mineral e transporte de massa passarão a ter um impacto nos negócios e tornarão o espaço uma verdadeira extensão da Terra. Com visão de futuro, o Brasil, que passará a ter interesses concretos nesse campo, deveria fazer o acompanhamento da evolução tecnológica e geopolítica da exploração espacial.


Sem descurar das novas ameaças que começam a ser discutidas agora e poderão afetar as facilidades terrestres de que dispomos, o Brasil deveria participar dessas conversações, quando retomadas.


"País deve acompanhar a evolução tecnológica e geopolítica da exploração espacial"


PRESIDENTE DO CENTRO DE DEFESA E SEGURANÇA NACIONAL (CEDESEN)

sábado, 24 de outubro de 2020

Apartamento Fragoso Pires


 

É positivo o decreto que separa alunos com deficiência?(FSP, 24 10 2020)

É positivo o decreto do governo que possibilita separar alunos com deficiência em escolas especiais?


sábado, 24 de outubro de 2020 


  

Folha de S. Paulo  / Opinião


Não Retrocesso de décadas


Segregar é ignorar potenciais e limitar o desenvolvimento como ser humano


José de Araújo Neto Psicólogo, é fundador e presidente da AME (Associação Amigos Metroviários dos Excepcionais), entidade que há 30 anos realiza ações e projetos voltados à inclusão social


O decreto 10.502, publicado pelo governo federal no final de setembro, foi uma covardia e uma grande injustiça cometida contra as pessoas com deficiência no Brasil.


Construído na surdina e sob a influência de interesses estranhos aos anseios dessa população, o documento representa um escandaloso retrocesso frente aos esforços de inclusão empreendidos por diferentes atores ao longo dos últimos anos. Com o objetivo de instituir uma nova Política Nacional de Educação Especial, o decreto resgata visões e práticas ultrapassadas que desrespeitam os direitos humanos e são flagrantemente inconstitucionais. Em vez de estimular a inclusão das pessoas com deficiência, a adoção dos princípios contidos no texto vai ampliar a exclusão e o preconceito sofridos diariamente por elas.


Da forma como foi assinado, o decreto 10.502 se contrapõe às políticas inclusivas inscritas na Constituição de 1988, que assegura a todos os brasileiros o direito universal à educação, sem distinção de qualquer natureza. Além do texto constitucional, o documento viola também a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada no âmbito das Nações Unidas em 2007 e transformada em lei no Brasil por meio do decreto 6.949, de 25 de agosto de 2009.


Como se não bastasse, anova abordagem sugerida contraria todos os consensos pedagógicos e científicos a respeito da educação das pessoas com deficiência. Nos últimos anos, a sociedade global evoluiu muito no entendimento dessa questão, e hoje podemos afirmar com segurança que a educação de crianças e adultos com qualquer deficiência, seja física ou intelectual, deve acontecer nas escolas regulares e nas mesmas classes dos demais alunos.


Sob o falso argumento da "liberdade de escolha", os que se dizem favoráveis ao decreto parecem ignorar o histórico de discriminação e segregação que temos combatido por décadas. Impermeáveis aos argumentos amparados por fatos, dados e evidências, eles esquecem dos tempos em que havia resistência das escolas para aceitar alunos com deficiência. Graças à mobilização social, à pressão dos especialistas e ao reconhecimento das autoridades, traduzido em leis e regulamentações, essas barreiras vêm sendo progressivamente quebradas, com resultados positivos não apenas para as pessoas com deficiência, mas também para suas famílias, suas escolas, seus colegas e o conjunto da sociedade.


Hoje, perto de 90% dos estudantes com deficiência ou transtornos de desenvolvimento estudam em escolas regulares. Esse índice só pôde ser alcançado a partir da adoção de políticas públicas inclusivas nas redes de ensino comum. Chega a ser desumano propor tamanho retrocesso em uma área em que, apesar dos percalços, temos sido muito bem-sucedidos.


Ultimamente temos visto inúmeras iniciativas destinadas a valorizar a diversidade e a representatividade de minorias nas empresas. Ora, promover a inclusão das pessoas com deficiência faz parte desse mesmo processo. Sabemos que a jornada é longa, trabalhosa e requer esforços de todos. Por isso mesmo é inadmissível retroceder.


Segregar a pessoa com deficiência em escolas ditas especiais é ignorar o seu potencial, limitando o seu desenvolvimento como ser humano. A experiência recente é enriquecedora e tem contribuído para equiparar as oportunidades de acesso a uma educação de qualidade. Impedir que eles exerçam, na plenitude, seu direito à educação não é só errado: é cruel e desonesto.


Sob o falso argumento da "liberdade de escolha", os que se dizem favoráveis ao decreto parecem ignorar o histórico de discriminação e segregação que temos combatido por décadas. (...) Essas barreiras vêm sendo progressivamente quebradas, com resultados positivos não apenas para as pessoas com deficiência, mas também para suas famílias, suas escolas, seus colegas e o conjunto da sociedade


Sim Direito educacional


Falta de classes específicas marcou evasão escolar da comunidade surda


Patrícia Rezende Doutora em Educação pela UFSC, é professora associada do curso de pedagogia no Instituto Nacional de Educação de Surdos (Ines) e ativista surda pelas Escolas Bilíngues de Surdos; autora de 'Implante Coclear: normalização e resistência surda' (ed. CRV)


Qual o lugar de fala de quem responde "sim" à questão proposta? Sou professora, doutora em educação, uma das lideranças surdas de uma minoria linguística de nosso país. Um resgate histórico do que os surdos vivenciaram ao longo da última década explica o nosso "sim".


Na realização da Conae 2010 (Conferência Nacional de Educação), os seis delegados surdos, em um universo de mais de 3.000 delegados ouvintes, foram vaiados e tachados de segregadores quando apresentaram a proposta para que as escolas bilíngues de surdos fossem mantidas.


Esse não foi um episódio isolado. Sentimos o impacto das decisões unilaterais dos então dirigentes do MEC quando ameaçaram fechar o Ines (Instituto Nacional de Educação de Surdos), em 2011. Só não foi fechado porque o movimento surdo, no mesmo ano, marchou para Brasília em manifestação histórica. No Conade (Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência), protestamos contra a ameaça de fechamento do Ines e de várias escolas de surdos pelo Brasil afora.


Durante a tramitação do Plano Nacional de Educação (PNE), a comunidade surda pediu o apoio a diversos parlamentares para a inclusão de escolas e classes bilíngues de surdos no PNE. Sofremos boicotes e lobbies por parte dos inclusivistas e da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi/MEC).


Participamos de várias audiências públicas sobre o PNE. Paralelamente, em todos os estados e no DF, entregamos ao Ministério Público Federal uma carta-denúncia contra a então Secadi por ter promovido uma evasão escolar recorde dos alunos surdos, com fechamento de escolas e classes específicas, conforme demonstrado nos dados do censo escolar do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), de 2006 a 2010, fato ratificado pelo próprio Inep na redação do Enem, em 2017.


Por que a evasão escolar? Os alunos, ao se depararem com o fechamento de escolas e classes específicas, impostos pela política de educação inclusiva vigente, não se adaptaram à nova realidade, onde as aulas não são ministradas na língua de sinais.


O decreto 10.502 contempla nosso anseio por escolas e classes bilíngues de surdos, cuja língua de comunicação, instrução, ensino e interação é a libras (Li, da maioria dos surdos), e o português escrito (L2, dos surdos) é a língua dos materiais instrucionais. Estes são os melhores espaços acadêmicos para o aprendizado real. Promovem a formação da identidade linguística da comunidade surda, conforme emana a Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência.


Se a convenção nos garante o direito a uma educação condizente com nossa identidade linguística, por que esses espaços de aquisição linguística e convivência mútua entre os pares sinalizantes da língua de sinais têm sido rondados de segregação?


Os candidatos surdos, ao longo de vários anos de edição do Enem, reivindicaram a tradução das provas do certame em Libras, mas o Inep negou, por anos. Por isso, a Feneis (Federação N acionai de Educação e Integração dos Surdos) entrou com ação judicial em 2014. Fomos vitoriosos. A partir de 2017, as provas do Enem passaram a ser traduzidas em libras para os candidatos surdos.


Os surdos foram bem-sucedidos na realização das videoprovas do Enem em Libras, em 2017? Não! O problema não está na Libras, está no parco conhecimento adquirido pelos surdos, ao longo de uma educação escolar oferecida sob a imposição da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008), que desrespeitou nossos direitos linguísticos e prejudicou a aprendizagem e desenvolvimento escolar dos surdos. É hora de mudar e fazer valer nossos direitos linguísticos e educacionais.


O decreto 10.502 contempla nosso anseio por escolas e classes bilíngues de surdos. (...) Estes são os melhores espaços acadêmicos para o aprendizado real. Promovem a formação da identidade linguística da comunidade surda, conforme emana a Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência

carlos zefiro


 

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

EUA vencem batalhas contra 5G chinês(FSP, 21 10 20)

 


EUA vencem batalhas contra 5G chinês

Mais países proíbem, oficialmente ou na prática, compra de equipamentos da Huawei

quarta-feira, 21 de outubro de 2020 


  

Folha de S. Paulo  / Mercado


Vinícius Torres Freire


A em geral pacífica Suécia proibiu as teles do país de comprar equipamentos de infraestrutura de telecomunicações das chinesas Huawei e ZTE. Seguiu orientação de seus militares e do seu serviço de segurança. As empresas chinesas vão ficar fora também do 5G sueco.


E daí a Suécia? É mais um exemplo da lista agora bem relevante de países que baniram a tecnologia chinesa, oficialmente ou na prática. A restrição a essas empresas é uma discussão que ultrapassa a mera maluquice diplomática subalterna de Jair Bolsonaro.


Funcionários americanos estão oficialmente no Brasil para convencer o governo brasileiro a proibir a Huawei de fornecer equipamentos para as redes 5G. Até abril de 2021, devem ser leiloadas as frequências para 5G ("estradas" de dados) entre as teles.


Pelo menos desde 2012, há campanha americana contra as firmas chinesas que vendem infraestrutura de telecomunicações. A Huawei é a líder mundial do setor. Sob Donald Trump, a campanha se tornou conflito aberto. Entre outras medidas, Trump quer estrangular o fornecimento de softwares, chips e outras tecnologias para as empresas chinesas, além de criar rede de comunicação mundial "limpa", livre de ciberameaças - isto é, sem participação da China.


O Japão não se comprometeu com os EUA, mas a empresa japonesa que usava a Huawei vai deixar de fazê-lo. O governo, de resto, quer aproveitar a oportunidade para aumentar a participação ínfima das companhias japonesas nesse mercado, assim como os sul-coreanos. A Índia parece que discretamente vai evitar as empresas da rival China e estimula a criação de tecnologia nacional.


A Alemanha prepara leis que, na prática, vão barrar as chinesas, plano que têm apoio dos três principais partidos do país, apesar da oposição de teles e de outras empresas alemãs, que exportam muito para a China.


O Reino Unido baniu as chinesas. A França não vai fazê-lo, mas seu serviço de cibersegurança baixou normas que inviabilizam a opção chinesa. Emmanuel Macron faz lobby pelas empresas europeias do ramo, Nokia e Ericsson, que dividem com a Huawei cerca de 75% desse mercado. A Itália discute o que fazer. A Espanha não baniu ninguém, mas, como em vários países, as teles se sentem pressionadas a mudar de fornecedor.


Em suma, o mercado para as empresas da China pode se limitar a partes da Ásia, do mundo islâmico, da América do Sul e da África. Empresas e mesmo governos da Europa dizem que vai ficar mais caro e demorado implementar o 5G sem a Huawei. Ainda assim, os americanos ganham batalhas importantes.


Os especialistas discutem o futuro da Huawei, destino que pode influenciar decisões de comprar seus equipamentos. Será econômica e tecnologicamente sufocada pela ofensiva dos EUA, ficando atrasada? Ou, ao contrário, o setor pode ter dificuldade de avançar sem a presença, patentes e colaboração tecnológica da gigante chinesa? A empresa pode tentar se virar com pesquisa própria ou com "vazamentos" de insumos e tecnologias?


Um fato é que essas empresas se tornaram assunto militar e de segurança. As acusações não vêm apenas dos EUA. Na página da Polícia de Segurança sueca, seu diretor diz em entrevista oficial que a China é uma das maiores ameaças à Suécia, que o governo chinês faz espionagem cibernética e rouba tecnologia a fim de promover seu desenvolvimento econômico e militar; que isso precisa ser levado em conta na legislação do 5G. Por lei, a agência reguladora sueca de comunicações tem de seguir orientações das Forças Armadas e do Serviço de Segurança.

Reflexões sobre a sindemia(Estado, 21 10 2020)

 


MONICA DE BOLLE - Reflexões sobre a sindemia

COLUNISTAS

quarta-feira, 21 de outubro de 2020 


  

O Estado de S. Paulo  / Economia


Talvez alguns leitores já estejam familiarizados com o termo sindemia. Ele vem sendo utilizado crescentemente pela imprensa após a Organização Mundial de Saúde, além do renomado periódico científico The Lancet, terem se referido à covid-19 e suas consequências como uma sindemia. Para quem não sabe o que significa, sindemia foi o termo cunhado pelo médico-antropólogo Merrill Singer nos anos 90 com o propósito de formular novas abordagens para o tratamento de doenças e o enfrentamento de problemas de saúde pública. Sindemias consistem em situações onde duas ou mais doenças interagem biologicamente de modo adverso, onde essas doenças coexistem em níveis que caracterizam epidemias nas populações afetadas, e em contextos nos quais fatores socioeconômicos diversos contribuem para o agravamento do problema constatado. Portanto, as sindemias não tratam as doenças isoladamente, tampouco fora do contexto socioeconômico em que despontam, ao contrário do entendimento usual sobre epidemias e pandemias.


Há várias razões para que especialistas em saúde e saúde pública, além de cientistas sociais, estejam abraçando o termo sindemia para caracterizar os efeitos da covid-19. A mais visível delas é como a nova doença afeta desproporcionalmente segmentos da população desavantajados seja por motivos raciais, seja por questões relativas à desigualdade e à pobreza. Muitas vezes, tanto raça quanto desigualdade e pobreza interagem, revelando os problemas estruturais subjacentes. Está amplamente documentado que aqui nos EUA negros e hispânicos são os que mais sofrem com a covid-19. No Brasil, são os mais pobres, de maioria negra, os mais afetados. Essa divergência observada no impacto do vírus sobre a sociedade tem características sindêmicas.


Se pensarmos dessa forma sobre a covid-19, há muito com o que se preocupar mesmo que exista uma vacina ou tratamentos para a doença seja quando for. Tomemos a obesidade. A obesidade é um fator de risco para o desenvolvimento de quadros graves ou severos de covid19. A obesidade é também um fator de risco para doenças crônicas não transmissíveis, como a diabetes, a hipertensão, doenças coronarianas, e por aí vai.


De acordo com vários estudos recentes sobre a obesidade no Brasil, ela está não apenas em trajetória crescente, como cada vez mais aflige a população de baixa renda e, em particular, as mulheres mais pobres.


A inter-relação entre obesidade, diabetes, e covid-19 configura uma sindemia nos moldes descritos acima: as três doenças se exacerbam mutuamente em termos biológicos e estão inseridas no contexto específico de pessoas de renda mais baixa com reduzida segurança alimentar. Do mesmo modo, a inter-relação entre obesidade, hipertensão, e covid-19 também configura uma sindemia, lembrando que a hipertensão eleva outros riscos, como o de AVCs, de doenças renais crônicas, e de vários outros problemas.


O resumo disso tudo é que mesmo depois de passadas as ondas agudas da epidemia no Brasil, haverá um contingente grande de pessoas com doenças crônicas, muitas delas exa- cerbadas pela covid-19. Essas pessoas provavelmente pertencerão ao mesmo segmento socioeconômico que hoje se associa tanto à covid-19, quanto à existência de doenças como a obesidade. Todas essas pessoas, de variadas faixas etárias, permanecerão dependentes do SUS.


Quando o assunto é risco econômico no Brasil, fala-se muito em problemas de natureza fiscal, risco de calote de dívida, descontrole inflacionário, e outros problemas macroeconômicos que evidentemente devem ser pensados e considerados.


Contudo, o risco mais importante, na verdade já uma realidade mesmo quando não levamos em conta a covid-19, é o impacto das sindemias existentes sobre a saúde pública e a economia, agravando problemas estruturais subjacentes, sobrecarregando o SUS, e, claramente onerando também as contas públicas. Há uma urgente necessidade de planejamento desde agora para enfrentar o que sobrevirá da crise atual. Dizer que o governo atual não está preparado para dar cabo desses imensos desafios é eufemismo.


"Há uma urgente necessidade de planejamento desde agora para enfrentar o que sobrevirá da crise atual da covid-19"

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

China e as estratégias para o pós-covid(Estado, 19 10 202)

 

THIAGO DE ARAGÃO - China e as estratégias para o pós-covid


segunda-feira, 19 de outubro de 2020


  

O Estado de S. Paulo  / Economia


Entre o dia 26 e 29 de outubro, membros de alto escalão do Partido Comunista Chinês (PCC) irão se encontrar pela primeira vez em cinco anos. Essa reunião, que já seria importante dado o espaçamento entre encontros desse nível, ganha contornos ainda mais estratégicos. Abrigará o debate e a seleção de projetos que possam se enquadrar no redesenho político e econômico que Xi Jinping idealizou para o próximo quinquênio.


No último encontro, a China identificou que a relação com os EUA iria melhorar no curto prazo e depois iniciar uma curva de deterioração, enquanto o governo chinês teria entre 10 e 15 anos para se adaptar. Essa deterioração estaria ancorada na leitura chinesa de que a equalização tecnológica e a solidificação de relações estratégicas com diversos países levariam os EUA a iniciar um processo de busca e resposta por reconquista de espaço. Todo esse cenário foi acelerado pela pandemia, fazendo com que o PCC comandasse rapidamente um realinhamento estratégico.


A China acertou no diagnóstico e errou no timing. De fato, os EUA enxergam a progressão tecnológica chinesa e o grande volume de amarras comerciais e financeiras com terceiros como armas difíceis de serem enfrentadas. O presidente Donald Trump iniciou um processo de afastamento que era previsto pela China para ocorrer somente nos próximos 10 anos, obrigando o mundo a assistir e a se readequar dentro da readequação sinoamericana.


Xi irá enfatizar o aumento do consumo interno como o pilar essencial no reajuste de cresci- mento chinês. Para isso, o governo buscará ampliar programas na base da pirâmide social, estimulando um consumo maior; outra ideia é simplificar o pagamento de tributos para indústrias estratégicas com a finalidade de gerar um aumento de produção.


Mercado de capitais


O governo chinês simplificou o processo para empresas serem listadas nas bolsas do país, para indivíduos investirem e fortaleceu o yuan para acentuar a percepção de ganhos. Sabendo que o mercado de capitais americano ficará cada vez mais reduzido para empresas chinesas, o governo acelerou o plano de desenvolver o mercado chinês de capitais. A capitalização do mercado de capitais atingiu a marca de US$ 10 trilhões, gerando um crescente interesse em empresas e investidores individuais.


A reorganização estratégica chinesa impacta inúmeros países, inclusive o Brasil. Somos exportadores de commodities e a China quer, mesmo que a médio prazo, reduzir essa dependência e se tornar mais autossustentável Quando Xi esteve no mês passado visitando áreas férteis para plantio, ele enfatizou o interesse em ver a China produzindo uma variedade agrícola que não substituiria as exportações brasileiras, mas as reduziria.


O desenho estratégico chinês deveria obrigar o Brasil a produzir seu próprio desenho estratégico para os próximos 5 e 10 anos.


Mas dificilmente isso ocorrerá, pois não temos características de planejamento.


] DIRETOR DE ESTRATÉGIA DA ARKO ADVICE E COLUNISTA DO E-INVESTIDOR.

domingo, 18 de outubro de 2020

GM 2039


 

A China já é a maior economia do mundo(Celso Ming, Estado, 18 10 2020)

 


CELSO MING - A China já é a maior economia do mundo


domingo, 18 de outubro de 2020


  

O Estado de S. Paulo  / Economia


Os Estados Unidos já não são mais o número 1 do mundo em pelo menos um critério importante. A China já os ultrapassou em tamanho do PIB. E se o maior tende a ser o mais influente e mais poderoso, já se pode imaginar o impacto geopolítico desse fato novo.


Na última sexta-feira, a conservadora revista The National Interest, dos Estados Unidos,já advertia para as consequências dessa nova liderança.


Mas vamos primeiramente às relevâncias. Há duas maneiras de medir o PIB de um país. A primeira delas define em moeda local estável (deflacionada) o valor de bens e serviços (renda) e, depois, para efeito de comparação com outras economias, a converte em dólar, a moeda líder, pelo câmbio médio do período, tal como praticado no mercado. Esse pode ser chamado de PIB pelo câmbio de mercado.


A segunda maneira de cálculo busca quanto um país pode comprar em bens e serviços com sua moeda. Trata-se do critério do PIB pela Paridade do Poder de Compra (PPC), que parece mais apropriado para medir a renda de um país, porque o câmbio de mercado sempre está sujeito a variáveis subjetivas.


Há alguns anos, quando se deu conta das limitações dos cálculos tradicionais das contas nacionais, a revista britânica The Economist procurou um produto universal cujos preços poderiam definir o poder de compra de cada economia. E escolheu o Big Mac, o sanduichão da rede de fast-food McDonalds produzido em toda a parte com padrão uniforme de qualidade. Assim nasceu o índice Big Mac.


O critério da PPC - e não propriamente o Big Mac - vem sendo usado não só pela revista The Economist, mas também pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), pelo Banco Mundial e pela própria agência de inteligência americana, a CIA, para medir grandezas relacionadas à renda.


Ora, pela medida convencional, o PIB da China ainda será de US$ 15,2 trilhões ou quase 27% menor do que os US$ 20,8 trilhões do PIB dos Estados Unidos, calcula o FMI. Mas, medido pelo PPC, o PIB da China já alcança US$ 24,7 trilhões, ou seja, é quase 20% mais alto do que o PIB dos Estados Unidos, de US$ 20,8 trilhões (veja a tabela).


Neste ano açoitado pela pandemia, a China deverá ser a única grande economia que registrará crescimento positivo, de 1,9%, de acordo com as projeções do FMI. E, como pontua a revista The National Interest, o crescimento de dois dígitos por ano em despesas com Defesa já tornou favorável à China o balanço de forças nos conflitos regionais. Em 2020, a China ultrapassará os Estados Unidos em despesas com Pesquisas & Desenvolvimento. Ou seja, prepara-se para ser potência ainda maior em tecnologias de ponta.


O governo Trump não esconde sua contrariedade com o avanço do dragão oriental e decidiu enfrentar o desafio com o jogo duro que já se convencionou chamar de Nova Guerra Fria.


Se Joe Biden vier a ser eleito presidente dos Estados Unidos em novembro, como parece mais provável, o enfrentamento com a China deverá continuar. Mas de Biden se espera um conjunto de políticas mais inteligentes. Uma dessas políticas deverá ser deixar de atirar até mesmo nos aliados históricos, como são os países da União Europeia, e voltar a valorizar mecanismos multilaterais de integração, especialmente a Organização Mundial do Comércio (OMC).


Biden não poderá coordenar as demais potências se continuar com o mote principal "America first". Se os Estados Unidos mantiverem a pretensão de defender seus próprios interesses acima dos demais, não poderá mesmo ter condições de liderar. E deixará caminho aberto para a China.


sábado, 17 de outubro de 2020

China, 1 D.C.

 


China, Ano 1 d.C.: nada normal, tudo sob controle Por Marcelo Ninio 14/10/2020 • 04:30 Cheguei a Pequim no dia 1º de outubro, feriado nacional que celebra a fundação da República Popular da China. Poucas datas seriam mais simbólicas para um recomeço por aqui. É o início da minha segunda temporada como jornalista baseado na China, e também o início desta coluna digital, em que farei o possível para ampliar o conhecimento e o interesse dos leitores sobre um país cada vez mais crucial para os destinos do mundo. Entender o impacto da ascensão global da China é o grande desafio geopolítico de nosso tempo. Para o Brasil, lidar de modo pragmático com seu maior parceiro comercial é uma questão de bom senso. Com um terço das exportações brasileiras indo para a China, é um casamento inevitável, mesmo que os noivos não morram de amores um pelo outro. Antes de pegar um trem de alta velocidade rumo a Pequim, cumpri os 14 dias de quarentena obrigatória em um hotel de Shijiazhuang, cidade a 260 quilômetros da capital. Do embarque num voo da China Airlines até a chegada, não é difícil entender como os chineses conseguiram conter o vírus que surgiu em seu território até chegar à disseminação quase zero. Não tem muito mistério: controle, rastreamento e testes à exaustão. Para começar, só embarca quem apresenta um teste negativo de Covid-19, feito no máximo 72 horas antes, e preenche uma série de questionários de saúde. No vôo de 9 horas entre Copenhague e Shijiazhuang, máscaras obrigatórias, distanciamento de um assento entre os passageiros e três checagens de temperatura, com toda a tripulação coberta dos pés à cabeça com equipamentos de proteção, estilo astronauta. Na chegada, extremamente organizada, mais uma série de questionários de saúde e um novo teste, este o mais incômodo: cotonetes no fundo das duas narinas por 30 segundos, que parecem uma eternidade. Lágrimas gerais, mas ninguém reclamou. Vestido em estilo caubói, um simpático jovem chinês que voltava dos estudos na Inglaterra se ofereceu para me traduzir as orientações dos médicos e resumiu com bom humor a resignação geral: é a China no ano 1 d.C., “depois do corona”, só resta nos acostumarmos. Terminado o procedimento de chegada que durou umas três horas, nosso grupo foi levado de ônibus a um hotel determinado pelo governo para a quarentena de duas semanas, com as despesas pagas pelos passageiros. Cada um no seu quarto, só casais com filhos pequenos tiveram permissão para ficar juntos. Para conter possíveis fujões, a porta dos quartos soava um alarme quando aberta por mais que alguns segundos. Duas vezes por dia recebíamos a visita de um “astronauta” que desinfectava o quarto com um spray. E toda manhã e no meio da tarde tínhamos que enviar nossa temperatura à gerência. Na entrada do hotel, um trailer da polícia e um carro de bombeiro estavam à postos, suponho, para conter qualquer acontecimento fora do script. Depois de ouvir vários relatos de estrangeiros que passaram por quarentenas penosas em hotéis mofados, com refeições intragáveis ou funcionários mal-humorados, me preparei para duas semanas de provações, mas dei sorte. A comida que me serviram foi variada e quase sempre bem razoável, o quarto era amplo, os funcionários atenciosos e os janelões ofereciam luz natural em abundância além da distração do vaivém dos aviões no aeroporto em frente. Admito que 43 refeições chinesas seguidas testaram a minha capacidade de adaptação à culinária local, mas não posso reclamar. Depois de 14 dias, 28 checagens de temperatura, dois testes de Covid, 80 quilômetros de caminhada no tapete do quarto e três livros concluídos, recuperei a liberdade e segui viagem rumo a Pequim. No tempo em que fiquei isolado, ouvi de amigos chineses que a vida lá fora tinha praticamente voltado ao normal. Enquanto países como o Brasil e os EUA ainda lutam para conter a pandemia e a Europa teme uma segunda onda, na China a vida retomou o seu ritmo. Ao chegar a Pequim vejo que é verdade, em parte. No feriado nacional milhões viajaram sem muita preocupação. Nas ruas, o clima é descontraído, restaurantes estão cheios, a segunda economia do mundo parece estar a todo vapor. Mas a vida está muito longe do normal. Muitos aqui acham que nunca voltará a ser o que era, mesmo depois das vacinas, que já estão sendo testadas em massa. Embora as máscaras não sejam obrigatórias em ambientes abertos, a grande maioria das pessoas prefere usá-las quando sai de casa. Checagens de temperatura são corriqueiras em lugares fechados como shoppings, onde muitas vezes é exigida a exibição do sinal verde num aplicativo de celular para atestar que o usuário não circulou em áreas de risco. A julgar pelos números, está dando certo. Depois de quase dois meses sem um único caso de transmissão local, o país registrou seis na cidade costeira de Qingdao. Imediatamente foi anunciado que toda a população da cidade, de 9 milhões de pessoas, será testada nos próximos dias. Nada normal, mas tudo sob controle.

A escala de Dublin-Boston(Fernando Reinach, 17 10 20)

 


A escala de Dublin-Boston

sábado, 17 de outubro de 2020 


  

O Estado de S. Paulo  / Metrópole


FERNANDO REINACH


E frequente o médico se defrontar com a necessidade de avaliar o que vai acontecer com o paciente no futuro (o prognóstico), a partir de uma avaliação rápida do estado atual. É com base nessa avaliação que grande parte dos tratamentos é escolhida. Em muitos casos essa avaliação é simples, basta fazer algumas perguntas e um exame rápido. Mas em outros casos o estado atual do paciente é complexo e o prognóstico difícil sem uma investigação cuidadosa, com muitos exames e testes.


Mas a urgência exige uma decisão rápida, que depende dos possíveis prognósticos. Um caso típico é uma pessoa que sofreu uma lesão na cabeça e está em coma. O coma é um estado complexo, com vários graus e múltiplas causas, e a decisão sobre o que fazer tem de ser tomada rapidamente. É para momentos como esse que os médicos desenvolveram as chamadas escalas. E grande parte das escalas tem o nome das cidades onde elas foram desenvolvidas. Uma escala útil é aquela que permite por um número pequeno de testes, ou por um exame simples, avaliar a gravidade do caso e tomar as medidas cabíveis. Um bom exemplo é a escala de Glascow (Glascow Coma Scale), usada para avaliar pacientes em coma.


Nessa escala, o médico examina somente três aspectos. Primeiro a resposta dos olhos (que vai de "não abre" passando por "abre em resposta a dor", "abre em resposta a voz" e "abre espontaneamente"). Depois examina a resposta verbal ("não emite sons", "emite sons", "fala palavras" e "fala confusa") e finalmente examina a capacidade motor (vai de "não se move", "estende os membros em resposta a dor", "retrai os membros de forma anormal em resposta a dor" até "responde a comandos verbais").


Cada reação, em cada uma dessas três avaliações, recebe uma nota (de 1 a 6). Então basta somar os pontos, obter a nota e, olhando uma tabela, um prognóstico aproximado pode ser obtido. Não leva mais de 15 minutos, o que em emergência é essencial. Essas escalas, exatamente por serem simples, são difíceis de construir pois é necessário escolher e relacionar sinais simples ao resultado final. Para isso é necessário analisar um grande número de pacientes para ter certeza de que a escala prediz corretamente e é simples e rápida o suficiente.


A novidade agora é que os cientistas criaram uma escala, chamada de Dublin-Boston, para avaliar o prognóstico da covid-19 em pacientes que estão com dificuldades de respirar. Já era sabido que o que ocorre nesses pacientes é o que os médicos chamam de tempestade de citocinas, ou seja, a quantidade dessas moléculas no sangue varia muito. Os cientistas sabiam que duas citocinas, que tem efeito oposto, aumentam nessa fase da doença. Uma delas é a interleucina-6 (IL-6) e outra a interleucina-10 (IL-10). A IL-6 provoca um aumento nos níveis de inflamação, o que dificulta o funcionamento do pulmão. Por outro lado, aumenta também a IL-10 que tem atividade anti-inflamatória, uma ação oposta à da IL-6. Muitas outras moléculas relacionadas às citocinas também variam durante essa fase da doença. O que os cientistas fizeram foi medir diariamente a quantidade de diversas moléculas relacionadas à inflamação em 80 pacientes internados com dificuldades respiratórias.


Além disso, eles acompanharam os pacientes por mais algumas semanas para ver o que acontecia com eles. Será que melhoravam, pioravam, precisavam ser entubados, ou morriam?


O que eles descobriram é que se você dividir a quantidade de IL-6 presente no sangue desses pacientes pela quantidade de IL-10 você vai obter um índice que prediz com muita precisão o futuro daqueles pacientes. Esse índice é a chamada escala de Dublin-Boston. Nessa escala, cada aumento de um ponto corresponde a uma chance 5,6 vezes maior do paciente piorar. Além disso, quando usada no dia 4 da falta de ar, seu valor prediz com grande precisão como o paciente vai estar no dia 7. Outra grande vantagem dessa escala, e isso influenciou a escolha dessas duas interleucinas para compor o índice, é que ambas são facilmente medidas por laboratórios de análises clínicas e, portanto, podem ser incorporadas na rotina dos hospitais.


Se essa escala for adotada, daqui a algum tempo vamos ouvir nas conversas entre amigos frases do tipo: "Meu tio está internado com covid19, ele está bem e não estamos preocupados porque na escala de Dublin-Boston ele está com nota 1, dificilmente ele vai piorar". Claro que se a nota for 3 a conversa será diferente. E essa escala vai provavelmente auxiliar os médicos a escolher o melhor tratamento para cada caso.


Meu palpite é de que ainda vamos ouvir muito sobre essa escala. São pequenos avanços como esse que aos poucos vão reduzindo as mortes causadas pela covid-19. Uma boa notícia.


Ela avalia o prognóstico da covid-19 em pacientes com dificuldades de respirar


MAIS INFORMAÇÕES: A LINEAR PROGNOSTIC SCORE BASED ON THE RATIO OF INTERLEUKIN-6 TO INTERLEUKIN-10 PREDICTS OUTCOMES IN COVID-19. LANCET 

https://doi.Org/10.1016/j.ebiom.2020.10302 (2020)



Agnes Herczeg

















 

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Totó Gigante


 

Hora de reconstruir(Celso Ming, 16 10 2020)


sexta-feira, 16 de outubro de 2020 

O Estado de S. Paulo  / Economia

CELSO MING


Tempo de reconstrução. No pronunciamento desta quinta-feira, a diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), a búlgara Kristalina Georgieva, pediu que a comunidade internacional encare os problemas da hora com o espírito da Conferência de Bretton Woods. 


Esse foi o grande acordo costurado em 1946 nessa minúscula localidade do Estado de New Hampshire, nos Estados Unidos, em que 44 representantes dos principais países liderados pelos Estados Unidos definiram as bases econômicas da reconstrução. 

Em 1944, a economia mundial estava prostrada em consequência de duas enormes devastações: a da Grande Depressão dos anos 1930 e a da 2.ª Grande Guerra, de 1939 a 1945. 

Bretton Woods restabeleceu a ordem monetária global, ainda baseada no padrão ouro. Também criou o Fundo Monetário Internacional, para socorrer os países nos casos de incapacidade de pagamento no mercado internacional, e o Banco Mundial, para ajudar a financiar o desenvolvimento econômico dos países pobres. 

O momento, disse Georgieva, é de um novo Bretton Woods. E ela enumera os estragos de um ano de pandemia: “Mais de 1 milhão de mortos, encolhimento de 4,4% no PIB global e nova queda de US$ 11 trilhões na produção no ano que vem”. E acrescenta que, neste ano, a pobreza aumentou pela primeira vez em décadas. 

Apesar das proporções do desastre, as tarefas de reconstrução são incomensuravelmente menores do que as que existiam na segunda metade dos anos 1940, quando grande extensão da infraestrutura e da capacidade de produção foi destruída pelos bombardeios na Europa e na Ásia. 


Não dá para dizer que vem faltando ajuda. A própria Georgieva comemora a injeção de US$ 12 trilhões em recursos fiscais por parte dos Tesouros nacionais e de mais US$ 7,5 trilhões pelos grandes bancos centrais. 

Se o momento é de ampla reconstrução, não vai ser preciso reerguer fábricas, portos, ferrovias e estradas e recuperar tantos campos devastados. Mas é preciso mais investimento, cuja função será ajudar a aumentar a produção de riquezas e a criar postos de trabalho. 

Se o momento é de um novo Bretton Woods, também é o de uma mensagem, que na ocasião foi proferida pelo maior economista do século 20, John Maynard Keynes. Em 1944, ele pediu um grande esforço de cooperação global, capaz de assentar as bases para uma nova irmandade entre os povos. 

Um dos campos que podem alavancar os novos tempos é o encaminhamento de projetos de substituição de energia fóssil por energia renovável. O mundo enfrenta hoje um desastre econômico de natureza ambiental da ordem de US$ 1,3 trilhão. Mas “podemos chegar a 2050 com zero de emissões de gás carbônico e ajudar a criar milhões de empregos”, sugere Georgieva. 

As maiores limitações estão no campo fiscal. Em 2021, os países avançados terão uma dívida acumulada de 125% do PIB e os países emergentes, de 65% do PIB. A dívida bruta do Brasil se encaminha rapidamente para os 100% do PIB. Mas é preciso enfrentar esses apertos não como problema incontornável, mas como obstáculos adicionais a superar. O tempo dirá se esses apelos encontram algum eco.


 COMENTARISTA DE ECONOMIA

 O tamanho da retomada 


A recuperação da produção em agosto, de 1,06% sobre julho, mostra que o fundo do poço está sendo ultrapassado. É o que aponta o avanço do Índice de Atividade Econômica do Banco Central (IBCBr), indicador cuja função é antecipar o ritmo da economia que só vai ser confirmado dentro de alguns meses pelas Contas Nacionais (números do PIB). Mas esse resultado não deve produzir ilusões. Ele foi comparado com uma base muito baixa, o da forte queda da produção e da renda no auge da pandemia.




quinta-feira, 15 de outubro de 2020

É ruim, mas nem tanto(Celso Ming, Estado, 15 10 2020)

 


CELSO MING - É ruim, mas nem tanto

COLUNISTAS

quinta-feira, 15 de outubro de 2020 


  

O Estado de S. Paulo  / Economia

Quando o pior dá lugar ao ruim ou ao menos pior, em geral, produz alívio. Algo como a sensação esperada quando se tira o bode da sala, ainda que todos os outros problemas continuem lá.


Nesta terça-feira, o Fundo Monetário Internacional (FMI), presidido pela búlgara Kristalina Georgieva, divulgou seu principal documento de avaliação da atividade econômica em que projetou um tombo de 5,8% no PIB do Brasil neste ano, o mais alto de que se tem notícia, maior do que o de 1990, que foi de 4,35%, e o de 1981, quando houve queda de 4,25%.


Ainda assim, tanto a projeção do Fundo como a atual expectativa dos analistas brasileiros vêm produzindo certo alívio. A projeção anterior do Fundo era de uma retração de 9,1%. A revisão agora divulgada, o mencionado recuo de 5,8%, é um pouco maior do que vem sendo esperado pelos analistas brasileiros. O Boletim Focus, realizado semanalmente pelo Banco Central, aponta para uma queda de 5,03%.


De qualquer maneira, depois do baque enorme produzido pelos efeitos diretos e colaterais da pandemia, a percepção geral é a de que a economia brasileira está em recuperação. Por toda parte, as estatísticas de desempenho setorial sugerem não só que o fundo do poço já foi ultrapassado, mas que a atividade econômica está em boa recuperação. Mas é preciso cautela quando se examinam essas novas condições.


O pior só não aconteceu neste ano graças a um punhado de fatores que podem não voltar a atuar. O mais importante deles foi a distribuição de cerca de R$ 300 bilhões em auxílio emergencial, que atendeu a quase 70 milhões de brasileiros que compõem a população mais carente. Daqui para a frente, a economia ainda vai tirar proveito de certa ajuda social por mais alguns meses, mas, ainda que não seque de uma vez, dessa bica vai escorrer cada vez menos água.


Para 2021, depois desse mergulho de 5,8%, o FMI prevê um avanço da economia brasileira de 3,1%. O mercado espera um pouco mais: 3,5%. Mas não há clareza sobre o que pode acontecer no ano que vem.


Não dá para menosprezar o impacto a ser produzido pelo desemprego alto e persistente. Hoje, há 13,1 milhões de brasileiros sem ocupação remunerada. Mesmo que venha a recuperação e mesmo que o governo consiga arrancar do Congresso uma lei de desoneração dos encargos sociais (que, em tese, deveria estimular a criação de empregos), há razões para acreditar que esse avanço do emprego pode não acontecer nas proporções esperadas.


A pandemia mostrou que um grande número de empresas pode melhorar seu desempenho se recorrer a mais incorporação de automação e de tecnologia da informação, recursos que, além de reduzir custos operacionais, dispensam mão de obra. O comércio digital fecha lojas físicas e reduz a necessidade de vendedores; o Pix vai aumentar a dispensa de pessoal pelos bancos; as operações home office reduzem os custos das empresas, especialmente nas prestações de serviços (transporte de pessoal, restaurantes, faxina, suporte de informática, segurança etc). Em seu último Relatório de Inflação, o Banco Central avisa que o forte desemprego é fator que pode conter a velocidade da retomada da economia.


Não dá para fechar os olhos para as quebras. Pelas primeiras avaliações do IBGE, cerca de 600 mil pequenas empresas, que antes tinham 9 milhões de funcionários, foram obrigadas a fechar suas portas. E falta saber até que ponto a forte deterioração das contas públicas não queimará confiança - o que, por sua vez, poderá comprometer a retomada.


E há o nível de incertezas gerado pelo emperramento das reformas, que também trava as rodas da locomotiva. Até agora, a equipe econômica do governo não conseguiu passar sinais claros de que a questão fiscal será equacionada.


O fator que mais poderá ajudar a puxar pela recuperação da atividade econômica será a vacina. Parece cada vez mais provável que estará disponível dentro de alguns meses. Isso muda muita coisa, para melhor, a começar pelos corações e mentes.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Descascar Abacaxi


 

O custo do negacionismo(Monica de Bolle, Estado, 14 10 2020)

 



 O custo do negacionismo


quarta-feira, 14 de outubro de 2020 


  

O Estado de S. Paulo  / Economia


MONICA DE BOLLE


Em artigo recente para o Jama, o prestigiado Journal of the American Medical Association, os igualmente prestigiados economistas David Cutler e Larry Summers apresentaram os custos do negacionismo pandêmico aqui nos Estados Unidos. Partindo de evidências apresentadas em vários artigos científicos recentes sobre a covid-19, além de cálculos do Congressional Budget Office para a queda estimada do PIB associada à pandemia na próxima década, e de estudos atuariais e demográficos, os autores concluíram que a conta pode chegar a US$ 16 trilhões até outubro de 2021. Vou repetir: o custo do negacionismo nos EUA poderá chegar a cerca de 90% do PIB supondo que a epidemia seja controlada em meados de 2021. A hipótese de que a crise de saúde pública estaria resolvida daqui a um ano é, como ressaltam os próprios autores, muito otimista. Caso isso não ocorra, o custo poderá ser maior.


Cutler e Summers levam em conta não só os dados econômicos, como os aumentos inéditos de pedidos de seguro-desemprego a cada mês, mas também o custo de tantas vidas perdidas, seja diretamente pela infecção com o SARS-CoV-2, seja indiretamente pelas mortes excedentes provenientes de outras doenças já que tantos recursos estão sendo inevitavelmente destinados a atender os atingidos pela epidemia. Nós não temos contas semelhantes feitas para o Brasil, mas precisamos urgentemente fazê-las, sobretudo para ter alguma noção do montante de recursos que teremos de destinar ao SUS, além das medidas que precisam ser adotadas para alterar a preocupante trajetória brasileira. Nossa população está envelhecendo, o que significa que a carga de doenças associadas à idade - diabetes, câncer, hipertensão, cardiopatias, entre outras - vai subir nos próximos anos. Além disso, a obesidade já é um problema urgente que não só afeta a carga de doenças associadas ao envelhecimento como fator de comorbidade, mas influencia o número de pacientes com casos graves ou severos de covid-19 e as possíveis sequelas. Não faltam estudos para mostrar que a obesidade é um fator de risco considerável.


No artigo citado, os autores utilizam evidências demonstradas em pesquisas científicas para calcular o número de pessoas que poderão apresentar graves sequelas até o fim do ano que vem como parte dos custos calculados. Contas semelhantes podem ser feitas para o Brasil. Supondo que o número de casos graves ou severos é cerca de 7 vezes maior do que o de óbitos e que cerca de 30% dos que sobrevivem aos quadros mais preocupantes de covid-19 apresentam alguma sequela séria, o Brasil poderia ter até cerca de 350 mil pessoas nessa situação até o final de 2021. São 350 mil pessoas a mais a depender muito provavelmente do SUS em um período de tempo muito curto. Esse cálculo pressupõe, como o dos autores, hipótese demasiado otimista em relação ao controle da epidemia - portanto, não é uma cifra exata, mas algo para dar uma ideia da ordem de magnitude dos problemas que iremos enfrentar apenas no próximo ano.


Caso queiramos aplicar as contas dos autores ao Brasil, é possível fazê-lo somente de forma muito parcial. Eles partem de uma vasta literatura acadêmica que calcula o "valor estatístico das vidas", definido como o quanto que os indivíduos estariam dispostos a pagar para reduzir seu risco de vida em determinadas situações. O montante pode chegar a US$ 7 milhões de dólares para cada vida estatística, ou cerca de R$ 40 milhões a depender da taxa de câmbio que se utilize. Já contamos com mais de 150 mil óbitos, muitos dos quais prematuros. Caso o número de óbitos entre hoje e outubro do ano que vem chegue ao nível mais otimista que se pode conjecturar hoje, isto é, que nos próximos doze meses registremos a metade dos óbitos que temos até agora no Brasil, teremos 225 mil mortes, muitas delas prematuras. O custo econômico dessa catástrofe seria de R$ 9 bilhões. Caso o número de óbitos dobre até o fim do ano que vem, o custo econômico atrelado apenas às mortes prematuras seria de R$ 12 bilhões. Não estão contabilizados nessas cifras os diversos outros custos calculados pelos autores com maior precisão.


O negacionismo pandêmico tem um custo para lá de elevado. Se o governo e parte da população brasileira não conseguem se sensibilizar com a absurda perda de vidas, em boa parte evitável com a adoção dos protocolos de segurança e de mudanças no padrão de comportamento, quem sabe se sensibilizem com as perdas econômicas que haverão de perdurar por muitos anos. Não é improvável que ultrapassemos 90% do PIB do Brasil nesse quesito.


ECONOMISTA, PESQUISADORA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Engenheiro quebra ovos


 

Tornado Americano (NGC)

https://smhoaxslayer.com/national-geographic-didnt-pay-for-this-video-of-storm/ O

 National Geographic Channel pagou US $ 1 milhão pelo vídeo em anexo de 4 minutos. Segure seu chapéu ao assistir isso.




A salvação da lavoura não é a lavoura(Estado, 12 10 2020)

A salvação da lavoura não é a lavoura

COLUNISTAS

segunda-feira, 12 de outubro de 2020 

 

O Estado de S. Paulo  / Economia


LUÍS EDUARDO ASSIS


Não se pode minimizar a importância histórica da agricultura nas grandes conquistas da civilização. Nathan Nunn e Nancy Qian publicaram em 2009 um saboroso texto (The Potatos Contribution to Populatin Growth and Urbanization) em que demonstram por meio de modelos econométricos que nada menos que 22% do aumento da população mundial entre 1700 e 1900, quando passamos de 603 milhões para 1,6 bilhão de habitantes, se deveu à introdução do cultivo da batata na Europa. A melhoria na quantidade e na qualidade do consumo calórico foi fundamental para a maior expectativa de vida. Aqui, entre nós, há ainda quem pense, como os fisiocratas do século 18, que a agricultura é nosso passado e nosso futuro.


Agro é tech, agro é pop, agro é tudo, diz o slogan da campanha publicitária. Será, mesmo? Pelas estatísticas oficiais do IBGE, que seguem a convenção internacional, a participação do setor agropecuário no PIB brasileiro foi de 4,4% no ano passado. Já foi bem maior. Em 1960, por exemplo, era de 17,7%. Caiu porque os outros setores cresceram mais que a agropecuária. Este fenômeno é global. Estatísticas do Banco Mundial mostram que a contribuição deste segmento para o PIB do mundo recuou de 7,6%, em 1995, para 4%, em 2018. Os países ficam mais ricos, regra geral, desenvolvendo o setor industrial e o segmento de serviços sofisticados. Os cinco países com maior participação da agropecuária no PIB têm uma renda per capita média de US$ 1,6 mil, no conceito de paridade de poder de compra. Já os cinco com menor participação deste setor apresentam uma renda per capita de US$ 80.242. Há distorções nesta comparação por causa de pequenos países produtores de petróleo, mas o fato é que a agropecuária é tanto mais importante quanto mais pobre for o país.


Isso se explica pelo impacto relativamente menor do crescimento desta atividade sobre os demais segmentos que compõem o PIB. Os efeitos de encadeamento sobre a tessitura da atividade econômica são menores que os provocados pelos outros segmentos.


Tomando as variações trimestrais anualizadas de dezembro de 1996 a junho de 2020, nota-se que a correlação do PIB geral com o PIB da agropecuária foi de apenas 0,3, ante 0,95, no caso da indústria, e 0,96, para serviços. Mesmo a geração de empregos é limitada, até porque o forte avanço tecnológico poupa mão de obra. Em julho deste ano, tínhamos 8 milhões de pessoas ocupadas na agropecuária, 9,8% do total. Esse porcentual vem caindo sistematicamente nos últimos anos. O rendimento médio habitualmente recebido pelos trabalhadores, por sua vez, é de R$ 1.409,00 na agropecuária, 46% menor que o da indústria e 61% menor que no serviço público (mas esta é outra história).


A Esalq-USP calcula o PIB do agronegócio, um conceito ampliado do setor, e chega à conclusão de que ele representa 21,4% do produto. Mas mesmo nesta métrica generosa, que não é incontroversa, a participação vem declinando - no ano 2000 era de 28,9%. Também as mazelas sociais persistem, mesmo com a prosperidade do setor. Sorriso, em Mato Grosso, é a cidade que mais produziu grãos em 2019. Mas dos 5.570 municípios brasileiros, fica em 2.274.0 lugar em mortalidade infantil e em 4.193.0 em taxa de escolaridade.


O agronegócio é um grande trunfo do Brasil. É a nossa melhor parte. Seu sucesso se explica pelo apoio do Estado, tanto no crédito quanto na pesquisa científica, pela exposição à concorrência internacional e pela qualidade extraordinária dos empresários rurais, sempre dispostos a tomar riscos. Mas acreditar que o Brasil possa crescer puxado pelo setor é apenas uma ingênua quimera. Agro pode ser pop e é cada dia mais tech. Mas agro não é tudo.


Acreditar que o Brasil possa crescer puxado pelo agronegócio é apenas uma ingênua quimera


ECONOMISTA, FOI DIRETOR DE POLÍTICA MONETÁRIA DO BANCO CENTRAL E PROFESSOR DE ECONOMIA DA PUC-SP E DA FGV-SP. E-MAIL: LUISEDUARDOASSIS@GMAIL.COM