segunda-feira, 29 de março de 2021

Rabino Bonder lança livro sobre casamento, cabala, -sexo e reflete sobre pandemia(Estado, 29 3 21)


 Hoje está todo mundo mal sexualmente, reflete rabino Bonder ao lançar livro sobre cabala e sexo

MARCH 29, 2021


Rabino não ortodoxo em exercício há mais tempo em solo brasileiro, Nilton Bonder transcende as fronteiras do judaísmo. Com mais de um milhão de livros vendidos, consultado por Luciano Huck e outros famosos, lança, neste mês, Cabala e a Arte de Apropriação do Sexo, pela editora Rocco.


Bonder vê erotismo na genuína vontade de construir uma vida a dois – desde ter filhos, cachorros ou apenas momentos para constar em álbum de família – o que chama de nubilidade. “Há um desacolhimento no casamento, mas ele nunca perdeu o seu erotismo”, afirma, relativizando a sexualidade moderna e o estilo de vida que celebra a busca pelo prazer sexual. No livro, ele usa histórias e parábolas para ajudar as pessoas a se fazerem perguntas melhores e a se localizarem no xadrez de suas relações pessoais. “Já vi esse tabuleiro sendo jogado por muita gente.”


Para ele, hoje quem está no lugar de sair pelo mundo em busca de parceiros está mal. Quem está casado também vive situações exageradas, porque está preso em casa, com outra pessoa que tem hábitos, maneiras de ser diferentes. “Na pandemia, tudo fica exacerbado. Então, todo mundo está mal sexualmente”. Mas ele entende, porém, que “passar ao largo do sexo não atende a natureza”.


O rabino vê o sucesso da cabala como resultado da grande demanda das pessoas por significado profundo em suas vidas. “As pessoas estão preocupadas com libido e gênero, liberdade para o gênero e para libido. O nosso mundo não vive bem a sexualidade, apesar das pessoas transarem muito mais ou nem sei se transam. E existem tantas outras possibilidades de viver isso virtualmente, sozinho, dá menos trabalho, custa menos, tem menos chance de dar problema”.


Na congregação que lidera no Rio, onde homens e mulheres desempenham papéis semelhantes no serviço religioso, acumula a experiência de lidar com casais em todas as fases: os que vivem a epifania do sim que sela o enlace; os que passam pela crise de meia-idade; os já nos dissabores da separação e ainda aqueles que perderam o cônjuge após uma vida inteira. A seguir, os principais trechos da entrevista à repórter Paula Bonelli, por videoconferência.


Sexo tem a ver com religião? Como seria isso?


Tudo. Eu sei que a gente tem muito essa noção que vem do celibato, de que o sacerdote tem que ficar longe da sexualidade para poder ser uma pessoa espiritualizada, mas isso não tem nada a ver com a tradição judaica. O rabino é obrigado, literalmente, a ter uma vida sexual. A obrigatoriedade de satisfazer o seu parceiro é parte do vínculo do casamento. Claro que a conotação muitas vezes é ligada à maternidade, à procriação, não tanto nessa mentalidade moderna de sexo livre para aproveitar a vida. Mas está contemplado ali que é desumano ao ser humano não ter uma dimensão de sexualidade saudável.


Seria porque é próprio do humano não querer ficar só, procurando o sexo então com o fim de mitigar a solidão?


Um pedaço da sexualidade é isso. Eu estou tentando trazer alguns elementos que são bastante novos. A sexualidade tem quatro componentes: a libido, a intimidade, gênero e um quarto que é da ordem espiritual, a nubilidade, que seria traduzido como casamento, mas é mais profundo porque é um lugar onde você deseja construir alguma coisa permanente com o parceiro, onde você quer ancorar filhos, uma casa, um futuro, mais segurança de contar com alguém. Essas quatro dimensões são eróticas. O gênero é a escolha deliberada de quem é seu parceiro e que passa a fronteira do sexo binário. E a nubilidade é um elemento bastante novo de olhar, o desejo de se casar é erótico.


O modelo do casamento vive sendo questionado.


O gênero é questionado pelos mais conservadores. Os mais liberais questionam normalmente a nubilidade, dizendo que ninguém precisa mais disso, que são construções do passado, uma maneira de oprimir. Ou as pessoas que simplesmente querem dizer, “eu não quero ter filhos, quero viver, ser solteiro, essa é minha escolha”. O mundo hoje tem uma questão com a nubilidade. Tão grave no sentido oposto, de desacolhimento do casamento, mas a nubilidade nunca perdeu o seu erotismo.


O que acontece quando as pessoas se casam e não são núbeis?


Elas não estão tendo literalmente prazer em se entregar daquela maneira, em querer fazer essa aposta, não têm tesão nisso, vão começar a contrapor dizendo “caramba, por conta do casamento agora vou ter que conter a minha libido, vou ter que segurar outras coisas que eu gostava de fazer. Esse casamento terá muita dificuldade de sobreviver com o passar do tempo. A característica da nubilidade não é tanto o parceiro ser bonito, ser gostoso, tem prazer nos aspectos espirituais, mas é tão prazerosa do ponto de vista do gozo nos seus aspectos espirituais como é fisicamente a libido.


O casamento estaria então mais ligado à procriação, ao afeto ou ao prazer?


A sexualidade é a maneira pela qual a natureza faz você querer sexo. A natureza quer. Assim como a natureza quer que você tenha fome e coma, e fique vivo, a natureza quer que você goste de sexo, que sexo esteja presente.

Muitos estão preocupados, cansados, vivendo ao largo do sexo. As pessoas estão doentes?

Não, doentes não, a gente tem que cuidar, porque a sexualidade está ligada à mãe natureza. Ela é conectada com a alegria, com a ambição. Se não cuidar da sua sexualidade, você deprime.


Nessa sua reflexão, o prazer erótico não se limita ou não à relação sexual?


Existem casais que às vezes tem pouca sexualidade libidinal nesse lugar físico, então têm relações físicas uma vez por mês, semestre, na última década, mas muitos casais têm prazer erótico, excitação núbios. O indivíduo que transa toda noite, ele olha para esse casal e diz, “coitados deles”. Mas talvez eles tenham uma relação de sexualidade mais adequada e extremamente ativa, porque ali existem aspectos de intimidade muito mais ricos.


Existem diferentes maneiras de construir o desejo sexual?


Sim, vai construir pela ambição, o desejo de achar que um parceiro que seja esse sócio sexual da sua existência. Isso é recorrente. Tem pessoas que se rebelam, pensam não vou cair nessa armadilha.


O que acontece na pandemia com os dois desejos, o de estar junto e o sexual?


A pandemia é um momento grave, em que todo mundo ficou restrito, limitado, em carência total. Quem está nesse lugar de sair pelo mundo em busca de parceiros está mal. O lugar das nubilidades ficou muito exagerado. Os aspectos negativos, o fato de ter que morar com alguém que tem hábitos, tem maneiras de ser diferentes, e você tem que acomodar. Tudo isso fica exacerbado. Então todo mundo está mal sexualmente.


O casamento oferece uma identidade?


Dá uma identidade, dá raízes, e dá continuidade, ancestralidade. Porque pare para pensar o que vai acontecer com esse todo mundo dizendo “eu cuido de mim, tá muito bom, deixa comigo…” Não tem ancestralidade. Todo mundo nasce de alguém, mas não tem esse lugar que era das fotografias da vovó e do vovô. Quando tem filhos, dentro dessa construção, você entrega para eles uma riqueza de propósitos, tem ramificações por todas as áreas da vida. Há uma riqueza gigantesca nessas construções de nubilidade.


E o que você acha desse consumo da cabala hoje, o qual às vezes não é muito espiritual, é uma coisa meio da moda?


A cabala virou Coca-Cola, Pepsi-Cola, entendeu? Existe uma demanda real, não quero menosprezar essas experiências, mas existe uma demanda das pessoas por propósito, por significado nas suas vidas, até porque o individualismo empobreceu as pessoas e elas não se dão conta disso.

sábado, 27 de março de 2021

O BESTEIROL QUE NOS ASSOLA SEM PIEDADE(Época, 26 3 2021)

 H.G. - O BESTEIROL QUE NOS ASSOLA SEM PIEDADE

sexta-feira, 26 de março de 2021 - 12:42


 

Revista Época  / Colunistas

HELIO GUROVITZ


Um dos efeitos colaterais da Covid-19 foi ter despertado um interesse súbito pela ciência. Quem jamais havia olhado através de um microscópio se viu de repente envolto por epidemiologistas, infectologistas ou imunologistas. Escalas logarítmicas, médias móveis e modelos estatísticos entraram nas discussões como se fossem a tabela do Brasileirão. Uma tal de Ciência — assim, com maiúscula — passou a ser invocada como a força divina capaz de liquidar qualquer questão. Da noite para o dia, legiões de autoproclamados “divulgadores científicos” saltaram dos canais de vídeos na internet e das redes sociais para as páginas da imprensa e os noticiários televisivos. Tornaram-se as vozes mais estridentes num debate já travado em altíssimos decibéis. Mas, se alguém ainda nutre a ilusão de que essa outra epidemia tem contribuído para aperfeiçoar a política ou ampliar o conhecimento da população, basta olhar ao redor para perceber que o besteirol não tem limite.





No mundo anglo-saxão, consagrou-se um palavrão para definir essa mistura de embromação, asneira e pretensão que anima toda conversa fiada: “bullshit” (literalmente, “bosta bovina”). “Bullshit envolve linguagem, estatísticas, gráficos e outras formas de apresentação cuja intenção é persuadir ou impressionar a audiência distraindo, sobrecarregando ou intimidando, sem nenhum tipo de apreço pela verdade, coerência lógica ou informação de fato transmitida”, escrevem os cientistas Carl Bergstrom e Jevin West em Calling bullshit (algo como Refutando o besteirol). “Parte dela é inócua, outra parte é um leve incômodo, uma outra até divertida. Mas muito do bullshitol por aí tem consequências sérias para a saúde e prosperidade humanas, a integridade da ciência e a tomada de decisão numa democracia.” A causa da profusão de besteiras que nos assola sem piedade não é nova: “A invenção de formas de comunicação novas e variadas deu voz e uma nova audiência a muita gente cuja opinião jamais seria solicitada e que, na realidade, tem pouco a acrescentar às questões públicas além de excremento verbal”. Que fazer?





Bergstrom e West ensaiam uma resposta, derivada de um curso homônimo que dão na Universidade de Washington, em Seattle. Não se trata apenas de uma coleção de exemplos absurdos para nos divertir. Eles demonstram de modo didático como a linguagem da matemática e da ciência é usada por picaretas para transmitir uma impressão de rigor. Esmiúçam as falácias mais comuns na interpretação dos resultados científicos (em particular nas relações de causa e efeito), as armadilhas que se escondem atrás da pretensa objetividade das “métricas” (“quando uma medida vira meta, deixa de ser uma boa medida”), os vieses que distorcem a leitura das estatísticas, a prestidigitação usada em gráficos para nos ludibriar, a empulhação que cerca modismos como “big data” ou “algoritmos de inteligência artificial”. “Quando treinamos máquinas para tomar decisões com base em dados colhidos numa sociedade cheia de defeitos, elas aprendem e perpetuam os mesmos defeitos”, dizem.





No capítulo mais corajoso, desmistificam o besteirol que cerca o discurso científico.“Embora o ceticismo talvez torne a ciência a principal metodologia para enfrentar o bullshitol, não é garantia absoluta”, afirmam.





“Há muita bullshit na ciência, parte acidental, parte deliberada.” A explicação da principal artimanha adotada por cientistas para publicar resultados frágeis — conhecida como “p-hacking” — é primorosa e deve ser estudada por todos os que veem estudos científicos como verdades acima de qualquer suspeita. Nos capítulos finais, eles fornecem guias práticos tanto para reconhecer quanto para refutar o besteirol. Identificá-lo é uma atividade individual; contestá-lo, um serviço público essencial nestes tempos. Não se trata de parecer mais inteligente, mas de tornar os outros mais inteligentes. É preciso, para isso, escolher as batalhas e estar preparado para um esforço extenuante. “Produzir bullshit dá muito menos trabalho do que limpar.”





CALLING BULLSHIT | Carl Bergstrom e Jevin West, Random House | 2020 | 336 páginas | US$ 30

segunda-feira, 15 de março de 2021

Brasil e Reino Unido sofrem com variantes, mas britânicos souberam fazer lockdown e vacinação(Fernando Reinach, Estado, 13 3 2021)

 Brasil e Reino Unido sofrem com variantes, mas britânicos souberam fazer lockdown e vacinação

MARCH 13, 2021

Em menos de duas semanas, a variante de Manaus provocou o colapso do sistema de saúde. Somos o segundo país a enfrentar um pico de casos e mortes causados por uma nova variante. Primeiro foi no Reino Unido, onde a variante B.1.1.7 foi identificada no final de 2020, e provocou uma explosão de casos e óbitos. Estamos vivendo o que a Inglaterra viveu três meses atrás.



Cientistas brasileiros descrevem nova variante do coronavírus com potencial de maior transmissão


No Reino Unido, o lockdown foi decretado no dia 4 de janeiro, o mesmo dia em que o primeiro cidadão inglês foi vacinado, antes que o número de mortes tivesse iniciado sua subida vertiginosa. Os ingleses previram a subida das mortes, pois o número de casos explodira duas semanas antes. O número de mortes aumentou vertiginosamente por um mês, até o final de janeiro. Por mais de um mês, o sistema de saúde beirou o colapso durante o mais rigoroso lockdown imposto por qualquer país.


No Brasil e no Reino Unido, a campanha de vacinação estava começando quando os casos e mortes explodiram. Mas as semelhanças entre os dois países acabam aqui. Na Inglaterra o governo decidiu que o lockdown seria o último e duraria até que 100% da população de risco tivesse sido vacinada. São os 21,8 milhões de habitantes acima de 50 anos de idade, 38% da população.


Em meados de 2020, a Inglaterra havia fechado contrato com as empresas de vacina para adquirir 4 vezes o número de doses necessárias para vacinar a população e foi o primeiro país a aprovar a vacina da Pfizer e AstraZeneca. Assim, a vacinação foi iniciada com um estoque razoável de doses. Além disso, por utilizar vacinas de alta eficácia, os ingleses decidiram dar a 1ª dose a um número grande de pessoas e deixar a segunda dose para mais tarde.


O resultado é que o Reino Unido já vacinou 36% da população e está começando a estudar como relaxar o lockdown, à medida que ministra a 2ª dose à população de risco. Lá, foram feitos estudos que comprovam que espaçar as doses nas suas vacinas não prejudica a eficácia e que as vacinas usadas geram anticorpos capazes de neutralizar a variante B.1.1.7.


Aqui no Brasil a situação é muito diferente. Essa não será a última onda nem o último lockdown que teremos de aguentar. Como não compramos vacinas em meados de 2020, simplesmente não temos doses suficientes para vacinar o grupo de risco durante os próximos meses.


Vamos ser forçados a relaxar o distanciamento muito antes de termos vacinado uma fração significativa da população. E então o ciclo se repetirá: novas infecções e mais mortes. O único cenário em que isso não acontece é se o surto atual atingir proporções gigantescas o suficiente para induzir a imunidade de rebanho no Brasil, o que, com as novas variedades, só será atingida quando 80 a 85% da população for infectada. Espero que isso não ocorra.


O Brasil optou em 2020 por não comprar doses de vacina, mas fechou dois contratos de transferência de tecnologia: do Butantan com a Sinovac e da Fiocruz com a AstraZeneca. Por esses contratos, todas as vacinas usadas no Brasil durante o 1º semestre de 2021 seriam produzidas no exterior, envasadas e embaladas no Brasil. Isso daria tempo para o Butantan e a Fiocruz construírem suas fábricas de vacina.


O Butantan tem conseguido envasar um grande número de doses, apesar dos atrasos no envio do IFA (Insumo Farmacológico Ativo) pela China. A Fiocruz tem tido problemas em fazer suas máquinas de envase funcionarem de maneira correta e ainda não assinou o acordo de transferência de tecnologia com a AstraZeneca.


Ambos os institutos já anunciaram que as fábricas para produção nacional não ficarão prontas a tempo para produzir no 2º semestre. Assim, ainda não temos contratos para as doses necessárias para depois de junho/julho de 2021.


O resultado dessas decisões é que aproximadamente 9 em cada 10 vacinas aplicadas no Brasil até agora são as Coronavac/Butantan, a vacina com a menor eficácia de todas as disponíveis. E uma em cada 10 são da AstraZeneca, que juntamente com a Pfizer, tem licença definitiva de uso no Brasil.


A Coronavac é uma vacina desconhecida para a comunidade científica. Os resultados da fase 3 dos testes clínicos ainda não foram publicados e a única publicação científica sobre ela é o estudo da fase 2 e um trabalho submetido para publicação que indica que os anticorpos gerados por ela não são capazes de inativar o vírus da variante de Manaus (esses dados foram contestados por Dimas Covas, diretor do Butantan, mas os dados que embasam sua contestação não foram divulgados).


A Coronavac pode ser uma ótima vacina ou pode ser inócua caso a eficácia contra a cepa de Manaus seja muito menor que os 50% obtidos contra a cepa original do coronavírus. O que sabemos com certeza é que ela é muito segura e, portanto, não devemos evitar de tomar a Coronavac. Eu mesmo tomei e fiquei feliz em ter tomado as duas doses. Uma semana após cada dose tive uma leve diarreia que durou dois dias e cansaço.


Fiquei curioso se esses eram efeitos colaterais leves da Coronavac. Em situações normais, eu iria consultar o trabalho científico da fase 3. Como ele não existe tive de procurar no meu computador a apresentação que a Anvisa fez no dia da aprovação.


Foi lá que encontrei que diarreia e cansaço estão entre os efeitos colaterais mais frequentes. Nessa mesma apresentação, a Anvisa declara que o Butantan não entregou nenhum dado sobre a imunogenicidade da Coronavac. E a Anvisa escreve com todas as letras “O único resultado apresentado não foi considerado adequado para a avaliação e conclusão da imunogenicidade”. A Anvisa ainda lista nove grupos de dados que o Butantan ficou devendo. O prazo de entrega era 28 de fevereiro e agora foi adiado para o fim de abril.


A conclusão é que estamos com o sistema de saúde em colapso. Dependemos, para sair dessa crise, do cumprimento das regras de distanciamento social difíceis de manter e de uma vacinação que ocorre a conta-gotas, utilizando uma vacina segura, de baixa eficácia, e cujas propriedades ainda são desconhecidas. Não é um cenário animador.


Mais informações: Neutralization of SARS-CoV-2 lineage B.1.1.7 pseudovirus by BNT162b2 vaccine–elicited human sera. Science vol 371 pag. 1152 2021


*É BIÓLOGO, PHD EM BIOLOGIA CELULAR E MOLECULAR PELA CORNELL UNIVERSITY E AUTOR DE A CHEGADA DO NOVO CORONAVÍRUS NO BRASIL; FOLHA DE LÓTUS, ESCORREGADOR DE MOSQUITO; E A LONGA MARCHA DOS GRILOS CANIBAIS


https://outline.com/3Fzyzv


 

sábado, 6 de março de 2021

Coronavírus verde-amarelo(Fernando Reinach, Estado, 6 3 2021)

FERNANDO REINACH- Coronavírus verde-amarelo

COLUNISTAS

sábado, 6 de março de 2021 


 

O Estado de S. Paulo  / Metrópole

FERNANDO REINACH


Em 2020 o Brasil foi invadido pelo Sars-CoV-2. Juntamente com o resto do planeta, batalhamos contra um único inimigo, o Sars-CoV-2 original. Em 2021 as coisas mudaram, o Brasil está enfrentando a própria variante do coronavírus, o Sars-CoV-2-P1, ou P.1, que surgiu em Manaus e já é responsável por mais da metade dos casos na maioria dos Estados.


Isso significa que agora o Brasil enfrenta uma variante específica do País, verde-amarela, gerada e selecionada aqui. Mas não estamos sozinhos: a Inglaterra também está enfrentando uma variante que surgiu por lá (inglesa ou de Kent), com propriedades diferentes das do vírus original. Em 2021 vamos ser força- dos a trilhar o mesmo caminho, descobrindo como melhor combater a P.1.


O fato de possuirmos a própria variante tem consequências importantes. Antes, todas as informações, tratamentos e vacinas descobertas em qualquer lugar do mundo se aplicavam ao Brasil. Se na China o Sars-CoV-2 levava 20% dos infectados ao hospital e causava a morte de 0,5 a 1%, isso provavelmente valia para o Brasil. Se na Itália descobriram que a mortalidade aumentava com a idade e era maior em homens, isso valia para o Brasil.


Agora isso mudou. A P.1 não deve ser radicalmente diferente do Sars-CoV-2 original, mas muitas de suas características podem ser distintas e exigir providências diferentes. Exemplos: a P.1 se espalha mais rapidamente e com maior facilidade; será que o nível de isolamento usado em 2020 bastará para controlá-la? Os hospitais reportam a presença de mais jovens nas UTIs; será que isso se deve ao comportamento dessas pessoas ou a uma propriedade da P.1? As perguntas iniciais precisarão ser respondidas novamente.


O mais difícil nessa tarefa é que as investigações terão de ser feitas por cientistas brasileiros e seus colaboradores internacionais. Uma coisa é certa: em 2021 os países terão como prioridade investigar as variantes de seus territórios.


Os cientistas brasileiros já começaram a caracterizar a P.1. Os dados de um dos primeiros trabalhos são preocupantes. Os cientistas mediram a capacidade de neutralização dos anticorpos produzidos por uma infecção pelo SarsCoV-2 e os produzidos pela vacina Coronavac frente ao vírus original e a va- riante P.1. O soro de 18 pessoas que se recuperaram de casos moderados de covid causados pela linhagem original e o de 8 pessoas vacinadas com a Coronavac foi usado no estudo.


No primeiro experimento foi medida a capacidade dos anticorpos das 18 pessoas que se recuperaram de inibir a penetração do Sars-CoV-2 original e da variante P.1 em células humanas. O resultado foi o esperado. O soro dos curados tem uma capacidade alta de inibir a entrada do vírus original, mas essa capacidade é 75% menor quando a variante P.1 é usada. Isso significa que os infectados pelo vírus original devem possuir uma capacidade reduzida de combater a P.1 e podem ter nova infecção.


Em seguida os cientistas repetiram o experimento com o soro das oito pessoas vacinadas com a Coronavac. Esse é o resultado mais preocupante. Os anticorpos presentes em 6 das 8 pessoas vacinadas têm capacidade de bloquear o vírus original. Mas nenhuma das oito pessoas vacinadas com a Coronavac possui anticorpos capazes de bloquear a entrada da variante P.1 nas células.


Esse resultado levanta a possibilidade de a Coronavac não proteger contra a P.1. Claro que esse é um estudo preliminar, feito em tubos de ensaio, com muito poucos vacinados (somente oito), e que ainda não foi revisado por pares. Mas os pesquisadores envolvidos são competentes e muito conhecidos. A AstraZeneca comunicou que sua vacina é capaz de neutralizar a P.1, mas ainda não mostrou os dados.


Combater um coronavírus verde-amarelo é um problema que tem de ser resolvido por brasileiros. Mais do que nunca vamos precisar dos nossos cientistas.


Para combatê-lo, mais do que nunca vamos precisar dos cientistas brasileiros


MAIS INFORMAÇÕES: LEVELS OF SARSCOV-2 LINEAGE P.1 NEUTRALIZATION BY ANTIBODIES ELICITED AFTER NATURAL INFECTION AND VACCINATION. LANCET (PREPRINT). https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3793486 (2021)