Décio Oddone: Para ser potência em renováveis, o Brasil precisa de pragmatismo, não de euforia
Nelson Rodrigues, dentre seus vários talentos, tinha o dom de ser um grande frasista. Após a seleção brasileira ser derrotada na Copa do Mundo de 1950, em pleno Maracanã, criou a expressão "complexo de vira-lata", que descrevia uma potencial "inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo". Esse trauma só viria a ser superado com o otimismo dos "50 anos em cinco" do governo Kubitscheck, com a primeira vitória do Brasil num mundial, em 1958, e com a inauguração de Brasília.
Muita coisa mudou desde então. O País ganhou três Copas em 12 anos e levou para casa a cobiçada Taça Jules Rimet, depois roubada, derretida e perdida para sempre (um exemplo de como uma grande conquista pode produzir, também, uma frustração). Os governos militares lançaram campanhas promovendo a grandeza do País. Entramos em uma fase de ufanismo. O PIB cresceu quase o dobro da média mundial entre o maracanazo, como ficou conhecida a vitória dos uruguaios, e 1980, quando começou a década perdida na economia. O retorno à democracia e a aprovação da nova Constituição, a chamada constituição cidadã, no entanto, permitiram que o otimismo com os destinos do País seguisse prevalecendo. A partir do Plano Real e, particularmente, do início do século XXI, com o boom das commodities, entramos em nova espiral positiva. A descoberta do pré-sal foi colocada como um passaporte para o futuro.
Em resumo, se Nelson Rodrigues estava certo, em poucas décadas saímos da depressão para a euforia, deixando de lado o "complexo de vira-lata" para desenvolver uma espécie de mania de grandeza, que transformou o País numa grande Itu, a cidade paulista que passou a ser conhecida como a "cidade dos exageros", em função de um programa de TV popular nos anos 1960 que trazia histórias sobre coisas existentes no município que eram apresentadas maiores do que eram na realidade.
Recentemente, o fato de termos tido mais uma década perdida, a última, vem abalando as crenças na capacidade de crescimento do País. No setor de energia, no entanto, continuamos cultivando a ideia de que estamos fadados ao sucesso, independente das regras que estabeleçamos e das condições oferecidas aos investidores. Ao acreditar nisso, seguimos nos comportando com um otimismo exacerbado. O Brasil apresenta inúmeras oportunidades, se tornou um grande exportador de petróleo, tem uma matriz energética mais limpa que a maioria dos países e pode se transformar em uma potência das energias renováveis. Mas não vai chegar lá sem planejamento, investimentos e muito esforço. A percepção de que temos boas alternativas de negócio não deixa de ser verdade por um lado, mas mascara a realidade, repleta de desafios, como a tributação elevada, complexa e regressiva, e os longos processos de licenciamento, por outro.
Os leilões de áreas para exploração de petróleo conduzidos a partir de 2017 arrecadaram dezenas de bilhões de reais em bônus de assinatura, mas os resultados frustraram. Ao que se sabe, vários poços perfurados no pré-sal desde 2018 não tiveram sucesso. A tese da província petrolífera sem risco se revelou um equívoco.
No entanto, a produção de petróleo segue crescendo, em campos descobertos tempos atrás e que, com a revisão das regras conduzida a partir de 2016, estão podendo ser desenvolvidos. Talvez por essa razão, muitos continuem agindo como se o pré-sal não apresente riscos e os leilões com bônus bilionários fossem continuar para sempre. O processo de reabertura do setor e atração de capitais para realizar os investimentos que a Petrobras sozinha não podia fazer foi questionado. No entanto, se a estatal tivesse perfurado, como previsto pela lei que estabeleceu os contratos de partilha e a operação única, todos os poços sem petróleo, os prejuízos para a empresa, e seus acionistas, especialmente a União, teriam sido grandes.
O fim da operação única e a realização dos leilões permitiram que o Estado arrecadasse montantes bilionários a título de bônus de assinatura por blocos em que não havia petróleo. Evitaram, também, que a Petrobras assumisse todos os custos das explorações malsucedidas. A prática de preços desalinhados dos internacionais já foi tentada várias vezes, sem sucesso. A concentração do refino e da infraestrutura de gás natural em uma só empresa resultou em necessidade de importações.
Algo semelhante ocorre no setor elétrico. As intervenções produziram aumento nas contas de energia, enquanto os leilões atraíram capitais que permitiram a expansão acelerada da geração renovável e da transmissão. Nada disso, todavia, parece estar incorporado em algumas das propostas para o setor apresentadas neste período eleitoral, que não são realistas e alimentam ilusões, como a ideia de que, se alcançarmos a autossuficiência na produção de combustíveis, e até antes disso, poderemos nos desconectar dos preços externos e viver em uma realidade isolada do resto do mundo.
Agora, quando a transição energética está acelerando, abundam opiniões indicando que o Brasil será uma potência da energia renovável. Poderá ser, mas não será fácil. É preciso considerar que não temos reservas dos minerais necessários para a eletrificação, ou acesso a eles, nem a tecnologia utilizada nas baterias, nos painéis solares ou nos equipamentos para geração eólica offshore. Que ainda não planejamos adequadamente como integrar a geração de energia com a transmissão e a disponibilização de pontos de recarga de veículos elétricos, nem como fazer uma transição efetiva dos biocombustíveis para o transporte individual e de massas baseado na eletricidade. Que a produção de hidrogênio está em estágio embrionário no País. Assim, ao nos colocarmos prematuramente como uma potência da energia renovável, praticamos uma espécie de greenwishing, expressão que ouvi pela primeira vez recentemente, usada para retratar o desejo de ser verde, uma variação da mais conhecida greenwashing, que se refere a uma falsa aparência de sustentabilidade.
Se queremos efetivamente nos beneficiar das condições que a natureza nos proporcionou e desenvolver uma matriz energética ainda mais sustentável, temos que admitir que não há alternativa fácil para transformar potencial em riqueza. Precisamos reconhecer que o caminho passa por abandonar o ufanismo e as receitas rápidas, fáceis e erradas, já tentadas infrutiferamente no passado, por admitir que a repetição à exaustão não vai transformar uma prática fracassada em solução, por respeitar as regras estabelecidas e por buscar de forma contínua e permanente, pragmaticamente, melhorias contínuas no ambiente de negócios. Dá trabalho, mas é a única forma de sermos bem-sucedidos na atração dos investimentos e na obtenção das tecnologias e recursos que necessitamos para alcançar a posição de potência da energia renovável.
Encerro esta coluna recordando Gerson Fernandes, uma referência para seus colegas da Petrobras, que nos deixou há alguns dias. Gerson foi o maior otimista que conheci. Mas era um otimista pragmático que, ao ser ao mesmo tempo positivo e realista, teve êxito em tudo que fez. Como na vida do Gerson, um otimismo pragmático é necessário para o sucesso. É a postura que precisamos adotar no Brasil.
*Décio Fabrício Oddone da Costa é CEO da Enauta S.A. Escreve mensalmente para o Broadcast Energia. Este artigo representa exclusivamente a visão do autor.
Broadcast Energia
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