China, Ano 1 d.C.: nada normal, tudo sob controle Por Marcelo Ninio 14/10/2020 • 04:30 Cheguei a Pequim no dia 1º de outubro, feriado nacional que celebra a fundação da República Popular da China. Poucas datas seriam mais simbólicas para um recomeço por aqui. É o início da minha segunda temporada como jornalista baseado na China, e também o início desta coluna digital, em que farei o possível para ampliar o conhecimento e o interesse dos leitores sobre um país cada vez mais crucial para os destinos do mundo. Entender o impacto da ascensão global da China é o grande desafio geopolítico de nosso tempo. Para o Brasil, lidar de modo pragmático com seu maior parceiro comercial é uma questão de bom senso. Com um terço das exportações brasileiras indo para a China, é um casamento inevitável, mesmo que os noivos não morram de amores um pelo outro. Antes de pegar um trem de alta velocidade rumo a Pequim, cumpri os 14 dias de quarentena obrigatória em um hotel de Shijiazhuang, cidade a 260 quilômetros da capital. Do embarque num voo da China Airlines até a chegada, não é difícil entender como os chineses conseguiram conter o vírus que surgiu em seu território até chegar à disseminação quase zero. Não tem muito mistério: controle, rastreamento e testes à exaustão. Para começar, só embarca quem apresenta um teste negativo de Covid-19, feito no máximo 72 horas antes, e preenche uma série de questionários de saúde. No vôo de 9 horas entre Copenhague e Shijiazhuang, máscaras obrigatórias, distanciamento de um assento entre os passageiros e três checagens de temperatura, com toda a tripulação coberta dos pés à cabeça com equipamentos de proteção, estilo astronauta. Na chegada, extremamente organizada, mais uma série de questionários de saúde e um novo teste, este o mais incômodo: cotonetes no fundo das duas narinas por 30 segundos, que parecem uma eternidade. Lágrimas gerais, mas ninguém reclamou. Vestido em estilo caubói, um simpático jovem chinês que voltava dos estudos na Inglaterra se ofereceu para me traduzir as orientações dos médicos e resumiu com bom humor a resignação geral: é a China no ano 1 d.C., “depois do corona”, só resta nos acostumarmos. Terminado o procedimento de chegada que durou umas três horas, nosso grupo foi levado de ônibus a um hotel determinado pelo governo para a quarentena de duas semanas, com as despesas pagas pelos passageiros. Cada um no seu quarto, só casais com filhos pequenos tiveram permissão para ficar juntos. Para conter possíveis fujões, a porta dos quartos soava um alarme quando aberta por mais que alguns segundos. Duas vezes por dia recebíamos a visita de um “astronauta” que desinfectava o quarto com um spray. E toda manhã e no meio da tarde tínhamos que enviar nossa temperatura à gerência. Na entrada do hotel, um trailer da polícia e um carro de bombeiro estavam à postos, suponho, para conter qualquer acontecimento fora do script. Depois de ouvir vários relatos de estrangeiros que passaram por quarentenas penosas em hotéis mofados, com refeições intragáveis ou funcionários mal-humorados, me preparei para duas semanas de provações, mas dei sorte. A comida que me serviram foi variada e quase sempre bem razoável, o quarto era amplo, os funcionários atenciosos e os janelões ofereciam luz natural em abundância além da distração do vaivém dos aviões no aeroporto em frente. Admito que 43 refeições chinesas seguidas testaram a minha capacidade de adaptação à culinária local, mas não posso reclamar. Depois de 14 dias, 28 checagens de temperatura, dois testes de Covid, 80 quilômetros de caminhada no tapete do quarto e três livros concluídos, recuperei a liberdade e segui viagem rumo a Pequim. No tempo em que fiquei isolado, ouvi de amigos chineses que a vida lá fora tinha praticamente voltado ao normal. Enquanto países como o Brasil e os EUA ainda lutam para conter a pandemia e a Europa teme uma segunda onda, na China a vida retomou o seu ritmo. Ao chegar a Pequim vejo que é verdade, em parte. No feriado nacional milhões viajaram sem muita preocupação. Nas ruas, o clima é descontraído, restaurantes estão cheios, a segunda economia do mundo parece estar a todo vapor. Mas a vida está muito longe do normal. Muitos aqui acham que nunca voltará a ser o que era, mesmo depois das vacinas, que já estão sendo testadas em massa. Embora as máscaras não sejam obrigatórias em ambientes abertos, a grande maioria das pessoas prefere usá-las quando sai de casa. Checagens de temperatura são corriqueiras em lugares fechados como shoppings, onde muitas vezes é exigida a exibição do sinal verde num aplicativo de celular para atestar que o usuário não circulou em áreas de risco. A julgar pelos números, está dando certo. Depois de quase dois meses sem um único caso de transmissão local, o país registrou seis na cidade costeira de Qingdao. Imediatamente foi anunciado que toda a população da cidade, de 9 milhões de pessoas, será testada nos próximos dias. Nada normal, mas tudo sob controle.
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