quinta-feira, 6 de junho de 2019

O conflito secular entre EUA e China (Martin Wolf, Valor Econômico)

Quarta-feira, 5 de Junho de 2019 - 05:17 
Valor Econômico | Opinião 



Ofim da União Soviética deixou uma grande lacuna. A “guerra contra o terror” não foi um substituto adequado. A China, porém, preenche todos os requisitos. O país pode ser o inimigo ideológico, militar e econômico que tantos precisam nos Estados Unidos. Enfim, aqui temos um oponente à altura. Essa foi a principal conclusão que tirei das reuniões do Grupo Bilderberg deste ano. A rivalidade generalizada com a China vem se tornando o princípio organizador das políticas econômica, externa e de segurança dos EUA.

Não é tão importante se isso se trata do princípio organizador de Donald Trump. O presidente dos EUA, de fato, entra com os instintos de um nacionalista e protecionista. Mas são outros os que entram com a estrutura e os detalhes. O fim é a dominação pelos EUA. O meio é controlar a China ou separar-se da China. Quem quer que acredite que uma ordem multilateral baseada em leis, uma economia globalizada ou mesmo relações internacionais harmoniosas têm chances de sobreviver a este conflito está iludido.

O estarrecedor relatório sobre o conflito comercial publicado no domingo pela China é prova disso. O fato — para mim, deprimente — é que as posições chinesas estão corretas em muitos aspectos. O foco dos EUA em desequilíbrios bilaterais é de analfabetismo econômico. O ponto de vista de que o roubo de propriedade intelectual provocou enormes danos aos EUA é questionável. A ideia de que a China infringiu flagrantemente compromissos assumidos em seu acordo para entrar na Organização Mundial do Comércio (OMC) é altamente exagerada.

Acusar a China de trapacear é hipocrisia quando quase todas as políticas comerciais adotadas pelo governo Trump violam as regras da OMC, um fato implicitamente admitido por sua determinação em destruir o sistema de resolução de disputas. A posição de negociação dos EUA em relação à China é “quem tem poder, tem a razão”. Isso é particularmente verdadeiro na insistência de que os chineses aceitem o papel dos EUA como juiz, júri e verdugo do acordo.

Uma disputa sobre os termos

da abertura do mercado ou da proteção da propriedade intelectual poderia ser resolvida por meio de negociações cuidadosas. Tal acordo até poderia ajudar a China, já que iria aliviar a mão pesada do Estado e promover reformas pró-mercado. Agora, no entanto, os problemas geram demasiada irritação para serem resolvidos dessa forma. Isso, em parte, se deve ao amargo rompimento das negociações. Mas, em maior parte, porque o debate nos EUA cada vez mais gira em torno de decidir se é realmente desejável uma integração com a economia chinesa liderada pelo Estado. O medo quanto à Huawei tem foco na segurança nacional e na autonomia tecnológica. O comércio liberal é cada vez mais visto como “negociar com o inimigo”.

Vem emergindo uma caracterização das relações com a China como um conflito de “soma zero”. Recentes declarações de Kiron Skinner, diretora de planejamento de políticas do Departamento de Estado dos EUA (um cargo que já pertenceu a George Kennan, estrategista da época da “Guerra Fria”), são reveladoras. A rivalidade com Pequim, sinalizou Skinner em fórum organizado pelo centro de estudos New America, é “uma luta contra uma civilização realmente diferente e uma ideologia diferente; e os EUA não tiveram isso antes”. “[Esta seria] a primeira vez que vamos ter uma grande potência concorrente que não é caucasiana”, acrescentou. A guerra contra o Japão foi esquecida. A grande questão, porém, é o fato de ela ter enquadrado a situação como uma guerra racial e civilizacional e, portanto, como um conflito insolúvel. Isso não pode ter sido acidental. Além disso, ela continua no cargo.

Outros retratam o conflito como sendo de ideologia e poder. Os que enfatizam o primeiro aspecto falam da retórica marxista do presidente da China, Xi Jinping, e do papel reforçado do Partido Comunista. Os que enfatizam o segundo falam sobre o poder econômico ascendente da China. Ambos os pontos de vista indicam um conflito perpétuo.

Este é o desdobramento geopolítico mais importante de nossa era. Especialmente, o fato de que cada vez mais vai obrigar todos a tomar partido ou a precisar suar muito pela neutralidade. Mas não é apenas importante. Também é perigoso. Sem nenhum bom motivo, isso ameaça transformar um relacionamento administrável, ainda que estremecido, em um conflito total.

A ideologia da China não é uma ameaça à democracia liberal da forma como a União Soviética era. Demagogos de direita são muito mais perigosos. Esforços para estancar a ascensão econômica e tecnológica da China quase certamente vão falhar. Pior, vão fomentar na população chinesa uma profunda hostilidade. No longo prazo, as demandas de uma população cada vez mais estudada e próspera pelo controle de suas vidas ainda poderiam se sobressair. Isso se torna bem menos provável, porém, se a ascensão natural da China for ameaçada.

Além disso, a ascensão da China não é uma causa importante das mazelas do Ocidente. Elas são muito mais um reflexo da indiferença e da incompetência das elites domésticas. O que é visto como roubo de propriedade intelectual reflete, em grande parte, as inevitáveis tentativas de uma economia ascendente em dominar as tecnologias da atualidade. Acima de tudo, uma tentativa de preservar um domínio de 4% da humanidade sobre o resto é algo ilegítimo.

Sem dúvida, isso não significa aceitar tudo o que a China faz ou diz. Ao contrário, a melhor forma de o Ocidente lidar com a China é insistir na obediência dos valores da liberdade, da democracia, do multilateralismo baseado em regras e da cooperação mundial. Essas ideias tornaram muitas pessoas ao redor do mundo em defensoras dos EUA no passado. Elas ainda cativam muitos chineses hoje. É perfeitamente possível defender essas ideias — na verdade, insistir nelas com ainda mais força — e ao mesmo tempo cooperar com uma China ascendente no que for essencial, como a proteção do ambiente natural, do comércio exterior e da paz.

Uma combinação de cooperação e de competição é a forma certa de seguir adiante. Tal abordagem para gerenciar a ascensão da China precisa incluir uma cooperação próxima com aliados que pensem de forma similar e tratar a China com respeito. O trágico no que acontece agora é que o governo está simultaneamente lançando um conflito entre duas potências, atacando os aliados dele e destruindo as instituições da ordem mundial do pós-guerra encabeçada pelos EUA. O ataque de hoje contra a China é a guerra errada, lutada da forma errada e no terreno errado. Infelizmente, é nesse ponto que estamos agora.

A melhor forma de o Ocidente lidar com a China é insistir na obediência dos valores da liberdade, da democracia, do multilateralismo baseado em regras e da cooperação mundial. Essas ideias tornaram muitas pessoas ao redor do mundo em defensoras dos EUA no passado

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