sábado, 30 de outubro de 2021

Roberto Giannetti Isto É Dinheiro / Entrevistas, 29 de outubro de 2021

 ENTREVISTA - ROBERTO GIANNETTI DA FONSECA, ECONOMISTA

sexta-feira, 29 de outubro de 2021 


 

Revista Isto É Dinheiro  / Entrevistas

Beatriz Pacheco


"Com a quebra da confiança, o custo do Auxílio Brasil é maior que o benefício" Para Giannetti, ao extrapolar o teto de gastos, o programa social do governo afasta investidores e provoca um ônus econômico que pode comprometer a recuperação do País no pós-Covid.





O economista Roberto Giannetti da Fonseca circula por eventos e reuniões com lideranças políticas e empresariais como figura costumeira. A experiência acumulada na proposição de uma agenda econômica nacional o credencia como uma voz de peso no mercado. Além da atuação no setor privado, foi secretário-executivo da Câmara do Comércio Exterior (Camex) no governo de Fernando Henrique Cardoso e diretor de relações internacionais e comércio exterior na (Fiesp). Em entrevista exclusiva à DINHEIRO, Giannetti se ressente dos anos que o transformaram em testemunha do fracasso da economia brasileira como potência internacional. Como saída, defende uma agenda reformista diferente da que vê hoje no governo de Jair Bolsonaro. “O cerne das reformas era reduzir privilégios, reorganizar a estrutura administrativa e enxugar o Estado, mas nada disso está sendo feito”, disse. “Precisamos de um novo governo com capacidade para realizar o que ficou para trás.” Por anos ligado ao PSDB, e integrante da equipe que formulou o plano de governo da candidatura de Geraldo Alckmin à presidência em 2018, ele acredita que apenas a união partidária ao centro levará `a escolha de um candidato único para a terceira via.





DINHEIRO – O que a ameaça ao teto de gastos representa para a economia brasileira?


ROBERTO GIANNETTI DA FONSECA – Furar o teto é desmoralizar o equilíbrio fiscal do qual o País depende para atrair investidores. Estamos combatendo a irresponsabilidade fiscal desde 2001, e a figura do teto de gastos formulada no governo de Michel Temer era uma garantia de respeito a esse princípio. Há alternativas para que isso não fosse feito, como a diminuição de despesas e condução de uma reforma administrativa que reduza os desperdícios com o dinheiro público.





O senhor é defensor das reformas. Que pontos faltam ser endereçados pelo governo? Precisamos de uma reforma política imediata para acabar com a reeleição e reduzir o número de partidos.





Por quê? A estrutura que se consolidou no Brasil pulveriza a classe política e dificulta a governança. O nosso sistema legislativo e regulatório também é ultrapassado. Estamos quase no segundo quarto do século 21 e não conseguimos criar um Estado menor e mais eficiente. A sociedade não tem o retorno do que investe por meio dos impostos. Conquistaríamos isso com boas reformas administrativa e tributária.





Como avalia as reformas propostas? A essa altura, a reforma tributária já se trata de um remendo, longe dos objetivos que se buscavam para simplificação e desoneração. Na verdade, segue no sentido contrário. Ela traz medidas questionáveis do ponto de vista constitucional e que podem criar novos litígios. Além disso, tem no seu bojo uma política conflitiva ao manter a disputa do governo federal com estados e municípios pelo ICMS (arrecadação estadual) e pelo ISS (arrecadação municipal).





E a administrativa? Seria melhor não aprovar a reforma que foi apresentada, que deve piorar o cenário atual. O cerne das reformas era reduzir privilégios, reorganizar a estrutura administrativa e enxugar o Estado. Mas nada disso está sendo feito. Precisamos de um novo governo com capacidade para realizar o que ficou para trás.





Que perfil agradaria o mercado para as eleições presidenciais em 2022? Precisamos de um governo com perfil conciliador e reformista para transmitir confiança ao mercado. O desemprego, a inflação e a alta dos juros são as consequências econômicas da perda de credibilidade e de confiança do atual governo. Precisamos de um governante que combine os papéis de bom empresário e estadista.





Que nomes do cenário político atual atendem a esse perfil? Antes do nome de um candidato, precisamos de um programa. Pelo menos seis partidos de peso do centro precisam chegar aos pontos de convergência para desenvolver e aderir a um programa, para que então se decida quem vai implementá-lo. Mais do que isso, é necessário montar uma equipe qualificada para apoiar o andamento dessa agenda. Esse projeto ainda precisa ser amplamente discutido com a sociedade. Então, é preciso avançar ou não haverá mais tempo.





Os partidos de centro ainda titubeiam em abrir mão de candidaturas próprias. Conseguiriam se unir em torno do programa único? Se fracionarmos o centro político, os dois extremos irão para o segundo turno. Hoje, temos como certo apenas que, no curto prazo, a situação econômica no País só tende a piorar. Por outro lado, temos bons institutos no Brasil com capacidade para estruturar um programa de governo com facilidade. Não é necessária uma agenda detalhada e sim contundente e enfática sobre os interesses comuns.





Como o senhor avalia a proposta do programa Auxílio Brasil? Com a quebra da confiança, o custo do Auxílio Brasil é maior que o benefício. O programa aumenta o ônus do governo, que já tem uma dívida pública que ultrapassa 80% do PIB. O mercado vê um desgoverno quando o presidente faz um anúncio que não foi previamente conversado com o Ministério da Economia. Precisamos do auxílio para as quase 15 milhões de famílias brasileiras em extrema pobreza [conforme dado do Cadastro Único do governo federal], mas sem responsabilidade fiscal, estamos gerando inflação. Um tiro no pé. Além de furar o teto de gastos, a expectativa de permanência dessa política é um erro.





Há um esvaziamento do papel do ministro Paulo Guedes no governo, então? O ministro Paulo Guedes assumiu o posto com um discurso liberal e objetivos grandiosos, como acabar com o déficit primário em até dois anos e reduzir a dívida pública. Não fez nada do que foi prometido. Ele caiu nesse vazio pela própria incompetência em conduzir a agenda econômica e pelas interferências do presidente. Bolsonaro só apoia Guedesem política econômica e eleitoreira. O foco do governo é a reeleição em 2022, e a política econômica responsável ficou de lado. Tanto que os melhores servidores do Ministério da Economia já abandonaram o barco. O mercado não acredita mais no ministro Paulo Guedes, que passou a ser até motivo de piada.





E qual seria o caminho para recuperação econômica no País? Pelo ciclo virtuoso da economia, começando pela atração de investimentos para gerar mais empregos. A elevação da renda puxa o consumo, que aumenta a arrecadação. Para começar a fazer essa roda girar, é preciso ganhar a confiança do investidor com regras seguras e estáveis. A insegurança provocou a saída do capital e emperrou a expansão dos negócios no País. Além disso, não temos mais investimentos em ciência, o que leva à fuga de cérebros. No fim, não há estímulo no ambiente econômico. Estamos desorientados e atravessando um mar revolto com um governo que gera conflitos todos os dias.





Existe perspectiva para o Brasil recuperar o seu papel no cenário econômico internacional? Com uma taxa de poupança tão baixa, não há investimentos suficientes para o Brasil crescer no ritmo que precisaria para recuperar o atraso. Podemos até ver um “voo de galinha” na economia, mas o elemento fundamental para sustentar o crescimento econômico é aumentar as taxas de poupança e de investimento.





Que caminhos podem levar à sustentação desse crescimento? O Brasil é um país arcaico para o comércio exterior. Precisamos fazer a abertura econômica para que a fatia de importações e exportações salte dos atuais 18% para 30% do PIB brasileiro em até dez anos.





E o que é decisivo para essa agenda andar? É crucial que seja precedida por uma arquitetura de políticas públicas para aumentar a competitividade das empresas no País. A agenda do comércio exterior passa por mais investimentos em educação e na indústria. Há 35 anos, Brasil, China e Coreia do Sul estavam no mesmo patamar como potências para abertura econômica. À essa época, cometi o maior erro da minha vida, em entrevista ao jornal britânico Financial Times, quando apostei no Brasil como o país que teria a posição de liderança nessa corrida. É uma angústia minha ter visto o País perdendo posição até cair para a lanterna.





O cenário logístico no País também afeta a competitividade no mercado? A logística no Brasil não é boa porque não há segurança jurídica ou desoneração tributária sobre investimentos. O encarecimento da estrutura logística descarrega o custo nas tarifas, o que prejudica todo o entorno. À medida que se organiza uma logística mais rentável, a desoneração se paga pela externalidade da economia, em novas indústrias e em um cenário mais competitivo.





Como a agenda de privatizações afetou o setor logístico no País? Há expectativa para melhoria, mas o próximo governo deve trazer uma visão prioritária para a infraestrutura do setor, que é um caminho para o desenvolvimento. A renovação das concessões também é fundamental para a continuidade dos investimentos na rede e integração da malha.





A agenda ambiental também tem peso para as negociações no comércio internacional. Qual é a situação do Brasil nesse cenário? O que aconteceu na última década, especialmente nos últimos três anos, fez com que a nossa promessa como potência ambiental fosse para o espaço. O estímulo à grilagem e ao desmatamento colocou o País como vilão no mercado internacional. Tínhamos tudo para liderar o mercado de descarbonização. A economia verde só assumiu protagonismo aqui por imposição da sociedade. A agenda ESG foi puxada pelas empresas. O papel do governo nesse cenário não está sendo cumprido, o que precisa mudar urgentemente.





Qual é o sentimento comum no mercado hoje? Há desesperança, mas não desistência ou abandono de forma generalizada. Só não podemos continuar em silêncio com os desvarios e equívocos que estamos cometendo. O governo é um retrato da sociedade. Se estamos insatisfeitos com o estado a que chegamos, precisamos mudá-lo.

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

China, protagonista em Glasgow?(FSP, 29 10 21)

 China, protagonista em Glasgow?

Pequim não vê contradição entre ser maior emissor e liderar transição verde

sexta-feira, 29 de outubro de 2021 


 

Folha de S. Paulo  / Mundo

Tatiana Prazeres


A bola está no campo da China. Foi assim que, em mais de uma ocasião, o britânico Alok Sharma, que presidirá a COP26, tratou das chances de sucesso do encontro em Glasgow.


O país asiático é o maior emissor de CO2 do mundo, com cerca de 28% do total. Matematicamente, sem a China, não há acordo climático global que justifique esse título.


Mas Pequim pretende ser protagonista em Glasgow pelos bons motivos. O país quer aproveitar a COP26 para dar credibilidade à pretensão de liderar a transição climática global.


Glasgow terá inevitavelmente uma etapa de concurso de beleza, em que os países se empenham em sair bem na foto, ressaltando as maravilhas que fazem pelo clima (enquanto o planeta esquenta).


Para esse momento, a China tem o discurso pronto. Apenas neste ano, lançou o maior mercado de crédito de carbono do mundo e se comprometeu a parar de financiar usinas a carvão no exterior. O país está à frente em energia eólica e solar. Investe em hidrogênio verde.


Além disso, a China sabe que precisa de energia nuclear. Enquanto muitos hesitam em tomar esse rumo, Pequim pisa no acelerador, com 11 usinas nucleares em construção hoje. Sairá na frente. Outros devem segui-la, porque a transição climática global dificilmente prescindirá de energia nuclear.


Glasgow terá também seus momentos de ringue de boxe, em que países se acusam mutuamente de não fazer o bastante pelo planeta. O problema é sempre o outro. Aqui, a China também tem protagonismo, sendo criticada por quem lhe cobra mais ambição, sem deixar de apontar o dedo para quem historicamente emitiu mais, ou para quem hoje tem maiores emissões per capita.


Para se cacifar como líder, no entanto, a China teria que ser capaz de assumir mais compromissos climáticos e de dar credibilidade às suas metas. A pergunta é se Pequim poderia antecipar prazos para começar a reduzir emissões ou atingir a neutralidade climática, previstos para 2030 e 2060, respectivamente.


Além disso, a postura da China nas negociações de Glasgow importa. Sobre a mesa estão principalmente questões ligadas a financiamento para ajudar países em desenvolvimento na transição climática, além de parâmetros para um mercado internacional de carbono. O risco é o de que negociadores -de diferentes países- recorram à lógica clássica: oferecer quase nada e querer muito dos demais.


Se for assim, Glasgow será palco desse misto de teatro e jogo de pôquer, em que os países fazem de conta que realmente estão negociando, mas no fundo blefam para ver se o outro lado pisca. No mundo real, todos perdem. A China precisaria ajudar a evitar esse cenário.


As ambições chinesas de liderança se beneficiam das fragilidades da posição americana. Há forças no Congresso carcomendo as pretensões climáticas de Joe Biden. Além disso, a inconsistência da posição dos EUA ao longo do tempo abala sua credibilidade na agenda do clima. Com o trumpismo à espreita, o negacionismo segue preparado para voltar -e o mundo sabe disso.


A China tem lá seus pés de barro. Não apenas pelos níveis altos de emissão, mas porque a atual crise energética no país evidencia a dependência brutal em relação ao carvão e põe em questão a credibilidade das metas chinesas.


Cálculos geopolíticos também tendem a enfraquecer as ambições ambientais chinesas (e americanas), em prejuízo do planeta, mas também de uma posição de liderança da China nessa agenda.


Em 2017, a China já dizia querer ser "participante, contribuidora e líder" nessa agenda. Para Pequim, não há contradição entre ser o maior emissor de CO2 do mundo e liderar a transição climática global.

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

A VIDA..De Mário Quintana

 


                  A VIDA


"Depois de muitas quedas, eu descobri que, às vezes, quando tudo dá errado, acontecem coisas tão maravilhosas que jamais teriam acontecido se tudo tivesse dado certo. 

Eu percebi que quando me amei de verdade pude compreender que, em qualquer circunstância, eu estava no lugar certo, na hora certa.

Então pude relaxar... pude perceber que o sofrimento emocional é um sinal de que estou indo contra a minha verdade.

Parei de desejar que a minha vida fosse diferente e comecei a ver que tudo o que acontece contribui para o meu crescimento.

Desisti de querer ter sempre razão e com isso errei muito menos vezes.

Desisti de ficar revivendo o passado e de me preocupar com o futuro. Isso me mantém no presente, que é onde a vida acontece.

Descobri que na vida a gente tem mais é que se jogar, porque os tombos são inevitáveis.

Percebi que a minha mente pode me atormentar e me decepcionar. Mas quando eu a coloco a serviço do meu coração,  ela se torna uma grande e valiosa aliada.

Também percebi que sem amor, sem carinho e sem verdadeiros amigos a vida é vazia e se torna amarga.

Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver,  apesar de todos os desafios,  incompreensões e períodos de crise. É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.

Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo..."

            Mário Quintana

A má medicina como ela é-Luiz Felipe Pondé,Folha de S. Paulo ,25 de outubro de 2021

 Luiz Felipe Pondé - A má medicina como ela é

A carreira médica sempre foi o topo da aristocracia profissional burguesa

segunda-feira, 25 de outubro de 2021 


 

Folha de S. Paulo  / Ilustrada

Luiz Felipe Pondé Escritor e ensaísta, autor de 'Notas sobre a Esperança e o Desespero' e Política n


Qualquer família de classe média alta do Brasil que conseguir pagar de10 a 15 mil reais por mês para uma faculdade de medicina pode ter seu filho médico à vontade.


Medicina ainda é a profissão de maior valor para as famílias, apesar de que o glamour associado a ela, quando olhado de perto, já é distante do cotidiano dos médicos.


Entrar em medicina, devido à gigantesca competição e ao difícil cotidiano da formação, sempre significou que os jovens na carreira eram acima da média em termos cognitivos e de resiliência.


Entrar no estresse da competição para se formar médico sempre foi um indicativo de um maior conjunto de skills profissionais, mesmo que, com o passar do tempo, o desgaste do cotidiano de trabalho muitas vezes acabasse por aniquilar as promessas de inteligência acima da média que havia na partida. A vida como ela é faz tudo ficar como ela é.


Claro que a medicina continua sendo uma grande carreira, cheia de profissionais grandiosos, responsáveis e que salvam vidas, como vimos na pandemia -hoje, no mundo das redes sociais e da estupidez que assola a recepção dos conteúdos do pensamento público, fazem-se necessários sempre reparos óbvios como este.


Feito esse disclaimer, o que essas faculdades que custam de 10 a 15 mil reais mensais têm a ver com os escândalos recentes de operadoras de saúde de baixo custo?


De partida, elas indicam que a única seleção nessas faculdades de medicina de ocasião é quem pode pagar essa grana. Nema qualidade do curso nema qualidade de quem entra nele importa muito.


Desde o governo Fernando Henrique Cardoso, a 'democratização' das faculdades de medicina inundou o mercado da formação na carreira. Esse fato, por sua vez, inundou o mercado com profissionais medíocres e mal formados.


Hoje, há uma faculdade de medicina em cada esquina, quase na mesma quantidade de supermercados e quitandas. A intenção dos governos, supostamente, era aumentar a oferta de médicos para ampliar o quadro do SUS, já que as boas oportunidades de emprego não assimilariam tamanha 'democratização' na oferta de médicos, muitas vezes de qualidade bastante duvidosa. Mas nem tudo aconteceu como as 'boas intenções' esperavam.


Pelas vias em que o mercado capta oportunidades, como sempre, investidores perceberam que aí estava uma grande oportunidade para abrir operadoras de baixo custo, empregando médicos jovens que mal conhecem medicina e que dificilmente conseguiriam espaço em instituições mais competitivas, identificadas com faculdades de medicina mais tradicionais e de maior qualidade histórica. A carreira médica sempre foi o topo da aristocracia profissional burguesa.


Resultado, uma massa de maus médicos correu para esse mercado que agora se faz objeto de escândalos.


Portanto, há uma 'parceria' entre oportunistas nesse processo que vai além dos furos jornalísticos da CPI. Essa parceria reúne investidores no mercado da saúde, médicos mal formados em busca de carreiras e salários, agências reguladoras, associações de classe de comportamento duvidoso e muito marketing mentiroso -pura redundância. A saúde sempre foi uma área de exploração do grande capital e da grande corrupção, que costumam andar lado a lado.


O mercado de seguradoras sabe que ninguém quer segurados idosos com baixa renda, como é o caso da imensa maioria da população que precisa de segurança de saúde. Idosos custam muito caro para as seguradoras, daí o altíssimo custo da operação.


O nicho dos idosos tende a ser ocupado por operadoras e profissionais dispostos a manobras de baixo caráter ético na lida com o sofrimento e de teor técnico muito abaixo da média. Quanto mais medíocre o profissional, mais chance ele terá de crescer na instituição, já que ele aceitará as práticas mais absurdas.


O caso Covid tornou isso evidente, apesar de que nada mudará uma vez esquecida a pandemia. O fundo da estrutura que gerou os maus-tratos permanecerá em outros quadros que atrairão menos mídia. A vida não vale nada em quase nenhuma parte do mundo, apesar do heroísmo de alguns.

domingo, 24 de outubro de 2021

A implacável volta da fome(Revista Isto é, 22 10 21)

 MISÉRIA - A implacável volta da fome

Depois de anos de evolução, o Brasil regride ao século passado e começa a criar mais uma geração de desnutridos. Os últimos levantamentos mostram que existem, hoje, cerca de 20 milhões de pessoas famintas. Com a destruição de políticas públicas, Bolsonaro faz ecoar as lembranças do “homem-caranguejo” e do “homem-gabiru”, que assombraram o País em décadas anteriores. A fome sempre foi um grande paradoxo nacional. E no País do alimento mais uma vez ele falta. A situação só piora

sexta-feira, 22 de outubro de 2021


 

Revista Isto é  / Capa

Vicente Vilardaga e Fernando Lavieri


Engendra-se neste momento uma política de extermínio de brasileiros pobres por meio da miséria e da fome. É mais uma estratégia destrutiva do governo Jair Bolsonaro, que parece ter o objetivo persistente de deixar a população morrer à míngua. Pessoas famintas sendo tratadas e agindo como animais se multiplicam em grandes e pequenas cidades, aumentando a tragédia social que não tem fim. Seres humanos se animalizam, abandonam a civilização por necessidade e atingem a condição de barbárie. Referências da pobreza e subnutrição nacional que pareciam esquecidas no passado, como o “homem-caranguejo”, identificado nos mangues do Recife pelo nutrólogo e geógrafo Josué de Castro, ou o “homem-gabiru”, o brasileiro de 1,35 metro comparado a uma ratazana do Nordeste, voltaram a ecoar e perturbar ainda mais a realidade. O País vive hoje seu pior ciclo de carestia desde o século passado e afunda cada vez mais numa crise humanitária. Atualmente, segundo o Inquérito Nacional Sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19, mais recente pesquisa sobre o assunto, pelo menos 20 milhões de pessoas passam fome por aqui, o equivalente a 9% da população, e 55% dos brasileiros têm algum problema rotineiro de falta de alimento.





O levantamento foi realizado em dezembro de 2020 pela Rede PENSSAN, com apoio do Instituto Ibirapitanga e parceria da ActionAid Brasil, FES-Brasil e Oxfam Brasil, todas organizações não-governamentais, e mostrou que a situação se deteriora rapidamente desde 2015, quando o País deixou o Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU), voltando a níveis anteriores a 2004. “A gente tem acompanhado os dados e de que maneira a falta de políticas públicas contribuiu para essa situação alarmante com a pandemia. O Brasil corre o risco de se tornar um novo epicentro da fome no mundo”, afirma Maitê Gauto, gerente de programas da Oxfam Brasil. “Em 2018, havia 10 milhões de esfomeados e em três anos o número praticamente dobrou e mais da metade da população sofre sem comida”. Por conta do aumento de preço dos alimentos, as pessoas vêm seus orçamentos se tornando insuficientes para atender necessidades básicas. O peso da alimentação, muito representativo na lista de despesas das classes mais baixas, cresce e impede que as famílias tenham o suficiente para se manter até o fim dos mês. O arroz, por exemplo, aumentou cerca de 30% nos últimos 12 meses, patamar semelhante ao da carne bovina.





“É uma situação muito complicada e a inflação está subindo. O dado da pesquisa do ano passado ainda não mostrava esses efeitos. Muito provavelmente o quadro agora é muito pior do que em dezembro”, diz o economista Walter Belik, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e estudioso do mercado de alimentos e da fome. Em 2020, a inflação acumulada foi de 4,52%. Em 2021, até setembro, foi de 6,9%. No caso do número de obitos pela Covid-19, dois terços das 604 mil mortes, mais de 400 mil, aconteceram neste ano, mostrando que 2021 está sendo pior em muitos sentidos. O dólar também sobe, aumentando o preço em reais dos produtos importados ou cotados internacionalmente. Com o governo federal abandonando as políticas de combate à fome e tirando recursos da área, quem cuida hoje do assunto para que não haja um colapso são os governos estaduais e municipais, mas de maneira independente e sem coordenação central. Outro problema é que Bolsonaro prejudica a obtenção de dados por causa do cancelamento do Censo Demográfico. Para fazer o levantamento da população faminta no próximo ano não será possível contar com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), perturbando a sequência de informações históricas.





Uma das causas do aumento da fome é a irregularidade e a incerteza do auxílio emergencial, que substituiu o Bolsa Família durante a pandemia e perdeu poder de compra devido à inflação galopante. O programa está parado desde que o governo adotou o auxílio emergencial, sujeito a interrupções e recomeços e que corre por fora do Cadastro Único, central de informações atualizadas de beneficiários e consolidadas na última décadas, que exige contrapartidas para o pagamento mensal. O auxílio atual enfrenta problemas de governança e compliance, além de gerar incertezas na população pelo seu caráter precário. Para substituir o Bolsa Família, o ministro da Economia, Paulo Guedes, anunciou, quarta-feira, 20, o lançamento do programa Auxílio Brasil, que a partir de novembro deverá pagar R$ 400 para 16 milhões de famílias. O problema é que a medida chega como mais uma cartada populista de Bolsonaro, com prazo de validade para 2022 e cheia de oportunismo eleitoral, além de romper o teto de gastos do governo. Sem contar que o crescimento do número de famélicos é exponencial e há uma demora inaceitável para se ajustar iniciativas de combate ao flagelo. Como dizia o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, grande lutador pelos direitos humanos, “quem tem fome, tem pressa”.





Segundo a economista e professora do Insper Laura Müller Machado é inexplicável que se tenha gasto tanto dinheiro com o auxílio emergencial e se realizado tão pouco no enfrentamento da insegurança alimentar. “O Bolsa Família custa R$ 30 bilhões por ano, e o auxílio, nos últimos doze meses, já custou R$ 300 bilhões”, afirma. Os recursos saem dos cofres do Estado, mas não chegam até a população necessitada. “Se a rede de assistência social não funciona, não é porque faltou dinheiro, mas sim porque o governo alocou recursos de forma errada”, diz. Deu pouco para muita gente e não resolveu o problema. “Se chegamos nesse ponto é porque não houve eficiência no socorro na pandemia e nem o apoio necessário da assistência social”, disse.





Cenas dantescas se repetem no Brasil nas últimas semanas e recuperam algo que parecia ter sido superado. Pessoas esfomeadas buscando restos de comida em lixos de rua, brasileiros desesperados em busca de alguma proteína animal. No fim das feiras, aumentam as aglomerações de pessoas a procura de alimentos. Disputam-se ossos e carnes descartadas para consumo, como se viu no Rio de Janeiro, ou vasculhando caminhões de lixo em Fortaleza para encontrar algo aproveitável para comer. Há pessoas sendo presas porque roubaram um pacote de miojo, como foi o caso da moradora de rua Rosângela Lemos, no final de setembro. Dependente química e mãe de cinco filhos, ela entrou no supermercado Oxxo, na Vila Mariana, em São Paulo, e furtou um macarrão, uma garrafa de Coca-Cola, e um pacote de suco Tang. Acabou presa por quinze dias, mas com a ajuda da Defensoria Pública de São Paulo e do clamor popular, alcançou a liberdade.





Seu caso, afinal, foi enquadrado como furto famélico, ação que visa saciar a fome e que envolve alimentos cujos valores são considerados irrisórios para a vítima. O defensor público Diego Polachini, que atuou no processo de Rosângela, diz que situações como a dela se tornaram corriqueiras. Ele trabalha, por exemplo, num caso de furto de dois pacotes de amendoim, cada um no valor de R$ 1,50, em que o autor foi condenado a um ano de cadeia. “Atos desse tipo são muito pequenos para se mobilizar o Estado”, diz. Imagens do cotidiano da maior metrópole do País demonstram que o estudo da Rede PENSSAN está correto e, provavelmente, subestimado. Ao caminhar pelas ruas que dão acesso ao Mercado Municipal, no centro de São Paulo, pessoas famélicas se alimentam do que sobra de comida no lixo. “Se não pegar, passo fome” diz Gilberto Alves de 53 anos. Com o corpo coberto por trapos, numa terça-feira de frio e chuva na cidade, Alves, pintor profissional, vaga pelas ruas vasculhando lixos em busca de comida e vai pegando o que pode. Ele está em situação de rua há dez anos e não procura mais emprego desde o inicio da pandemia. Famílias inteiras estão vivendo na penúria mais absoluta. A dona de casa Alexandra de Araújo, de 29 anos, que mora no Recife (PE) e cuida de cinco filhos, os dois menores gêmeos, é um exemplo de brasileira sofrida nestes tempos famélicos. Na segunda-feira, 18, ela e suas crianças estavam sem colocar nada na boa há 24 horas. Alexandra recebe auxílio emergencial de R$ 375 e mora numa casa alugada na beira do Rio. A maior parte do que ganha vai para o aluguel e sobra pouco para o alimento. “Não sabemos mais o que fazer”, diz.





O Mercado Municipal é um dos pólos turísticos da cidade de São Paulo. O estabelecimento é repleto de restaurantes e lanchonetes que atendem turistas de todas as partes do planeta com iguarias de alto requinte. Porém, próximo ao local em que Gilberto Alves se alimentava com as sobras de bananas e melões em decomposição, há uma saída do prédio, na Avenida do Estado, em que pessoas se amontoam à espera de descartes. “O que ganho não dá para matar a fome”, diz Lígia Maria de Oliveira, 72, aposentada. O dinheiro que recebe é a única renda da família que sustenta três adultos e uma criança. Ela conta que chegou cedo ao local. “Estamos aqui desde às seis horas”, diz. Dona Lígia explica que os restos de alimento que pega, antes que sejam descartados na caixa trituradora, leva para casa, no Jardim Peri, lava tudo e guarda na geladeira. O cunhado de Ligia, Janio Souza, de 64 anos, desempregado desde 2016, diz que o Brasil empobreceu após a chegada de Bolsonaro ao poder. “O presidente não pensa nos trabalhadores, só nos filhos”, diz. Os dois conseguiram abastecer as sacolas com legumes, como tomate, pimentão e berinjela, além de peixes podres.





“Já vi gente morrer de fome aqui no gramado”, diz a moradora de rua Neusa Carvalho da Silva ao começar a falar sobre o tema da fome. Ela vive no canteiro central em frente ao Ceagesp, maior entreposto da América Latina, situado na zona oeste da cidade. “Tia”, como é conhecida Neusa, é a responsável por cozinhar a sopa que alimenta todos os moradores do local à noite. Ela reclama que o Ceagesp não ajuda o seu pessoal, pelo contrário. “Quem entra lá, apanha. Nem o banheiro podemos usar”, conta. Uma das pessoas mais comprometidas em minimizar a fome no País é o padre Júlio Lancellotti, criador da Pastoral do Povo da Rua. A organização eclesiástica distribui 800 almoços diariamente a pessoas em situação de rua além de prestar outros tipos de atendimento. O padre conta que ao observar pessoas famintas se alimentando, como elas não têm certeza que no dia seguinte vão conseguir comer novamente, pegam a marmita e a devoram com a máxima ferocidade possível. “A intenção é comer duas vezes para poder suportar mais tempo sem se alimentar”, diz. Lancellotti vê esse momento como um dos piores da história brasileira. “Vejo pessoas que comem até comida estragada”, afirma Em relação à política do governo no combate a fome, o padre só vê ações deletérias. “Bolsonaro não entende muito bem o que está fazendo e o governo trata essas pessoas como descartáveis”, lamenta.





A interrupção de políticas públicas de combate à miséria e à fome durante o atual governo é causa direta da tragédia alimentar que aflige o País. Desde que assumiu, Bolsonaro trata de quebrar estruturas de assistência social e interromper programas que levam comida aos mais necessitados. Uma das primeiras medidas, em 2019, foi extinguir o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), o que desorganizou as políticas nacionais de combate à fome. A entidade tinha a atribuição de elaborar e sugerir ao governo federal condutas que priorizem políticas públicas de segurança alimentar e nutricional. “Foi como varrer a sociedade civil de todas as ações de governo”, afirma Kiko Afonso, diretor-executivo da Ação da Cidadania Contra a Fome e a Miséria Pela Vida, instituição criada por Betinho. Ele explica que a fome no Brasil vem crescendo há quatro anos, porque, a partir de 2017, mudou a visão política do processo de produção de alimentos e se passou a negligenciar a agricultura familiar. “Nesse período, as políticas de combate a fome foram destruídas”, diz.





Outras medidas negativas do governo que agravam a carência de alimentos foram a redução drástica do Programa de Cisternas, que garante água para a produção de alimentos e criação de animais nas regiões mais secas do Nordeste e o fim dos estoques reguladores, que começaram a ser extintos em 2017 e impediriam, se estivessem ativos, o encarecimento de itens básicos como o arroz e o feijão, que aumentou 17,3% em 12 meses. Também foi desmantelado o bem-sucedido Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que previa a compra pelo governo de alimentos produzidos pela agricultura familiar e sua distribuição para a população carente. Finalmente, em mais um golpe no pequeno produtor, foi encolhido o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, com um corte de 40% nos subsídios em 2021. Mesmo com o novo programa de auxílio, o governo não tem vontade política e nem capacidade de gestão para enfrentar o drama da fome de frente. Há um gravíssimo problema que exige uma solução imediata. É uma vergonha que o Brasil, reconhecido como o País que mais reduziu a fome e a pobreza no mundo na década passada volte para o famigerado mapa da carestia e se converta novamente numa referência da miséria global.


A crise nas cadeias de abastecimento é golpe na globalização? (VEJA 22 10 21)

 VILMA GRYZINSKI - O MUNDO FICA DISTANTE DE NOVO

sexta-feira, 22 de outubro de 2021 - 07:18


 

Revista Veja  / Colunistas

VILMA GRYZINSKI


A crise nas cadeias de abastecimento é golpe na globalização?





EM abril de 1956, um cargueiro zarpou de Nova Jersey para Houston levando uma novidade: “caixas” de aço corten de tamanho padronizado que podiam ser transferidas diretamente para carrocerias de caminhões especialmente adaptadas para transportá-las. Chamavam-se contêineres e tinham sido inventadas por Malcom McLean, um empreendedor que havia começado no ramo dos transportes como menino paupérrimo do interiorzão da Carolina do Norte, trabalhando com um caminhão de segunda mão. As humildes “caixas” mudariam o mundo. Ao racionalizar e baratear os custos do transporte marítimo, elas confluíram para transformações muito mais celebradas, como a revolução digital, a transformação da China em economia de mercado e a entronização do capitalismo e do livre fluxo de mercadorias como sistemas consensuais. O conjunto dessas mudanças foi chamado de globalização.





Levantar de manhã e tomar um café com cápsula feita na Suíça — um país que não produz um único pé de arábica —, teclar num celular fabricado em Zhengzhou e pegar um carro alimentado a chips semicondutores vindos de Taiwan são atos que a globalização normalizou. E os contêineres viabilizaram, em escala estonteante. O maior navio cargueiro do mundo tem capacidade de levar 23992 contêineres. Cabem neles 145 milhões de pares de tênis. Tão revolucionárias quanto as ânforas para o transporte de vinhos e azeites disseminadas pelos fenícios, as caixonas de transporte inauguraram problemas que se tornaram clássicos da globalização. A começar pela redundância dos estivadores, uma categoria altamente sindicalizada e boa de briga, características que não impediram seu drástico encolhimento. Das fábricas de calçados gaúchas às siderúrgicas de Detroit, a transferência da produção para a China provocou o mesmo efeito exterminador nos empregos. A promessa da economia globalizada era que os postos de trabalho sugados “aqui” — no setor manufatureiro — ressurgiriam “ali” — na indústria de serviços e de tecnologia avançada. Nem sempre foi uma promessa cumprida, redundando em rebeliões eleitorais como a vitória de Donald Trump e do Brexit, mas a economia globalizada tirou 1,1 bilhão de pessoas da pobreza e barateou o custo de vida de outros bilhões.


sábado, 23 de outubro de 2021

Falta racionalidade e sobram contradições no debate energético ( Décio Oddone: Broadcast, Outubro de 2021)

 Décio Oddone: falta racionalidade e sobram contradições no debate energético  

 

Quem acompanha o debate energético tem dificuldade em entender muitas posições. A nível global e local. Em temas estratégicos e táticos. Alguns exemplos, a seguir. A redução das emissões de carbono, uma maior inclusão e a redução da desigualdade são aspirações da sociedade, mas poucos estão dispostos a diminuir o consumo ou pagar mais pela energia. Inovação e tecnologia, essenciais para a melhorar o ambiente, têm custo. Governos necessitam de recursos para combater a pobreza e financiar a transição. No entanto, abundam vozes contra as atividades de petróleo e gás em países em desenvolvimento. Grupos se opõem à exploração em locais como o Brasil, enquanto eleitores votam pela sua continuidade em países como a Noruega. 

 

Ao contrário do que alguns querem fazer crer, a substituição das fontes poluidoras não será imediata. Os investimentos em fósseis caíram, mas os aportes em renováveis não cresceram o suficiente. A limitação nas inversões e na disponibilidade de hidrocarbonetos pode produzir mais volatilidade e ser desastrosa. A oferta de energia de fontes não-renováveis precisa subir antes de diminuir. A solução passa por garantir a oferta, enquanto a intensidade de carbono é reduzida. As decisões políticas e empresariais que vão criar as condições para a transição precisam ser tomadas, mas o caminho será longo e custoso. Em meio a esse debate, líderes globais se reúnem mês que vem em Glasgow. Está na agenda a discussão sobre quem vai pagar pelo menos parte da conta.  

 

O imediatismo prevalece na avaliação de cenários. Com a pandemia, as cotações do petróleo despencaram. A Agência Internacional de Energia divulgou um trabalho sobre o que seria necessário para reduzir as emissões a ponto de cumprir o Acordo de Paris e limitar o aquecimento global a 1,5º acima da temperatura média de antes da Revolução Industrial. Não seriam necessários novas minas de carvão e projetos de petróleo e gás. O barril custaria US$ 35 em 2030. Trata-se de uma visão alternativa, altamente improvável, mas não faltaram opiniões indicando que o fim dos hidrocarbonetos estava próximo.  

 

Quando a demanda voltou, a procura por petróleo, gás e carvão explodiu. Faltou energia em várias regiões. Os preços decolaram. A Agência divulgou o Relatório Anual de Energia, que traz cenários mais prováveis. Estima que o consumo logo retornará a cerca de 100 milhões de barris por dia, patamar de 2019. O valor do Brent superou os US$ 80, cotação que poucos acreditavam que voltariam a ver. Retornaram as previsões de que logo vai superar os US$ 100. Em meio ao vai e vem das projeções, se esquece que a média histórica é de cerca de US$ 50. 

 

Nas discussões domésticas, o quadro é o mesmo. Muitos que defendem uma Petrobras forte clamam por intervenções quando os preços sobem. Olvidam o dano sofrido pela estatal quando vendia combustíveis abaixo do preço internacional. Desejam que a companhia invista em toda a cadeia, mas não querem garantir os seus ingressos. Combustíveis são commodities, mas enquanto os preços dos derivados de petróleo são discutidos, não há questionamentos sobre as cotações dos biocombustíveis.  

 

Os benefícios de uma maior competição são conceitualmente aceitos, mas basta surgir uma medida prática para eliminar uma barreira de entrada ou uma reserva de mercado que logo surgem as oposições. Quando os preços sobem, voltam as especulações sobre um fundo, mas não se recorda que a ideia de minimizar a volatilidade dos preços foi materializada na CIDE, idealizada originalmente para atuar como mecanismo de estabilização, que não funcionou.  

 

O país sonhou durante décadas em ser autossuficiente em petróleo. Agora que se tornou um grande exportador, surgiu a ideia de taxar a exportação para incentivar a construção de refinarias. Em um período em que unidades são fechadas ao redor do mundo. Isso atingiria o coração do setor, impactando investimentos, produção e arrecadação. Colocaria em risco o futuro da indústria no país, justamente quando se posiciona para aumentar significativamente a produção.  

 

Voltou o debate sobre subvencionar o gás de cozinha para famílias de baixa renda. Poucos lembram que essa iniciativa já foi implementada, quando foi criado o antigo Vale Gás, depois integrado ao Bolsa Família. Como já demonstrado na prática, um reforço dos recursos repassados por esse programa seria mais eficiente para combater a pobreza que a diluição dos aportes em diferentes iniciativas de menor poder de fogo. 

 

O sistema tributário é criticado. Os tributos pesam no preço final dos combustíveis. O ICMS amplifica e propaga os aumentos na bomba e intensifica a volatilidade. Os incrementos de preço têm reflexo nas arrecadações estaduais, que passam a superar as previstas nos orçamentos. O imposto estabelece uma espécie de preço de referência, que inibe a competição. As variações de alíquota incentivam a sonegação. No entanto, quando entram em discussão a cobrança do ICMS através de um valor fixo por litro, a uniformização das alíquotas e do preço de pauta e a adoção da monofasia tributária, importante para combater as fraudes, aparecem as reações contrárias. Não faltam alegações contraditórias. Algumas afirmando que o tributo não sobe porque a alíquota está constante. Outras defendendo que os estados não podem renunciar à arrecadação adicional.  

 

Parece que se vive em um festival de busca do almoço grátis. Independente do conhecimento e das experiências acumulados, há temas que estão polarizados e politizados. De como deve avançar a transição energética, no mundo, a regras aplicáveis ao setor de petróleo, no Brasil. O acesso cada vez mais amplo a todo tipo de informação, a disseminação de versões através de redes sociais e a radicalização das opiniões estão acirrando os debates e prejudicando a tomada de decisões. É preciso mais racionalidade e consensos. Ou as trajetórias em direção a um planeta livre de carbono e a um país com economia mais sólida e sustentável serão mais longas ainda. Logo se verá, em Glasgow e Brasília, quais os caminhos escolhidos.


Décio Fabrício Oddone da Costa é engenheiro e CEO da Enauta S.A. Escreve mensalmente para o Broadcast Energia. 

 

Este artigo representa exclusivamente a visão do autor.

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Fim da pandemia e o que veio para ficar(Celso Ming, Estado, 22 10 21)

 Celso Ming - Fim da pandemia e o que veio para ficar

sexta-feira, 22 de outubro de 2021 


 

O Estado de S. Paulo  / Economia

A gora que mais da metade dos brasileiros está plenamente vacinada, o fim da pandemia já aparece no fim do túnel. Independentemente das confusões no combate à covid-19, da política e da área econômica, muitas coisas mudaram ou pegaram carona na pandemia para mudar.


O trabalho em casa é uma dessas coisas. Do ponto de vista da empresa, a redução de custos na área dos escritórios foi colossal. Do ponto de vista do empregado, ficou aquela chateação de ter de permanecer indefinidamente engaiolado e das restrições de contato com a equipe e com a chefia. Mas o trabalho em casa flexibilizou os horários, evitou cansativos percursos para o trabalho e de volta para casa. É provável que o trabalho não volte ao que era e que o novo regime adotado por parte das empresa seja híbrido, uma mistura entre o presencial e o home office.


A retomada da atividade está aumentando as contratações de mão de obra. Mas o emprego deve mudar de patamar. As empresas aprenderam a operar com mais tecnologia e menos pessoal.


No mundo inteiro, a suspensão das restrições aumentou a produção e o consumo. E o que se viu foi forte escassez de matérias-primas, energia, semicondutores e contêineres. A pandemia havia reduzido a navegação, porque a tripulação dos navios teve de se resguardar. O sistema dos fluxos de transporte e de distribuição ficou desarticulado. E desorganizou-se o regime just in time, pelo qual os estoques haviam sido reduzidos ao mínimo, insumos e componentes chegavam apenas na hora da montagem. A disparada dos preços do petróleo e a inflação dos alimentos têm a ver com isso. Aos poucos, a organização anterior deverá ser restabelecida. Mas não totalmente. É possível que as empresas tenham aprendido a não correr mais o risco do desabastecimento e que voltem a fazer algum estoque. O resultado será o aumento dos custos e inflação.


O final da pandemia não vem sozinho. Estão em curso outras mudanças. Já vinha acontecendo uma revolução nas relações de trabalho, em direção às atividades autônomas regidas por aplicativos. A população está envelhecendo, o custo da saúde está à beira do insuportável e o engajamento dos governos em direção à energia sustentável vai mudar muita coisa. E há as novidades do open banking, da indústria 4.0, a conexão 5G as cidades inteligentes. Como esse mundo novo será aplicado de maneira desigual, a desigualdade aqui e no mundo também tenderá a aumentar.


A covid-19 continuará entre nós, assim como outros vírus. Mas, felizmente, o sacrifício de vidas tende a ficar cada vez mais baixo.