Persio Arida Economista, foi presidente do BNDES e do Banco Central no governo de Fernando Henrique
A inteligência de Otavio Frias Filho, perpetuamente insatisfeita, fazia com que nossas conversas transcorressem como prefácios de um livro que nunca foi escrito. Foi uma amizade reservada, desinteressada e bissexta.
Minha amizade com o Otavio começou em 1998 quando da última viagem do Trem de Prata. Dotado de cabines simples, dupla e beliches, jantar a bordo, o trem sairia de noite da estação da Barra Funda e chegaria cedinho ao Rio de Janeiro. Eu fui com as minhas filhas porque era a última oportunidade de viajar de trem-leito, seria uma farra para as crianças. Ele estava lá com a Giulia e amigos, movido certamente pelo mesmo espírito de aventura, mas também por sua ojeriza a aviões.
Eu já o conhecia dos almoços da Folha promovidos por seu pai. O primeiro deles, se não me falha a memória, foi em 1986. Mas naqueles almoços ele pouco falava. O Octavio pai era uma figura solar. O assunto era sempre economia e política; quando muito, no cafezinho, falávamos de negócios. O Octavio pai criava frangos e era obcecado por conseguir ganhos de produtividade.
Foi no Trem de Prata que conversamos diretamente pela primeira vez. A empatia foi imediata. Acabamos nos “Pensamentos” de Pascal e falando sobre o ateísmo. Ele era sério, compenetrado, me parecia quase soturno, mas nos identificamos no gosto pelo nonsense e pe-las situações bizarras.
A começar pela própria viagem o trem fazia longas paradas no meio do nada, nenhuma informação era dada e por várias vezes pensei que teríamos que descer no meio do caminho. A saída foi pontual, mas só conseguimos chegar ao Rio de Janeiro 14 horas depois.
Não era à toa que o Trem de Prata encerrava ali suas atividades: a nossa malha ferroviária estava se desintegrando. Anos depois rimos juntos contrastando aquela viagem com o lunático Trem Bala da Dilma. Do Trem de Prata em diante firmamos uma amizade diferente dos padrões usuais. A inteligência dele, perpetuamente insatisfeita, fazia com que nossas conversas transcorressem como prefácios de um livro que nunca foi escrito.
Foi uma amizade reservada, desinteressada e bissexta. Ele não me via como fonte e eu nunca pedi que ele publicasse ou deixasse de publicar algo. Vivíamos em mundos diferentes, as conversas eram ocasionais, mas o laço de confiança permaneceu forte ao longo dos anos. Fiquei surpreso quando li o “Queda Livre”. A dedicatória do exemplar que ele me enviara não deixava entrever do que se tratava.
Sabia do seu interesse por situações extremas, é claro, mas aquilo me parecia apenas uma excentricidade, não algo a ser vivido. Mas passada a surpresa inicial entendi: a experiência radical, mais do que um exercício de liberdade, era para ele uma forma de autoconhecimento.
Enviei-lhe o pequeno texto que acompanhava um vídeo do Bill Viola chamado “Chott el-Djerid (A Portrait in Light and Heat)”: I want to go to a place that seems like it’s at the end of the world. A vantage point from which one can stand and peer out into the void…You finally realize that the void is yourself. It is like a huge mirror for your mind. Out here, the unbound mind can run free. Space becomes a projection screen. Inside becomes outside. You can see what you are.
Mais tarde ele me respondeu com apenas duas palavras: exatamente isso.
Nosso penúltimo almoço foi por iniciativa dele. Atarefado com o Banco que ficava na Faria Lima sugeri almoçarmos na Trattoria para termos mais tempo.
Pela primeira vez ele me contou de suas finanças pessoais. Sim, ele havia casado tarde e tinha crianças pequenas. Mas a preocupação com o futuro me pareceu estranha numa pessoa cheia de vida e com tantos projetos a desenvolver.
Minha amizade com o Otavio começou em 1998 quando da última viagem do Trem de Prata. Dotado de cabines simples, dupla e beliches, jantar a bordo, o trem sairia de noite da estação da Barra Funda e chegaria cedinho ao Rio de Janeiro. Eu fui com as minhas filhas porque era a última oportunidade de viajar de trem-leito, seria uma farra para as crianças. Ele estava lá com a Giulia e amigos, movido certamente pelo mesmo espírito de aventura, mas também por sua ojeriza a aviões.
Eu já o conhecia dos almoços da Folha promovidos por seu pai. O primeiro deles, se não me falha a memória, foi em 1986. Mas naqueles almoços ele pouco falava. O Octavio pai era uma figura solar. O assunto era sempre economia e política; quando muito, no cafezinho, falávamos de negócios. O Octavio pai criava frangos e era obcecado por conseguir ganhos de produtividade.
Foi no Trem de Prata que conversamos diretamente pela primeira vez. A empatia foi imediata. Acabamos nos “Pensamentos” de Pascal e falando sobre o ateísmo. Ele era sério, compenetrado, me parecia quase soturno, mas nos identificamos no gosto pelo nonsense e pe-las situações bizarras.
A começar pela própria viagem o trem fazia longas paradas no meio do nada, nenhuma informação era dada e por várias vezes pensei que teríamos que descer no meio do caminho. A saída foi pontual, mas só conseguimos chegar ao Rio de Janeiro 14 horas depois.
Não era à toa que o Trem de Prata encerrava ali suas atividades: a nossa malha ferroviária estava se desintegrando. Anos depois rimos juntos contrastando aquela viagem com o lunático Trem Bala da Dilma. Do Trem de Prata em diante firmamos uma amizade diferente dos padrões usuais. A inteligência dele, perpetuamente insatisfeita, fazia com que nossas conversas transcorressem como prefácios de um livro que nunca foi escrito.
Foi uma amizade reservada, desinteressada e bissexta. Ele não me via como fonte e eu nunca pedi que ele publicasse ou deixasse de publicar algo. Vivíamos em mundos diferentes, as conversas eram ocasionais, mas o laço de confiança permaneceu forte ao longo dos anos. Fiquei surpreso quando li o “Queda Livre”. A dedicatória do exemplar que ele me enviara não deixava entrever do que se tratava.
Sabia do seu interesse por situações extremas, é claro, mas aquilo me parecia apenas uma excentricidade, não algo a ser vivido. Mas passada a surpresa inicial entendi: a experiência radical, mais do que um exercício de liberdade, era para ele uma forma de autoconhecimento.
Enviei-lhe o pequeno texto que acompanhava um vídeo do Bill Viola chamado “Chott el-Djerid (A Portrait in Light and Heat)”: I want to go to a place that seems like it’s at the end of the world. A vantage point from which one can stand and peer out into the void…You finally realize that the void is yourself. It is like a huge mirror for your mind. Out here, the unbound mind can run free. Space becomes a projection screen. Inside becomes outside. You can see what you are.
Mais tarde ele me respondeu com apenas duas palavras: exatamente isso.
Nosso penúltimo almoço foi por iniciativa dele. Atarefado com o Banco que ficava na Faria Lima sugeri almoçarmos na Trattoria para termos mais tempo.
Pela primeira vez ele me contou de suas finanças pessoais. Sim, ele havia casado tarde e tinha crianças pequenas. Mas a preocupação com o futuro me pareceu estranha numa pessoa cheia de vida e com tantos projetos a desenvolver.
1 1 Quero ir a um lugar que pareça ofimdo mundo. Um mirante onde se possa parar e fitar o vazio... Ao final, você percebe que o vazio é você mesmo. É como um imenso espelho para sua mente. Lá, a mente, sem amarras, pode correr livremente. O espaço se torna uma tela de projeção. O interior se torna exterior. Você consegue ver o que você é
Tradução
O último almoço foi na Folha. O almoço teve que ser remarcado algumas vezes porque ele queria estar presente e havia dias em que não passava bem.
A campanha presidencial estava no auge e a conversa girou em torno dela. Foi um almoço na tradição inaugurada por seu pai, centrado na economia e na política.
Ele foi embora antes do final porque tinha que pegar um avião para os Estados Unidos, na esperança de que um tratamento ainda em fase experimental o curasse.
Quando ele saiu da sala pensei por um instante em pedir licença aos demais participantes do almoço para sair também.
Meu impulso foi abraçá-lo e dizer carinhosamente que desejava de coração que ele ficasse bom logo. Mas acabei me inibindo pela presença dos demais e nossa despedida se resumiu a um quase protocolar boa sorte.
Saí daquele almoço arrependido pelo abraço que não aconteceu. Lembrei-me da celebração dos 90 anos da Folha. Quem sabe o tratamento seria um sucesso e eu o veria novamente na Sala São Paulo lendo o discurso dos 100 anos.
Mas, para tristeza dos que o acompanharam em sua bela trajetória de vida, o final foi outro. A Folha fará 100 anos e não será ele a discursar. Mas ele de alguma forma lá estará, vivo na memória de todos nós.
Amizade entre Persio Arida e Otavio Frias Filho começou em 1998, na última viagem do Trem de Prata, de São Paulo ao Rio de Janeiro
Linha do tempo
1921 Em 19 de fevereiro, é criado o jornal “Folha da Noite”, por Olival Costa e seu sócio, Pedro Cunha
1945 O controle acionário passa para as mãos de José Nabantino Ramos. O novo proprietário decide adotar a imparcialidade como princípio editorial
1957 Em 7 de junho, nasce Otavio Frias Filho, primeiro filho de Octavio Frias de Oliveira e Dagmar de Arruda Camargo
1962 Em 13 de agosto, Octavio Frias de Oliveira (1912-2007) e Carlos Caldeira Filho (1913-1993) assumem o controle acionário da Empresa Folha da Manhã
1974 Otavio Frias Filho participa da decisão de abrir as páginas do jornal a articulistas de oposição à ditadura; no ano seguinte, passa a escrever editoriais e assessorar o jornalista Cláudio Abramo, que dirigia a Redação. Em 1978, assume a função de secretário do recém-criado Conselho Editorial do jornal
1980 Otavio gradua-se no curso de direito da Universidade de São Paulo; posteriormente, cursa a pós-graduação em antropologia, no departamento de ciências sociais da mesma universidade
1983 Jornal lança a campanha pelas Diretas Já e inaugura a primeira Redação informatizada na América do Sul
1984 Em 24 de maio, Otavio assume o cargo de diretor de Redação. Implanta o Projeto Folha e torna público o projeto editorial do jornal e o “Manual da Redação”
1991 Otavio publica seu primeiro livro, “Tutankáton”. Ao todo é autor e coautor de 10 livros, entre ensaios sobre cultura, peças teatrais, reportagens ensaísticas e obras infantojuvenis
1991 Recebe o prêmio Maria Moors Cabot de jornalismo, da Universidade Columbia (EUA)
1994 Torna-se colunista da página 2 do jornal, onde escreve semanalmente até 1999
2016 Passa a escrever mensalmente uma coluna no caderno Ilustríssima
2018 É encenada no Teatro Oficina uma adaptação de seu texto “O Terceiro Sinal”. No dia 21 de agosto, morre Otavio Frias Filho
Tradução
O último almoço foi na Folha. O almoço teve que ser remarcado algumas vezes porque ele queria estar presente e havia dias em que não passava bem.
A campanha presidencial estava no auge e a conversa girou em torno dela. Foi um almoço na tradição inaugurada por seu pai, centrado na economia e na política.
Ele foi embora antes do final porque tinha que pegar um avião para os Estados Unidos, na esperança de que um tratamento ainda em fase experimental o curasse.
Quando ele saiu da sala pensei por um instante em pedir licença aos demais participantes do almoço para sair também.
Meu impulso foi abraçá-lo e dizer carinhosamente que desejava de coração que ele ficasse bom logo. Mas acabei me inibindo pela presença dos demais e nossa despedida se resumiu a um quase protocolar boa sorte.
Saí daquele almoço arrependido pelo abraço que não aconteceu. Lembrei-me da celebração dos 90 anos da Folha. Quem sabe o tratamento seria um sucesso e eu o veria novamente na Sala São Paulo lendo o discurso dos 100 anos.
Mas, para tristeza dos que o acompanharam em sua bela trajetória de vida, o final foi outro. A Folha fará 100 anos e não será ele a discursar. Mas ele de alguma forma lá estará, vivo na memória de todos nós.
Amizade entre Persio Arida e Otavio Frias Filho começou em 1998, na última viagem do Trem de Prata, de São Paulo ao Rio de Janeiro
Linha do tempo
1921 Em 19 de fevereiro, é criado o jornal “Folha da Noite”, por Olival Costa e seu sócio, Pedro Cunha
1945 O controle acionário passa para as mãos de José Nabantino Ramos. O novo proprietário decide adotar a imparcialidade como princípio editorial
1957 Em 7 de junho, nasce Otavio Frias Filho, primeiro filho de Octavio Frias de Oliveira e Dagmar de Arruda Camargo
1962 Em 13 de agosto, Octavio Frias de Oliveira (1912-2007) e Carlos Caldeira Filho (1913-1993) assumem o controle acionário da Empresa Folha da Manhã
1974 Otavio Frias Filho participa da decisão de abrir as páginas do jornal a articulistas de oposição à ditadura; no ano seguinte, passa a escrever editoriais e assessorar o jornalista Cláudio Abramo, que dirigia a Redação. Em 1978, assume a função de secretário do recém-criado Conselho Editorial do jornal
1980 Otavio gradua-se no curso de direito da Universidade de São Paulo; posteriormente, cursa a pós-graduação em antropologia, no departamento de ciências sociais da mesma universidade
1983 Jornal lança a campanha pelas Diretas Já e inaugura a primeira Redação informatizada na América do Sul
1984 Em 24 de maio, Otavio assume o cargo de diretor de Redação. Implanta o Projeto Folha e torna público o projeto editorial do jornal e o “Manual da Redação”
1991 Otavio publica seu primeiro livro, “Tutankáton”. Ao todo é autor e coautor de 10 livros, entre ensaios sobre cultura, peças teatrais, reportagens ensaísticas e obras infantojuvenis
1991 Recebe o prêmio Maria Moors Cabot de jornalismo, da Universidade Columbia (EUA)
1994 Torna-se colunista da página 2 do jornal, onde escreve semanalmente até 1999
2016 Passa a escrever mensalmente uma coluna no caderno Ilustríssima
2018 É encenada no Teatro Oficina uma adaptação de seu texto “O Terceiro Sinal”. No dia 21 de agosto, morre Otavio Frias Filho
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