O presidente chinês, Xi Jinping, deseja que Pequim ocupe o
vácuo geopolítico deixado pelos EUA. Seus investimentos em diplomacia,
armamentos e inteligência artificial são prova disso.
MACARENA VIDAL LIY
Pequim 3 MAR 2018 - 20:10 BRT
Ilustração de Artur Galocha com foto de Getty.
Xi no poder e as contradições da China que vive o auge dos
protestos sociais
Países emergentes ascendem de novo
China propõe eliminar limite de dois mandatos consecutivos
para que Xi Jinping se prolongue no poder
“Esconder a força e aguardar o momento.” Deng Xiaoping, o
grande protagonista da abertura econômica chinesa, recomendava manter a China
em segundo plano no cenário global, enquanto o país lutava para sair da pobreza
e deixar para trás o marasmo de 10 anos de Revolução Cultural. Mas essa etapa
ficou no passado. Na “nova era” proclamada pelo presidente Xi Jinping, o
gigante asiático está decidido a ocupar o papel de protagonista da arena
global, que, aos seus olhos, a história lhe deve. Através de Xi, o líder mais
poderoso do país em décadas e que continuará no poder além dos 10 anos
inicialmente previstos, a nação quer moldar a ordem mundial para se consolidar
como referente e criar oportunidades estratégicas para si e suas empresas, além
de legitimar seu sistema de governo. E já não hesita em divulgar esses planos.
“Nunca o mundo teve tanto interesse na China, nem precisou
tanto dela”, declarava solenemente no mês passado o Jornal do Povo, o mais
oficial das publicações oficiais de Pequim. E o atual momento – em que os
Estados Unidos presididos por Donald Trump abrem mão de seu papel de líder
global, a Europa está presa em suas próprias divisões e o mundo ainda arrasta
as consequências da crise financeira de 2008 – apresenta uma “oportunidade
histórica” que, segundo o comentário, “abre-nos um enorme espaço estratégico
para manter a paz e o desenvolvimento e ganhar vantagem”. A assinatura como
“Manifesto” indicava que o texto representava a opinião dos mais altos
dirigentes do Partido.
Essa ambição não é nova: a catástrofe que significou o
Grande Salto Adiante (1958-1962) foi provocada, no fim das contas, pela vontade
de Mão Tsé-Tung de transformar a China numa potência industrial em tempo
recorde. A novidade, de fato, é que isso seja agora proclamado – e cada vez
mais alto. Em seu discurso no XIX Congresso Nacional do Partido Comunista, em
outubro, quando renovou seu mandato por outros cinco anos, Xi anunciou a meta
de transformar o país “num líder global em termos de fortaleza nacional e a
influência internacional” até 2050. A data não é casual: até lá, a China já
terá esgotado seu dividendo demográfico (hoje a estrutura etária de sua mão de
obra, ainda relativamente jovem, é benéfica para o crescimento econômico do
país).
Aos olhos de Pequim, a China nunca teve esse objetivo tão ao
seu alcance. A diferença não é pautada apenas pelas circunstâncias geopolíticas
ou por seu auge econômico, mas também por sua situação interna. Nunca, desde os
tempos de Mao, um líder chinês havia contado com tanto poder, nem tinha se
sentido tão seguro no cargo.
Xi não deixa de acumular postos e títulos, oficiais e
extraoficiais. Secretário-geral do Partido, presidente da Comissão Militar
Central, chefe de Estado, “núcleo” do Partido e agora lingxiu, o líder, um
tratamento que só havia sido concedido a Mão e ao seu sucessor imediato, Hua
Guofeng. Universidades do país inteiro abrem centros de estudo dedicados ao seu
pensamento; as ruas de qualquer cidade estão cheias de cartazes pedindo que a
população aplique suas ideias. De uma forma marcante, não vista em décadas, a
lealdade ao Partido, e em consequência a Xi, é a condição essencial para se ter
sucesso em qualquer atividade que tenha a ver com o onipotente Estado.
Xi se apresentou como o grande defensor da luta contra as
mudanças climáticas, a globalização e os tratados de livre comércio
A consolidação do poder de Xi vai ser coroada na sessão
anual da Assembleia Nacional Popular, o Legislativo chinês, que será inaugurada
na próxima semana no Grande Palácio do Povo de Pequim. Os deputados aprovarão,
entre outras coisas, a eliminação do limite temporário de dois mandatos que a
Constituição impõe ao presidente, abrindo caminho para que o mandatário
continue à frente do país por tempo indefinido.
A China multiplicou sua expansão internacional já durante o
primeiro mandato de Xi. Seu Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura
completará três anos concedendo empréstimos equivalentes a mais de 13,4 bilhões
de reais. Sua nova Rota da Seda – um plano para construir uma rede de infraestrutura
ao redor do mundo – acaba de incorporar oficialmente a América Latina, mira o
Ártico e se dispõe e realizar sua segunda reunião internacional em 2019. Seus
investimentos em diplomacia têm sido vastos. Em 2017, o país destinou a essa
área o equivalente a 25,5 bilhões de reais, um aumento de 60% em relação a
2013. Já os EUA propuseram cortar 30% das despesas com o serviço exterior.
Enquanto Washington abandona seus compromissos
internacionais, a China está disposta a preencher esse vazio. Xi Jinping se
apresentou como o grande defensor da globalização, da luta contra a mudança
climática, dos tratados de comércio internacionais. Pequim já mantém acordos de
livre comércio com 21 países – um a mais que Washington – e, segundo suas
autoridades, negocia ou planeja incluir outros 10.
Os investimentos do Governo e das empresas da China e no
exterior são um dos principais pilares dessa estratégia. Na América Latina, o
país já concedeu mais créditos que o Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID). Ano passado, investiu o equivalente a 390 bilhões de reais em 6.236
empresas de 174 países, segundo seu Ministério do Comércio. Como parte do plano
de se tornar um país líder em tecnologia e fazer com que esse setor seja uma
das principais fontes de seu PIB, a China comprou empresas fundamentais em
áreas estratégicas, como a líder alemã em robótica Kuka e a fabricante de chips
britânica Imagination. Já é um referente em inteligência artificial.
Mas sua presença no exterior não se limita ao terreno
diplomático e comercial. Ser uma potência global requer não apenas ter acesso
aos recursos e conexões com o resto do mundo, mas também defendê-los e se
defender. E a China, com o equivalente a 490 bilhões de reais, é o segundo país
com maior gasto militar, atrás dos EUA, e moderniza rapidamente seu Exército.
Já conta com sua primeira base militar no exterior, em Djibuti, e, segundo o
Afeganistão, estuda construir uma segunda base num canto remoto desse país.
Mas se a China hoje inspira mais simpatia que os EUA em
diversos países – incluindo aliados tradicionais de Washington, como México e
Holanda, segundo informou o Pew Research Center em 2017 –, seu auge também gera
desconfiança. O Eurasia Group descreveu a influência chinesa em meio a um vazio
de liderança global como o primeiro risco geopolítico para este ano. “[A China]
está fixando padrões internacionais com a menor resistência já vista”, afirma a
consultoria. “O único valor político que a China exporta é o princípio de não
ingerência nos assuntos internos de outros países. Isso é atrativo para os
Governos, acostumados às exigências ocidentais de reformas políticas e
econômicas em troca de ajuda financeira.” Menção especial, entre outras coisas,
merece o investimento chinês em inteligência artificial. “[Esse investimento]
procede do Estado, que se alinha com as instituições e companhias mais
poderosas do país e trabalha para garantir que a população se comporte como o
Estado deseja. É uma força estabilizadora para o Governo autoritário e
capitalista do Estado chinês. Outros Governos acharão esse modelo sedutor.”
Xi Jinping, em 24 de
outubro, no XIX Congresso do Partido Comunista.
Outras vozes também demonstram alarme. O primeiro-ministro
australiano, Malcom Turnbull, denunciou em dezembro a influência da China nos
assuntos políticos de seu país, mediante lobbies e doações, e apresentou um
projeto de lei que busca frear isso. O diretor do FBI, a polícia federal dos
EUA, Christopher Wray, também advertiu que Pequim pode ter infiltrado agentes
até mesmo nas universidades. Um relatório do think tank alemão MERICS e do
Global Public Policy Institute alerta para a crescente penetração da influência
política da China na Europa, especialmente nos países do Leste. E um grupo de
acadêmicos conseguiu, graças aos protestos do ano passado, que a editora
Cambridge University Press restabelecesse artigos censurados por não
coincidirem com a visão do governo chinês em assuntos como Tiananmen e Tibete.
A crescente assertividade de Pequim pode beirar a arrogância
ou o desdém pelas normas internacionais. No mar do Sul da China, onde suas
reivindicações de soberania enfrentam as de outras cinco nações, o país tem
construído ilhas artificiais em áreas em disputa, apesar dos protestos dos
Estados vizinhos e dos EUA. Recentemente, a imprensa recriminou a Suécia por
suas pressões pela libertação de Gui Minhai, o livreiro sueco detido no mês
passado quando viajava a Pequim escoltado por dois diplomatas.
Além dos alarmes, começam a soar também – de modo ainda
muito incipiente – propostas para contra-atacar essa pujança ou os aspectos
menos benevolentes dela. O presidente francês, Emmanuel Macron, pediu a unidade
dos 27 parceiros da União Europeia para não perderem terreno para a China. A
Casa Branca começou a impor tarifas a alguns produtos para frear o que
considera concorrência desleal da China no intercâmbio comercial. Japão, Índia,
Austrália e EUA estudam apresentar um plano internacional alternativo ao da
Rota da Seda.
Claro que nem sequer o todo-poderoso Xi pode considerar tudo
como garantido, e a China da nova era padece de fraquezas importantes. No
momento, o apoio popular ao presidente e sua gestão parece sólido. Mas
mantê-lo, em uma sociedade de fortes desigualdades sociais, pode ser uma tarefa
complicada. As jovens classes médias, nascidas e criadas depois da Revolução
Cultural e de Mao, não conheceram o sofrimento de seus progenitores e demandam
um bem-estar econômico que dão como certo, assim como padrões de vida
semelhantes aos do Ocidente.
Isto inclui a poluição, um dos grandes males da China.
Depois de medidas como um plano de urgência para o inverno, padrões de emissões
para veículos e fechamento de fábricas com elevados níveis de poluição, este
ano a qualidade do ar em Pequim melhorou notavelmente. Mas organizações como o
Greenpeace enfatizam que essa melhora se deu, em parte, ao custo de transferir
a poluição para regiões mais pobres e menos visíveis.
Garantir padrões de vida cada vez melhores – a China se
comprometeu a acabar até 2020 com a pobreza rural, que em 2015 afetava 55
milhões de pessoas – obriga também a uma reforma econômica. Ao chegar ao poder,
há cinco anos, Xi prometeu deixar que o mercado seguisse seu ritmo. É uma
aspiração que se mostrou complicada. Em 2015, a revista Caixin indicava que,
entre as 113 áreas suscetíveis de reforma, somente 23 avançavam a bom ritmo, os
progressos eram lentos em 84 e nada se conseguira em 16.
O que está por fazer é o mais difícil: as empresas de
propriedade estatal, gigantescas e ineficientes, mas básicas no sistema
socioeconômico chinês atual; o excesso de crédito e de capacidade de produção;
a completa liberalização do yuan. Reformas necessárias, mas que vão requerer
enorme habilidade para que não prejudiquem o índice de desemprego ou a
estabilidade social, a grande prioridade do Governo.
Em prol dessa estabilidade social, a China de Xi Jinping pôs
em prática ambiciosos programas de controle e vigilância dos cidadãos, ajudada
pela inteligência artificial. O fluxo das informações e as redes sociais são
ferreamente supervisionados. Todas as empresas, incluindo as multinacionais
estrangeiras, precisam contar com uma unidade do Partido Comunista em sua
estrutura. Os meios de comunicação estatais – os principais – receberam instruções da boca do próprio
presidente: “Vocês devem se nomear Partido”.
A tendência é a de redução da tolerância a qualquer
manifestação cultural que não reforce o papel dominante do Partido Comunista
nem se ponha a serviço de seus objetivos. E isso inclui o tratamento às
minorias e a prática da religião, sobre a qual recentemente foram impostos
novos regulamentos. As pessoas incômodas – sejam dissidentes políticos,
advogados de direitos humanos ou ativistas de causas sociais– são presas e, às
vezes, condenadas a longas penas de prisão. No ano passado, o Prêmio Nobel da
Paz Liu Xiaobo morreu de câncer de fígado enquanto cumpria uma pena de 11 anos.
Mas o tempo corre, para Xi, para Pequim e para implementar
as reformas. Um dos grandes obstáculos que o país enfrenta é precisamente seu
rápido envelhecimento. A desastrosa política do filho único faz com que o
dividendo demográfico esteja se esgotando. Apesar do fim da proibição em 2015,
a natalidade não dá mostras de aumentar. Em 2020, 42 milhões de idosos não
poderão cuidar de si mesmos e 29 milhões superarão os 80 anos. Um grande
desafio para sistemas de previdência social e de saúde ainda muito frágeis.
Para 2050, quando o país espera ter se tornado uma grande
potência, contará com 400 milhões de aposentados. Por essa época, terá
completado seus ambiciosos planos de reforma militar e econômica; a prioridade
será atender a esse grande segmento de população envelhecida. O prazo de
“oportunidade estratégica” terá expirado.
A nova era de Xi tem, portanto, pressa. Hoje pode mobilizar
a população em busca do sonho chinês; amanhã poderá ser tarde. Dentro de alguns
anos, esta nova era pode ter ficado velha demais.
@economia @China
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