Jamil Anderlini 10/08/2018
Nos anais dos erros crassos da inteligência ocidental, a falha em perceber a separação sino-soviética nas frígidas profundezas da Guerra Fria dá muito o que pensar. Apesar de um pequeno grupo de autoridades heréticas da CIA apontar para as crescentes evidências a partir do fim da década de 1950, sucessivos governos em Washington e outros países se recusaram a acreditar que os dois maiores membros do bloco comunista, na verdade, se odiavam mutuamente. Foi só depois que a China e a Rússia travaram uma guerra ao longo da fronteira entre a Sibéria e a Manchúria, em 1969, que os céticos finalmente aceitaram que o rompimento era real.
Atualmente o Ocidente corre o risco de cometer o erro contrário, ao desqualificar a aliança antiocidental, anti-EUA, que se forma no momento entre Moscou e Pequim. Em conferência em Cingapura em junho, o secretário de Defesa dos EUA, Jim Mattis, falou de uma "não convergência natural de interesses" entre a Rússia e a China, em sua convicção de que ambos os países têm mais em comum com os Estados Unidos do que entre si.
Essa ideia de que a Rússia e a China não podem ser amigas é tão equivocada e perigosa quanto o dogma da Guerra Fria que retratava o comunismo mundial como um monolito inabalável.
Apesar de muitos no Ocidente desprezarem ou ignorarem o estreitamento cada vez maior dos laços entre os dois países, os presidentes Vladimir Putin e Xi Jinping se empenharam impressionantemente em enaltecer um ao outro, numa embrionária intimidade.
De acordo com Putin, Xi é o único dirigente estrangeiro com o qual comemorou seu aniversário - com uma taça de vodca e um prato de salsicha. De sua parte, Xi qualificou recentemente o presidente russo de "seu melhor e mais íntimo amigo", ao presenteá-lo com a primeira medalha de amizade da China.
É fácil descartar tudo isso como dissimulação superficial, mas gestos como esses entre autocratas têm imensa importância em seus respectivos sistemas. Os dois dirigentes se reuniram pelo menos 26 vezes desde que Xi fez sua primeira viagem ao exterior como líder supremo a Moscou, em 2013.
É bem verdade que o ego da Rússia saiu arranhado pela óbvia reversão de papéis - de "irmão mais velho" da ex-União Soviética para o de "irmão mais novo" da Rússia hoje. Mas a China tem tomado o cuidado de preservar o orgulho de Moscou - ao falar dos dois países como iguais, massagear o ego de Putin e oferecer contratos lucrativos a muitos de seus confidentes e assessores.
Xi e Putin são autocratas que têm em comum o profundo medo de serem desbancados do poder por uma "revolução colorida" apoiada pelos EUA. O estreitamento de seu abraço tem tanto a ver com a antipatia para com os EUA como com seus crescentes interesses comuns
Embora muito desequilibradas - o tamanho da economia russa corresponde a cerca de 10% do da chinesa - as relações econômicas entre os dois países são decisivas para ambas as partes. A China é o maior importador mundial de petróleo bruto; a Rússia foi a maior fornecedora da China no ano passado, e Pequim emprestou dezenas de bilhões de dólares a Moscou para garantir abastecimento futuro de petróleo e gás.
E, o que é crucial do ponto de vista de Pequim, o petróleo importado da Rússia não precisa passar de navio por pontos de estrangulamento estratégicos, como o Estreito de Malaca ou o Golfo de Áden, que podem facilmente ser bloqueados pelos militares americanos.
Mas o que é ainda mais significativo do que seu envolvimento econômico são as relações militares entre os vizinhos. Em sua primeira viagem externa em seu novo cargo, em abril, o ministro da Defesa da China, Wei Fenghe, visitou Moscou com um recado muito direto: "O lado chinês veio para dar aos americanos uma demonstração dos estreitos laços entre as forças armadas da China e da Rússia", disse ele a seu colega. "Viemos para apoiá-lo".
Frise-se mais uma vez, isso não é apenas retórica amistosa. Até recentemente, os navios de guerra chineses não se distanciavam da costa do país há séculos, mas atualmente eles realizam exercícios conjuntos regulares com a Rússia desde o Mar do Japão até o Mediterrâneo. Por décadas a Rússia resistiu em vender seus equipamentos militares mais avançados à China, mas agora abandonou essa política. Em maio, Pequim mobilizou o último modelo de caças russos em uma demonstração de força frente à democrática e autogovernada Taiwan.
O fator unificador mais importante entre os dois é o ideológico. Xi e Putin são mandachuvas autocratas que têm em comum a aversão ao governo representativo e o profundo medo de serem desbancados do poder por uma "revolução colorida" apoiada pelos EUA. O estreitamento de seu abraço tem tanto a ver com a antipatia para com os EUA e a ordem mundial dominada pelos EUA como com seus crescentes interesses comuns. Isso apresenta uma oportunidade para Washington de dividi-los antes que sua aliança se torne inquebrantável.
A não aceitação da realidade da separação sino-soviética no começo da década de 1960 permitiu que a chamada "teoria do dominó" - a ideia de que o comunismo mundial tinha de ser enfrentado em todo lugar, para conter sua propagação - se tornasse ortodoxia em Washington. Se os EUA tivessem tentado uma reaproximação com a China dez anos antes do que efetivamente tentou, no governo Richard Nixon, talvez os horrores da Guerra do Vietnã e da Revolução Cultural chinesa poderiam ter sido evitados.
Graças à sua persistente ascensão e à sua evidente ambição de suplantar os EUA, a China é um desafio de longo prazo muito maior para os EUA do que a Rússia. Segundo relatos, ninguém menos do que Henry Kissinger - o arquiteto dessa reconciliação com a China em 1972 - teria aconselhado Donald Trump a seguir "estratégia contrária à de Nixon para a China" por meio da tentativa de fazer amizade com Moscou e de isolar Pequim.
Diante da atual investigação sobre um possível conluio com a Rússia, será quase impossível para o presidente dos EUA seguir essa estratégia com sucesso. Mas as instituições americanas, e quem quer que suceder Trump como presidente, tem de reconhecer a gravidade da ameaça representada pela nascente aliança sino-russa para os interesses dos EUA - e para a atual ordem mundial. (Tradução de Rachel Warszawski).
Atualmente o Ocidente corre o risco de cometer o erro contrário, ao desqualificar a aliança antiocidental, anti-EUA, que se forma no momento entre Moscou e Pequim. Em conferência em Cingapura em junho, o secretário de Defesa dos EUA, Jim Mattis, falou de uma "não convergência natural de interesses" entre a Rússia e a China, em sua convicção de que ambos os países têm mais em comum com os Estados Unidos do que entre si.
Essa ideia de que a Rússia e a China não podem ser amigas é tão equivocada e perigosa quanto o dogma da Guerra Fria que retratava o comunismo mundial como um monolito inabalável.
Apesar de muitos no Ocidente desprezarem ou ignorarem o estreitamento cada vez maior dos laços entre os dois países, os presidentes Vladimir Putin e Xi Jinping se empenharam impressionantemente em enaltecer um ao outro, numa embrionária intimidade.
De acordo com Putin, Xi é o único dirigente estrangeiro com o qual comemorou seu aniversário - com uma taça de vodca e um prato de salsicha. De sua parte, Xi qualificou recentemente o presidente russo de "seu melhor e mais íntimo amigo", ao presenteá-lo com a primeira medalha de amizade da China.
É fácil descartar tudo isso como dissimulação superficial, mas gestos como esses entre autocratas têm imensa importância em seus respectivos sistemas. Os dois dirigentes se reuniram pelo menos 26 vezes desde que Xi fez sua primeira viagem ao exterior como líder supremo a Moscou, em 2013.
É bem verdade que o ego da Rússia saiu arranhado pela óbvia reversão de papéis - de "irmão mais velho" da ex-União Soviética para o de "irmão mais novo" da Rússia hoje. Mas a China tem tomado o cuidado de preservar o orgulho de Moscou - ao falar dos dois países como iguais, massagear o ego de Putin e oferecer contratos lucrativos a muitos de seus confidentes e assessores.
Xi e Putin são autocratas que têm em comum o profundo medo de serem desbancados do poder por uma "revolução colorida" apoiada pelos EUA. O estreitamento de seu abraço tem tanto a ver com a antipatia para com os EUA como com seus crescentes interesses comuns
Embora muito desequilibradas - o tamanho da economia russa corresponde a cerca de 10% do da chinesa - as relações econômicas entre os dois países são decisivas para ambas as partes. A China é o maior importador mundial de petróleo bruto; a Rússia foi a maior fornecedora da China no ano passado, e Pequim emprestou dezenas de bilhões de dólares a Moscou para garantir abastecimento futuro de petróleo e gás.
E, o que é crucial do ponto de vista de Pequim, o petróleo importado da Rússia não precisa passar de navio por pontos de estrangulamento estratégicos, como o Estreito de Malaca ou o Golfo de Áden, que podem facilmente ser bloqueados pelos militares americanos.
Mas o que é ainda mais significativo do que seu envolvimento econômico são as relações militares entre os vizinhos. Em sua primeira viagem externa em seu novo cargo, em abril, o ministro da Defesa da China, Wei Fenghe, visitou Moscou com um recado muito direto: "O lado chinês veio para dar aos americanos uma demonstração dos estreitos laços entre as forças armadas da China e da Rússia", disse ele a seu colega. "Viemos para apoiá-lo".
Frise-se mais uma vez, isso não é apenas retórica amistosa. Até recentemente, os navios de guerra chineses não se distanciavam da costa do país há séculos, mas atualmente eles realizam exercícios conjuntos regulares com a Rússia desde o Mar do Japão até o Mediterrâneo. Por décadas a Rússia resistiu em vender seus equipamentos militares mais avançados à China, mas agora abandonou essa política. Em maio, Pequim mobilizou o último modelo de caças russos em uma demonstração de força frente à democrática e autogovernada Taiwan.
O fator unificador mais importante entre os dois é o ideológico. Xi e Putin são mandachuvas autocratas que têm em comum a aversão ao governo representativo e o profundo medo de serem desbancados do poder por uma "revolução colorida" apoiada pelos EUA. O estreitamento de seu abraço tem tanto a ver com a antipatia para com os EUA e a ordem mundial dominada pelos EUA como com seus crescentes interesses comuns. Isso apresenta uma oportunidade para Washington de dividi-los antes que sua aliança se torne inquebrantável.
A não aceitação da realidade da separação sino-soviética no começo da década de 1960 permitiu que a chamada "teoria do dominó" - a ideia de que o comunismo mundial tinha de ser enfrentado em todo lugar, para conter sua propagação - se tornasse ortodoxia em Washington. Se os EUA tivessem tentado uma reaproximação com a China dez anos antes do que efetivamente tentou, no governo Richard Nixon, talvez os horrores da Guerra do Vietnã e da Revolução Cultural chinesa poderiam ter sido evitados.
Graças à sua persistente ascensão e à sua evidente ambição de suplantar os EUA, a China é um desafio de longo prazo muito maior para os EUA do que a Rússia. Segundo relatos, ninguém menos do que Henry Kissinger - o arquiteto dessa reconciliação com a China em 1972 - teria aconselhado Donald Trump a seguir "estratégia contrária à de Nixon para a China" por meio da tentativa de fazer amizade com Moscou e de isolar Pequim.
Diante da atual investigação sobre um possível conluio com a Rússia, será quase impossível para o presidente dos EUA seguir essa estratégia com sucesso. Mas as instituições americanas, e quem quer que suceder Trump como presidente, tem de reconhecer a gravidade da ameaça representada pela nascente aliança sino-russa para os interesses dos EUA - e para a atual ordem mundial. (Tradução de Rachel Warszawski).
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