sábado, 25 de maio de 2019 04:02
O ESTADO DE S. PAULO | ECONOMIA
Autor: ANTONIO CABRERA
Contrato assinado por agricultores chineses em meio ao
governo de Mao Tsé-tung mudou a cara do país
"Trabalhe duro , não trabalhe duro todos recebem o
mesmo. Então as pessoas não querem trabalhar ."
Yan Hongchang Em 1978, um pequeno pedaço de papel assinado
em Xiaogang, um vilarejo na longínqua China rural, teve o poder de formatar o
mundo como vivemos hoje.
Depois de tomar o poder em 1949, Mao Tsé-tung aboliu
brutalmente a propriedade das terras privadas, agrupando fazendas em
"comunas populares" subservientes ao Estado. Essa brutal intervenção
do Estado ficou conhecida como o Grande Salto para Frente, gerando a escassez
mais mortal de toda a história. Era a utopia de que o planejador central sabia
melhor como cultivar os campos.
Em 1960,
a China era um caos completo. A taxa de mortalidade
pulou de 15% para 68%, e a taxa de natalidade despencou. Os agricultores,
totalmente desnutridos, eram inca- pazes de lavrarem o solo e morriam vendo o
arroz apodrecer.
Quem quer que fosse pego estocando grãos era fuzilado. Os
mortos por inanição chegaram a 50% em alguns vilarejos. Os sobreviventes
vagueavam pelas estradas à procura de comida.
Mas isso ainda era pouco. Em 1968, um membro da Guarda
Vermelha, de 18 anos, chamado Wei Jingsheng, se refugiou próximo a Xiaogang e
descreveu cenas dantescas: famílias trocavam suas crianças para poder comê-las.
A China foi, de longe, o maior campo de morte da história do mundo.
Como não poderia ser diferente, os agricultores de uma
pequena aldeia chamada Xiaogang estavam desesperados pela completa falta de
comida. Mesmo desenterrando raízes ou cozendo folhas com sal, eles não estavam
conseguindo alimentos suficientes para a sua sobrevivência. Foi então que em
uma noite no fim de novembro de 1978 um grupo de 18 agricultores de Xiaogang se
reuniu secretamente e tomou uma decisão radical.
Comandados por Yan Hongchang, eles assinaram um contrato que
devolvia as terras para cada agricultor de forma individual. Eles sabiam que o
planejamento estatal não estava funcionando. Mas o fato de dividir a terra
entre si poderia levá-los à prisão e, para tanto, concordaram que ninguém
jamais saberia daquela história.
Caso alguém fosse preso, ficou combinado que os outros
criariam os filhos dos prisioneiros.
Era um documento contra a base do socialismo e quase um
retorno à propriedade privada. Uma verdadeira contrarrevolução em plena
ebulição revolucionária de Mao Tsé-tung.
Então aconteceu um verdadeiro milagre. Em um ano, a extensão
de terra plantada praticamente dobrou e a aldeia passou a gerar excedente de
arroz.
As notícias do sucesso da "agricultura individual"
rapidamente se espalharam por toda a China.
A produção de grãos aumentou para 90 mil quilos em 1979,
mais de seis vezes a registrada no ano anterior. A renda per capita de Xiaogang
acompanhou o passo e subiu dos 22 yuans para 400 yuans. Para se ter uma ideia,
isso foi o equivalente à soma total de todas as colheitas entre 1955 e 1970, de
acordo com dados oficiais. Praticamente da noite para o dia, a vila saiu da
pobreza.
Aparecem as primeiras críticas ferozes e, em 1979, o Partido
Comunista Chinês (PCC) emite uma nota reafirmando que o "trabalho
individual nos campos" não estava permitido.
No entanto, como a forma de produção de alimentos aumentava
de maneira vertiginosa, em 1984, o governo recua e na 35.a Parada Nacional,
cinco tratores desfilam na Praça Tiananmen com um gigantesco letreiro dizendo
que o contrato de Xiaogang era bom.
O próprio governo reconheceu que Xiaogang "quebrou o
alto sistema de produção centralizado oferecendo ao agricultor o direito à
autonomia da sua produção...". "Isso liberou e desenvolveu a
produtividade das áreas rurais."
Posso dizer que há momentos na vida que tiram o fôlego. Foi
o que experimentei quando visitei Xiaogang e entendi o corajoso passo dado por
Yan Hongchang.
Quem explica melhor o que se passou em Xiaogang é o próprio
reformador Deng Xiaoping. Em uma audiência com líderes estrangeiros, ele
reconheceu que "Xiaogang era o lugar mais pobre da nossa história, mas
houve uma grande mudança nos últimos dois anos. O lugar era o mesmo, mas a nova
política agrícola alterou completamente o lugar".
E destaca, de maneira explícita: "O sucesso do trabalho
rural de Xiaogang aumentou nossa confiança; nós aplicaremos a experiência da
reforma rural nas cidades e faremos uma larga reforma no sistema econômico com
foco nas cidades".
A contribuição do contrato de Xiaogang se refletiu não
apenas no nível material. A onda histórica da reforma saiu do campo da economia
e foi para as áreas da política, sociedade, cultura, etc. com um poder
irresistível.
Em 1986, oito anos depois de Xiaogang ter retomado o controle
de sua agricultura, o governo central da China emitiu as Diretrizes para o
Trabalho Rural. O documento foi uma decisão marcante no desenvolvimento moderno
do país. Com base na abolição das comunas populares três anos antes, endossou
formalmente uma política que veio a ser conhecida como baochan daohu - um
modelo de organização rural ao estilo Xiaogang conhecido como "sistema de
responsabilidade doméstica".
Com aquele acordo assinado à luz de velas no interior
faminto da China, um grupo de homens sem muita instrução transformou a China,
que passou de grande importadora para até exportadora de alimentos em alguns
casos.
Xiaogang é uma impressionante testemunha de que civilização
e propriedade privada são inseparáveis. O direito de propriedade, onde um agricultor
pode controlar sua vida e o seu campo sem a interferência do Estado, é a
instituição mais fundamental em qualquer economia e sociedade. É, sem dúvida,
um dos maiores saltos de renda da história da humanidade.
Na entrada da cidade você encontra um slogan: "A origem
da ascensão econômica de nossa nação". Mas a verdade é que é muito mais do
que isso. Esse acordo de Xiogang é um dos mais importante programas de combate
à pobreza do mundo.
É um daqueles raríssimos documentos que mudaram o mundo.
EX-MINISTRO DA AGRICULTURA E REFORMA AGRÁRIA O direito de
propriedade é a instituição mais fundamental na economia e na sociedade
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