H.G. - O BESTEIROL QUE NOS ASSOLA SEM PIEDADE
sexta-feira, 26 de março de 2021 - 12:42
Revista Época / Colunistas
HELIO GUROVITZ
Um dos efeitos colaterais da Covid-19 foi ter despertado um interesse súbito pela ciência. Quem jamais havia olhado através de um microscópio se viu de repente envolto por epidemiologistas, infectologistas ou imunologistas. Escalas logarítmicas, médias móveis e modelos estatísticos entraram nas discussões como se fossem a tabela do Brasileirão. Uma tal de Ciência — assim, com maiúscula — passou a ser invocada como a força divina capaz de liquidar qualquer questão. Da noite para o dia, legiões de autoproclamados “divulgadores científicos” saltaram dos canais de vídeos na internet e das redes sociais para as páginas da imprensa e os noticiários televisivos. Tornaram-se as vozes mais estridentes num debate já travado em altíssimos decibéis. Mas, se alguém ainda nutre a ilusão de que essa outra epidemia tem contribuído para aperfeiçoar a política ou ampliar o conhecimento da população, basta olhar ao redor para perceber que o besteirol não tem limite.
No mundo anglo-saxão, consagrou-se um palavrão para definir essa mistura de embromação, asneira e pretensão que anima toda conversa fiada: “bullshit” (literalmente, “bosta bovina”). “Bullshit envolve linguagem, estatísticas, gráficos e outras formas de apresentação cuja intenção é persuadir ou impressionar a audiência distraindo, sobrecarregando ou intimidando, sem nenhum tipo de apreço pela verdade, coerência lógica ou informação de fato transmitida”, escrevem os cientistas Carl Bergstrom e Jevin West em Calling bullshit (algo como Refutando o besteirol). “Parte dela é inócua, outra parte é um leve incômodo, uma outra até divertida. Mas muito do bullshitol por aí tem consequências sérias para a saúde e prosperidade humanas, a integridade da ciência e a tomada de decisão numa democracia.” A causa da profusão de besteiras que nos assola sem piedade não é nova: “A invenção de formas de comunicação novas e variadas deu voz e uma nova audiência a muita gente cuja opinião jamais seria solicitada e que, na realidade, tem pouco a acrescentar às questões públicas além de excremento verbal”. Que fazer?
Bergstrom e West ensaiam uma resposta, derivada de um curso homônimo que dão na Universidade de Washington, em Seattle. Não se trata apenas de uma coleção de exemplos absurdos para nos divertir. Eles demonstram de modo didático como a linguagem da matemática e da ciência é usada por picaretas para transmitir uma impressão de rigor. Esmiúçam as falácias mais comuns na interpretação dos resultados científicos (em particular nas relações de causa e efeito), as armadilhas que se escondem atrás da pretensa objetividade das “métricas” (“quando uma medida vira meta, deixa de ser uma boa medida”), os vieses que distorcem a leitura das estatísticas, a prestidigitação usada em gráficos para nos ludibriar, a empulhação que cerca modismos como “big data” ou “algoritmos de inteligência artificial”. “Quando treinamos máquinas para tomar decisões com base em dados colhidos numa sociedade cheia de defeitos, elas aprendem e perpetuam os mesmos defeitos”, dizem.
No capítulo mais corajoso, desmistificam o besteirol que cerca o discurso científico.“Embora o ceticismo talvez torne a ciência a principal metodologia para enfrentar o bullshitol, não é garantia absoluta”, afirmam.
“Há muita bullshit na ciência, parte acidental, parte deliberada.” A explicação da principal artimanha adotada por cientistas para publicar resultados frágeis — conhecida como “p-hacking” — é primorosa e deve ser estudada por todos os que veem estudos científicos como verdades acima de qualquer suspeita. Nos capítulos finais, eles fornecem guias práticos tanto para reconhecer quanto para refutar o besteirol. Identificá-lo é uma atividade individual; contestá-lo, um serviço público essencial nestes tempos. Não se trata de parecer mais inteligente, mas de tornar os outros mais inteligentes. É preciso, para isso, escolher as batalhas e estar preparado para um esforço extenuante. “Produzir bullshit dá muito menos trabalho do que limpar.”
CALLING BULLSHIT | Carl Bergstrom e Jevin West, Random House | 2020 | 336 páginas | US$ 30
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