segunda-feira, 22 de abril de 2019

Ministério da Economia é ilha liberal do governo (Hussein Kalout, Valor)

Segunda-feira, 22 de Abril de 2019 - 05:16 
Valor Econômico | Especial 



Fernando Exman
Após deixar o comando da Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, com o fim do governo Michel Temer, o cientista político Hussein Kalout reassumiu a cadeira de pesquisador na Universidade de Harvard com a experiência de quem ajudou a formular e implementar projetos estruturantes para o Estado brasileiro. Hoje, acompanha o início do governo Jair Bolsonaro de um posto privilegiado para aferir como anda a imagem do Brasil no exterior.

Um dos legados que deixou em sua pasta foi um projeto de abertura comercial. Antigos companheiros de pasta tocam a proposta, agora lotados no Ministério da Economia. “A única ilha liberal” do governo Bolsonaro, disse em entrevista ao Valor. “E talvez não inteiramente. Existem muitos falsos liberais no governo.”

Para ele, o presidente precisa assumir a articulação política e, embora o período de 100 dias seja pequeno para se fazer um balanço amplo da atual gestão, está claro que bons resultados obtidos na Infraestrutura e na Agricultura foram sombreados por polêmicas que não produzirão resultados concretos para o país.

Professor de relações internacionais, Kalout também analisou a atual política externa. Disse que há mais ativismo diplomático do que um projeto estruturado, o qual tem potencial para minar credibilidade e a margem de manobra do Brasil na cena internacional. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: Qual o balanço do governo Jair Bolsonaro até agora?

Hussein Kalout: O governo não pode ser julgado apenas pelos seus três meses iniciais. No entanto, é inegável que passou por graves problemas e percalços nessa largada. Não conseguiu instrumentalizar melhor o capital político que ganhou na eleição, para tracionar reformas mais contundentes e de fato estruturais. Ou seja, o governo perdeu aderência, popularidade, interlocução e está pulverizando o seu capital político em virtude de desgastes desnecessários e sem nenhuma utilidade estratégica. No Ministério da Educação, por exemplo, era uma morte praticamente anunciada. Era óbvio que o formato de gestão empregado no ministério não iria funcionar.

Valor: O senhor teve a experiência de participar de um início de governo, quando o ex-presidente Michel Temer tomou posse.

Kalout: O governo ainda está em processo de acomodação, a máquina vai precisar de um tempo para girar com mais fluidez. Essa sensação de ingovernabilidade oriunda de uma conjunção de fatores: descoordenação política, incapacidade de tracionar sua agenda de reformas estruturais e alguns erros estratégicos. É importante ter paciência, as coisas vão se acomodar nos próximos meses. É muito difícil montar um governo e fazê-lo funcionar em 100 dias. Valor: Quais os pontos positivos? Kalout: É importante também ser justo na crítica. O governo em algumas áreas tem entregado bons resultados, mas o problema é que eles acabam sendo sombreados pela má gestão em outros ministérios. Mencionaria, por exemplo, os ministérios da Infraestrutura e da Agricultura, que têm entregado resultados tangíveis e expressivos.

Valor: E como está o Ministério das Relações Exteriores nesse contexto?

Kalout: Não gosto de falar de indivíduos, prefiro falar de substância. Há uma proposta de política externa que basicamente fere toda a nossa doutrina histórica e os nossos principais pilares de como nos acomodamos no âmbito do sistema internacional. Política externa se formula no longo prazo, e não num curto prazo. É importante entender que ativismo diplomático não é política externa, e o que existe hoje no fundo é um conjunto de ações táticas e pontuais que ainda não se expressam como uma grande estratégia de política externa. O que foi apresentado até aqui é uma proposta de ruptura, mas sem um delineamento muito claro do que o Brasil quer no mundo, qual é a nossa grande estratégia de política externa e quais são os resultados concretos a lograr a partir dessa política externa. Muitas das propostas parecem ser anacrônicas e paradoxais ao mesmo tempo. Valor: Por exemplo? Kalout: Por exemplo o Brasil querer expandir a sua capacidade de exportação agrícola — o Brasil é uma potência do agrobusiness no contexto global — e sedimentar uma disputa com a China e o mercado árabe-muçulmano, que são os seus principais clientes. Outro exemplo é o arcabouço geopolítico sul-americano. O Brasil tem um peso muito desproporcional em relação aos seus vizinhos e levamos décadas para construir esse equilíbrio sul-americano. Qualquer ação descalibrada tem impactos no longo prazo sobre a liderança brasileira no contexto sul-americano.

Valor: A decisão de desmontar a Unasul e criar um novo bloco, a Prosul, se insere nessa crítica?

Kalout: Liderar regionalmente implica ter propostas claras do que você quer desse processo. E substituir Unasul por Prosul, que parece mais uma sopa de letras e substitui por um bloco que exclui a Venezuela, não é a solução apropriada. É importante entender qual é o projeto da Prosul em detrimento da Unasul, como esse projeto de integração pretende se materializar, quais são as linhas que vão dar amálgama às relações desses países e como será o processo de harmonização de políticas, que é assimétrico, entre os países que vão fazer parte. Isso ainda não está claro.

Valor: Qual a sua opinião sobre a forma como o governo Bolsonaro busca uma solução para a situação da Venezuela?

Kalout: É óbvio que o governo Maduro perdeu a capacidade de estabilizar socialmente o tecido sociopolítico venezuelano. Mas, na minha leitura, qualquer solução que implique utilização da força fará com que o Brasil perca legitimidade no contexto sulamericano no longo prazo e legitimidade internacional. Segundo: não temos capacidade de traçar linhas vermelhas e implementá-las.

Valor: O governo Bolsonaro aposta em Juan Guaidó, reconhecido pelo Brasil como presidente encarregado da Venezuela...

Kalout: Nesse processo de antagonização, o Guaidó se tornou uma peça descartável. Ainda que o atual regime aceite uma transição, o Guaidó não será a peça que vai harmonizar a Venezuela. Então, a contribuição brasileira precisa se dar num marco de um diálogo que estabeleça o mínimo de equilíbrio entre os dois lados. Ao tomar um lado categoricamente nesse processo, o Brasil se tornou suspeito no processo de negociação.

Valor: Quais alternativas restam entre os instrumentos diplomáticos disponíveis?

Kalout: Pressão. Mas a pressão será suficiente para resolver o problema venezuelano? Por que o regime, que hoje está na mão dos militares, trocaria o [presidente] Nicolás Maduro por alguém outro para perder o protagonismo? São várias perguntas que o Brasil precisa se fazer antes de partir para uma narrativa insustentável na perspectiva geopolítica. Quanto mais o Brasil erra na calibragem do seu discurso, mais flancos abre para que potências extrarregionais ocupem esse vácuo de poder na América do Sul. Esse é um risco existencial da nossa política externa.

Valor: A Venezuela já se tornou palco de uma disputa entre Estados Unidos, China e Rússia.

Kalout: Há quase uma década a China vem desenvolvendo cadeias produtivas no contexto latino-americano, principalmente no contexto sul-americano. E os EUA vêm ocupando, pelo menos no arco norte da América do Sul, o vácuo deixado pelo Brasil. Nosso país vem sendo comprimido para ser uma potência sub-regional, restringindo sua capacidade de influência apenas ao compasso da região do Prata. Agora a inserção da Rússia e sua presença maior no compasso sul-americano é preocupante também. Por um lado o Brasil perde, no contexto econômico, espaço para a China e não tem como competir por falta de uma estratégia muito clara. Por outro lado, abre um vácuo para que a Rússia ocupe-o no nosso arco Norte, e de forma mais ampla os EUA acabam tendo uma tração muito mais efetiva do que nós. Essa constelação de fatores acaba, no médio prazo, minando a nossa liderança.

Valor: O Itamaraty tem protagonizado algumas polêmicas e a estrutura da pasta sofreu mudanças profundas. Além disso, alguns posicionamentos históricos do Brasil foram reformados na atual gestão. Qual o efeito disso para a imagem do Brasil no exterior?

Kalout: Logo na largada, o governo quis delimitar de forma mais enfática as linhas do que parece ser a sua política exterior. No afã de indicar novas diretrizes, acabou tomando decisões pouco calibradas. Política externa é uma política de Estado e precisa ser empregada de forma muito cuidadosa. Quanto mais irrefletida for a decisão, maior o custo estratégico, especialmente se for a posteriori acompanhada de recuos. Isso acaba culminando em perda de credibilidade. A despeito de quem esteve no governo nos últimos 50 anos, o Brasil sempre teve uma conduta racional no seu processo decisório. Hoje, a leitura que se faz de fora para dentro é que há uma ruptura na lógica e na racionalidade do processo decisório da política externa brasileira.

Valor: E a questão israelo-palestina?

Kalout: De uma perspectiva histórica, o Brasil conseguiu, nas últimas décadas, manter uma certa equidistância que nos dava a capacidade de navegar com ambos os lados. A aproximação do governo com Israel tem o potencial de incrementar substancialmente a parceria no plano bilateral nas áreas de comércio, tecnologia, segurança e defesa. Alguns projetos já estavam em curso em governos anteriores. Isso é positivo para o país. Mas, como o Oriente Médio é um tabuleiro bem intrincado, é importante ter em conta a complexidade do xadrez regional. Nós temos de ganhar em todos tabuleiros e maximizar a possibilidade de projetar os nossos interesses na região com todos os atores. O que não podemos fazer é ganhar em um tabuleiro e perder em outro. Isso prejudica o interesse nacional. Por isso, é fundamental saber combinar as variáveis estratégicas.

Valor: Uma eventual mudança da embaixada é um obstáculo para isso, não?

Kalout: Prudência e temperança são elementos fundamentais no trato da diplomacia. Movimentos drásticos e rupturas feitos de uma forma não muito bem calculada acabam tendo consequências no longo prazo. A comunidade judaica nunca demandou do Brasil a mudança da embaixada para Jerusalém. Para o Estado brasileiro, o ganho em termos estratégicos é nulo. Os israelenses sabiam muito claramente que a mudança da embaixada infligiria consequências para o governo brasileiro e a pressão, no fundo, era mais de caráter interno do que externo. Objetivamente, o governo israelense deseja mais propriamente que o Brasil mude o seu padrão de votação nos fóruns multilaterais, deixando de condenar sistematicamente o país. Isso é muito mais resolutivo da perspectiva de Israel. O governo Netanyahu está preocupado com coisas muito mais concretas, por exemplo, como o Brasil pode abrir o seu mercado e como isso pode servir de alavanca para as potencialidades das empresas israelenses.

Valor: Do ponto de vista da ciência política, o que já se pode concluir em relação ao modelo de articulação política inicialmente adotado pelo governo?

Kalout: O governo apostou em não ter uma base organizada tradicional, uma coalizão política assentada a partir da organização de um bloco composto por vários partidos políticos. Apostou na possibilidade de apresentar projetos políticos temáticos pontuais e em que haveria aderência natural de bancadas temáticas a esses projetos. Esse modelo se demonstrou equivocado, e o governo necessita urgentemente repensar sua estratégia. O Congresso Nacional e os partidos são insubstituíveis, parte do processo democrático. E o Palácio do Planalto precisa se engajar numa negociação institucional, democrática e responsável, se quiser ver seus principais projetos aprovados. É impossível aprovar uma reforma da Previdência sem uma coalizão partidária e sem o presidente organizar uma base de apoio. Nenhum presidente, até o momento, empiricamente conseguiu aprovar uma reforma tão importante e da magnitude da reforma da Previdência sem ter uma base política organizada e alianças partidárias. Isso não quer dizer ‘toma lá, dá cá’. Isso faz parte do diálogo político.

Valor: O presidente está se omitindo nesse processo?

Kalout: Até o momento, o ministro [da Economia] Paulo Guedes é que tem assumido de alguma forma essa responsabilidade de ser o proponente da reforma da Previdência, ao mesmo tempo buscando dialogar de forma incessante com o Congresso. Mas o Congresso precisa de sinais políticos e quer dialogar com o Palácio, e isso é uma responsabilidade do presidente. Enquanto ele não dialogar com o Congresso, não haverá diálogo e o Congresso não trabalhará para o avanço das reformas necessárias.

Valor: Sob a sua gestão, a SAE elaborou uma rota para a abertura comercial. Por que ela não avançou totalmente no governo Temer e quais são as perspectivas a partir de agora?

Os israelenses sabiam muito claramente que a mudança da embaixada infligiria consequências para o Brasil” Até o momento, o ministro (da Economia) Paulo Guedes é que tem assumido de alguma forma essa responsabilidade”

Kalout: A abertura é uma das reformas estruturais do país. Precisamos eliminar as distorções que o próprio Estado brasileiro provoca nos fluxos comerciais do país. Uma abertura gradual, focada na eliminação de barreiras que geram mais protecionismo, é fundamental para o nosso crescimento. O Brasil é um dos países mais protecionistas do mundo, e o setor produtivo brasileiro se acostumou a não competir. Uma das dificuldades que enfrentamos no governo Temer, embora a ideia de uma abertura comercial já fosse um consenso, é que alguns setores resistiam. São setores que recebem subsídio do Estado, têm o monopólio de mercado e não precisam competir. Se acostumaram a não competir. Ninguém no governo Temer desejava uma abertura abrupta, irresponsável e inconsequente. O que se defendeu, e parece que a atual área econômica defende, é que haja um planejamento ordenado com começo, meio e fim. Valor: E por onde iria? Kalout: Uma das propostas feitas era redução da tributação sobre bens de informática e telecomunicações e bens de capital. Nós tributamos tecnologias que nem produzimos, o que só tende a ser prejudicial ao nosso desenvolvimento. Enquanto não reduzirmos a alíquota tarifária sobre bens de capital não seremos competitivos. Esse é o fato. Boa parte da equipe que cuidava dos temas econômicos na SAE hoje está integrada à equipe do ministro Paulo Guedes. Então, tenho certeza de que eles avançarão com esses projetos.

Valor: Mas não se limitaria a isso, certo?

Kalout: Abertura comercial tem que combinar vários vetores e não pode se restringir, mesmo que paulatina e gradual, a esses setores. O importante nesse processo de abertura é a assinatura de acordos plurilaterais na OMC [Organização Mundial do Comércio], especialmente o ITA [Information Technology Agreement], que assegurará tarifa zero sobre uma lista de BITs [bens de informática e telecomunicação]. E o GPA [Agreement on Government Procurement], que estimula governos federal, estaduais e municipais a permitirem empresas estrangeiras em compras públicas. Além disso, aglutinaria como parte dessa estratégia de abertura a eliminação das regras de origem intra-Mercosul, especialmente a lista de exceções da Tarifa Externa Comum. Precisamos simplificar drasticamente as taxas aduaneiras e avaliar seriamente a possibilidade de eliminar o requisito do Mercosul de que países só podem negociar temas comerciais em bloco. Temos que pensar em como modernizar nosso engajamento no comércio global.

Valor: Afinal, este governo é ou não liberal?

Kalout: O governo é um arquipélago onde há de tudo. A única ilha liberal — e talvez não inteiramente — é a equipe do Ministério da Economia. Existem muitos falsos liberais no governo. Muitos entendem que não pode haver uma parceria público-privada sem o fomento por parte do Estado. Se o Estado seguir sendo o ator responsável pela concessão de crédito para estimular a economia, a competitividade e a produtividade, nunca iremos realizar uma abertura verdadeiramente econômica e comercial.

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