Décio Oddone: A crise energética atual vem sendo construída há tempos
Antes do advento do shale, os ciclos de preço de petróleo eram longos, estimulando a indústria a buscar projetos de exploração em áreas de fronteira, de longo prazo de maturação. A produção no shale enterrou a teoria do peak oil, que indicava que o produto ia ficar cada vez mais escasso, com preços mais altos. Possibilitou aumentos rápidos na produção. Sem necessidade de exploração, reduziu a duração dos ciclos e aumentou a volatilidade das cotações.
Quando o preço despencou em 2014, as companhias cortaram investimentos, particularmente em bacias de fronteira. A questão climática acendeu os debates sobre o futuro da demanda. Pressões governamentais e sociais levaram empresas e instituições a reduzirem investimentos e financiamentos para a indústria.
Surgiu, então, a pandemia, a destruição da demanda e uma redução maior ainda dos aportes em petróleo e gás, pois ganhou força a crença que o consumo de hidrocarbonetos deveria cair, fazendo com que a transição fosse rápida.
No entanto, a realidade não se comportou como imaginavam muitos formuladores de políticas e formadores de opinião. Justamente quando a demanda começou a voltar, uma combinação de diminuição de oferta de renováveis, por mudança no padrão de ventos no Mar do Norte, com decisões políticas, erros de planejamento e redução de investimentos levou a um aumento no preço da energia na Europa.
O carvão e o gás passaram a ser mais demandados para gerar eletricidade, impactando o petróleo. A demanda começou a voltar com o fim da fase aguda da pandemia. Os preços explodiram, a ponto de surgir na Europa a expressão "heat or eat" (aquecer ou comer) para exemplificar a dificuldade das famílias em pagar a conta de energia. A produção industrial foi afetada.
Para piorar, houve a invasão da Ucrânia e as sanções à Rússia. Além do preço do carvão, gás e petróleo, o dos derivados, especialmente do diesel, também subiu muito. A falta de diesel começou a se delinear quando o preço do gás natural subiu na Europa no inverno passado, forçando as refinarias a baixarem o seu uso para gerar o hidrogênio utilizado na redução do teor de enxofre. Daí em diante, com a retomada pós-pandemia e a guerra, a situação foi se agravando. A ponto de se transferir para o outro lado do Atlântico.
A Rússia responde por cerca de um quarto das exportações globais de diesel. Além disso, refinarias localizadas no leste europeu processam petróleo russo e exportam diesel. Sem falar nos subprodutos importados por refinarias da Europa ocidental para produzir o insumo. Por isso, as medidas tomadas após o início da guerra tiveram um impacto forte no mercado. O preço do diesel, do querosene de aviação, um produto similar, e da gasolina bateram recorde nos EUA, subindo bem mais que o petróleo em função do aumento das margens de refino causado pelo fechamento de refinarias nos EUA e na Europa.
Ainda assim, a situação não reflete o que pode ocorrer se as sanções contra o petróleo russo forem efetivamente implementadas e a China levantar os lockdowns adotados para prevenir surtos de covid-19. Pode haver um movimento relevante no mercado, da ordem de uns 3 a 5 milhões de barris por dia, entre redução da oferta russa e volta da demanda chinesa, indicando que os próximos meses serão de volatilidade no mercado.
Em função disso, pode haver um aumento ainda maior dos custos da energia. E como a Rússia e a Ucrânia são importantes exportadores de milho, trigo e fertilizantes, também pode haver subida no preço dos alimentos. Isso tudo pode levar a mais inflação, insegurança energética e alimentar, aumento da desigualdade e insatisfação popular. O mundo tem tempos difíceis pela frente.
A visão eurocêntrica de uma transição energética rápida e com redução do uso de hidrocarbonetos ficou para trás. Trazia um equívoco conceitual. Desde o início da revolução industrial, quando a biomassa deixou de ser a principal origem da energia, nunca uma fonte foi substituída por outra. O carvão, o petróleo, o gás, a energia nuclear e as renováveis se desenvolveram ampliando a oferta, tanto que hoje, em termos absolutos, a biomassa é mais consumida que antes da revolução industrial. A oferta de energia abundante e acessível que permitiu a criação do mundo moderno e contemporâneo precisa continuar, ou o mundo continuará convivendo com mais de um bilhão de pessoas sem acesso à eletricidade.
Agora, além da necessidade de maior inclusão energética nos países menos desenvolvidos, ganhou força a preocupação com a segurança energética na Europa. Assim, líderes políticos têm o desafio de criar as condições para uma transição menos custosa, mais realista e com aumento da oferta, garantindo a segurança e a inclusão energéticas.
O Brasil tem enormes oportunidades nesse novo mundo, pois conta com condições para produzir mais energias renováveis, petróleo, gás, proteínas e commodities minerais e agrícolas. Mas precisa abandonar ideias ultrapassadas. A situação mudou nas últimas décadas. Nos anos 1970, o País importava petróleo e alimentos. Um aumento no preço das commodities tinha impacto duplo, na balança de pagamentos e na inflação. O Brasil empobrecia quando as commodities se valorizavam. Agora, não mais. Uma valorização das commodities é benéfica para a balança de pagamentos e para a arrecadação fiscal. Provoca mais inflação, é verdade, mas uma correta aplicação dos excedentes gerados pode mitigar o efeito nos brasileiros menos favorecidos.
Para transformar recursos em riquezas, o Brasil precisa desenvolver uma estratégia eficiente de desenvolvimento. Necessita investimentos. Para isso, as regras devem ser estáveis, claras e simples. Os preços devem seguir o mercado. A conjuntura que se formou pós-pandemia traz mais uma oportunidade. Ou o País abandona discussões decorrentes de pensamentos superados ou continuará cada vez mais distante do futuro que tanto almeja atingir, mas que, por culpa própria, nunca alcança.
*Décio Fabrício Oddone da Costa é CEO da Enauta S.A. Escreve mensalmente para o Broadcast Energia. Este artigo representa exclusivamente a visão do autor.
Broadcast Energia
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