‘Nunca os seres humanos foram tão explorados quanto agora',
diz Eugênio Bucci
15.7.21
Enquanto navegamos pelas redes sociais, estamos trabalhando
- para os outros. E de graça, permitindo que nossas informações sejam reunidas,
catalogadas e transformadas em bases de dados. Não há mais um imaginário com o
qual as companhias dialogam para vender um produto. O capital passou a criar o
próprio imaginário em que estamos mergulhados.
É esse um dos pontos de partida para o novo livro de Eugênio
Bucci, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade
de São Paulo. A Superindústria do Imaginário: Como o Capital Transformou o
Olhar em Trabalho e se Apropriou de Tudo Que É Visível inaugura a Coleção
Ensaios da editora Autêntica. E traz reflexões e conceitos nos quais Bucci vem
trabalhando há mais de duas décadas.
Eugênio Bucci fala sobre os danos irreversíveis das ‘fake
news’
Eugênio Bucci fala sobre os danos irreversíveis das ‘fake
news’
“Nunca os seres humanos foram tão abusivamente explorados
como agora”, diz Bucci na entrevista a seguir, na qual fala sobre as ideias do
livro e o modo como essa nova configuração na relação com o capital influencia
diferentes campos, da arte à produção jornalística.
O livro traz reflexões já presentes em seu doutorado. Em que
medida o passar do tempo contribuiu com as ideias apresentadas? O que ainda não
havia que hoje se tornou presente e foi fundamental para o livro?
Mais do que reflexões, há conceitos nesse livro que eu
formulei há mais de 20 anos. O entendimento do que vem a ser o valor de gozo é
um deles. A expressão foi cunhada pelo psicanalista francês Jacques Lacan num
curso que ele deu em 1967, mas nunca foi desenvolvida por ele ou por seus
seguidores na forma de uma categoria comunicacional e econômica. E, no meu
doutorado, há 20 anos, eu proponho um modelo teórico para isso. Agora, no meu
novo livro, essa construção ficou mais aprofundada e mais fundamentada. Outros
conceitos cruciais, porém, eu só pude enxergar e elaborar mais tarde, como o de
superindústria do imaginário. Quanto ao que não existia na época, eu posso
lembrar aqui as plataformas sociais e esses conglomerados monopolistas globais,
como Facebook e Google. O advento desses gigantes da era digital só confirmou
os postulados da minha tese.
O senhor mostra como estamos expostos aos algoritmos em um
jogo desigual, pois sabemos pouco sobre eles. É possível igualar as chances
nesse jogo?
Por enquanto, acho difícil e improvável igualarmos esse
jogo, que se tornou uma relação assimétrica num grau absurdo. Os algoritmos
sabem tudo sobre a intimidade dos frequentadores da internet e esses
frequentadores nada sabem sobre os algoritmos. Perto disso, o 1984 de George
Orwell é uma fábula infantil. A exploração econômica que esses conglomerados
realizam é mais absurda ainda. Pensemos nas plataformas sociais. O modelo de
exploração chega às raias da desumanidade. Quem são os digitadores, os
fotógrafos, os editores, os locutores, os atores e os modelos de tudo o que
aparece nas plataformas? Ora, os “usuários”, como aprendemos a chamá-los. Um
Facebook da vida não precisa contratar ninguém para “postar conteúdos”, no
linguajar deles, pois os tais “usuários” fazem isso de graça. E como se
estivessem se divertindo, aproveitando as vantagens de um entretenimento que
lhes é dado de graça. Sejamos diretos: quem entra de graça aí não são as
funcionalidades das plataformas, mas o trabalho do tal “usuário”. Além do seu
trabalho e do seu olhar, que vale dinheiro, e muito, o pobre e inocente
“usuário” entrega todos os seus dados, sua biografia, seus sonhos mais pueris
para o algoritmo. Depois, no fim da linha, quem vai ser vendido é o próprio
usuário, com seus dados, seu olhar e o circuito secreto de seu desejo
inconsciente. Nunca os seres humanos foram tão abusivamente explorados como
agora.
Teremos de construir uma forma de resistência, mas ela está
muito distante. Ela só poderá vir da regulação democrática que seja capaz de,
em primeiro lugar, quebrar os monopólios e, em segundo lugar, impedir a
apropriação desleal, pelos algoritmos, dos dados e da configuração do nosso
desejo. O que essas empresas fazem é mercadejar com o que há de mais íntimo e
mais pessoal. Isso é intolerável se queremos viver numa sociedade civilizada. É
verdade que a tecnologia nos trouxe e nos traz coisas maravilhosas, mas a
tecnologia aprisionada pela ganância do capital rebaixa a dignidade humana a um
patamar selvagem, que não podemos aceitar. Uma rebelião digital é urgentemente
necessária.
Em um contexto no qual o sujeito tem sua própria vontade
trabalhando pelo capital, é possível ainda falar de individualidade?
Sim, a individualidade existe, assim como existem as
subjetividades de cada pessoa. Mas, não nos esqueçamos, há um processo
caprichoso e atroz de colonização dos nossos aparatos psíquicos individuais. Os
artifícios da exploração adotados pela superindústria são mais ou menos como um
vírus que se insinua por dentro do corpo e se aloja no interior das células de
sua vítima para subjugar o organismo. Os bits da superindústria penetram nas
subjetividades, de onde extraem informações, transformam o desejo numa
mercadoria barateada e escravizam as pessoas. Há estudos provando que essas
plataformas se valem de mecanismos viciantes para capturar e enclausurar o tal
“usuário”.
Uma delas é a perda de contato com a razão, com os fatos e
com a política orientada para o bem comum. Tragada pela economia das sensações
e das emoções, a política se degrada em fanatismo. O que é o bolsonarismo se
não uma legião de aproveitadores que se apropriaram de ferramentas da era
digital para promover a mentira, o ódio e o culto da violência? Entre as
consequências dessa indústria, nós podemos listar, também, o adoecimento da
democracia.
A superindústria do imaginário traz mudanças para a
organização do espaço público, interferindo em noções de tempo, de espaço, e
nas formas de comunicação. Em que medida a esfera pública compreende essas
mudanças e se adapta a isso?
Veja que coisa perturbadora. Nossa esfera pública foi
moldada pela mediação dos jornais impressos, que chamo de instância da palavra
impressa. Esse padrão comunicacional predominou desde fins do século 18 até a
primeira metade do século 20 e imprimiu o seu fenótipo ao Estado moderno. Hoje,
porém, a sociedade pulsa em outro padrão, a instância da imagem ao vivo, da
qual a internet é uma extensão e um aprofundamento vertiginoso. Os dois padrões
entram em embates o tempo todo. As mobilizações de 2013 no Brasil foram uma
evidência disso: as redes sociais se batiam contra a burocracia estatal, que
não tinha como assimilar aquele imenso volume de demandas, que acabaram ficando
sem respostas.
A passagem da instância da palavra impressa para a instância
da imagem ao vivo também tem influências na atividade jornalística. Como, no
entanto, pensar na possibilidade de transformação do jornalismo em um contexto
que favorece as fake news?
O jornalismo está em crise escancarada, não apenas porque
perdeu o pé das tecnologias, mas principalmente porque a política passou a
desprezar a verdade dos fatos, que é o centro de gravidade da função
jornalística. Se um presidente da República dá uma banana para os fatos, todos
os dias, o que o jornalismo pode fazer? Pode insistir na apuração do que se
passa, como temos feito, mas a situação é difícil. O ambiente digital, que foi
sequestrado pela voracidade de um capitalismo sem princípios, tem sido hostil
para os jornalistas, para o diálogo racional e para a moralidade pública.
A instância da imagem ao vivo 'é o portal por onde a
totalidade do agora abraça a totalidade do espaço'. Em que medida o modo como
se organiza esse agora, com suas novas especificidades, pode levar a uma
mudança de percepção a respeito do passado ou então da possibilidade de se
imaginar um futuro?
Tenho a impressão de que o gerúndio é a forma verbal por
excelência da nossa era. Não é por acaso que essa mania de falar tudo no
gerúndio, própria do telemarketing americanizado, teve alastramento tão
penetrante. A superindústria do imaginário existe no gerúndio, numa bolha
temporal em que as coisas seguem num acontecendo rumorejante, sem que seu
início e seu fim se mostrem com clareza. O curso da História se dissolve nesse
gerúndio totalitário, em que Elvis Presley, do qual se diz que não morreu,
Buda, Neymar, Anitta, a rainha Elizabeth II, o papa Francisco e os ministros do
Supremo Tribunal Federal parecem ser celebridades equivalentes, análogas, elas
todas fungíveis, elas todas igualmente vazias. Que futuro a gente pode
imaginar? A propósito, o verbo imaginar ficou meio inviável dentro do
imaginário superindustrial.
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