sexta-feira, 28 de junho de 2019

Facebook entra em águas perigosas (Martin Wolf, Valor Econômico)


Quarta-feira, 26 de Junho de 2019 - 05:22 
Valor Econômico | Opinião 


Na semana passada o Banco da Inglaterra divulgou o resultado de uma avaliação independente do futuro do sistema financeiro, juntamente com sua reação a isso. Como se quisesse provar a importância dessas questões, o Facebook e 27 parceiras anunciaram um plano de lançar uma moeda digital mundial que se chamará Libra e um sistema de pagamentos associado a ela. Como se deveria estimar a relevância, o potencial e os riscos desses desdobramentos? Como os órgãos reguladores deveriam reagir? A resposta é: com cautela.

A revolução da informação, agora ampliada pela Inteligência Artificial (IA), certamente vai revolucionar o sistema financeiro. Oferece enormes vantagens potenciais, sob a forma de pagamentos mais rápidos e mais baratos, serviços financeiros de melhor qualidade e melhor gestão de risco. Já assistimos a uma queda acentuada no uso de dinheiro vivo e a um crescimento explosivo dos pagamentos digitais. Na China, a revolução da tecnologia de pagamentos, encabeçada pela Alipay (atualmente parte da Ant Financial), é extraordinária. O Facebook está tentando criar um concorrente. Note-se bem: nesse caso, os EUA estão seguindo o exemplo da China.

Mas o sistema financeiro também é uma infraestrutura decisiva. Um colapso do sistema financeiro tende a criar uma enorme crise econômica. A inovação mal compreendida revelou ser, muitas vezes, a parteira de calamidades como essas. É vital, portanto, garantir que as implicações de grandes inovações, como a Libra, sejam bem entendidas. Mark Carney, presidente do Banco da Inglaterra, argumentou na semana passada em seu discurso na Mansion House que o banco “se aproxima da Libra com a cabeça aberta, mas não com a porta aberta”. A cabeça não pode se abrir totalmente, no entanto.

Uma primeira pergunta tem de ser se podemos confiar no patrocinador de uma inovação tão delicada. O Facebook foi repulsivamente irresponsável com relação a seu impacto sobre as nossas democracias. Não podemos, obviamente, lhe confiar os nossos sistemas de pagamento. O Facebook dispõe de uma resposta para isso: tem apenas um voto na Libra Association, que terá governança independente localizada em Genebra. A meta é ter 100 membros até o lançamento, em 2020. Mas o Facebook parece tendente a dominar o desenvolvimento técnico da Libra. Isso cer

tamente lhe dará uma influência hegemônica.

Randal Quarles, presidente do Conselho de Estabilidade Financeira, tem razão ao dizer aos dirigentes dos países do G-20, reunidos no Japão, que “um uso mais amplo de novos tipos de criptoativos para fins de pagamento de varejo asseguraria um monitoramento estreito pelas autoridades a fim de garantir que eles cumpram altos padrões de regulamentação”.

Portanto, independentemente das dúvidas com relação ao patrocinador, um novo sistema mundial de pagamentos tem de ser avaliado por sua estabilidade técnica, seu impacto sobre a estabilidade monetária e financeira (especialmente nos países em desenvolvimento) e sua vulnerabilidade aos fraudadores, criminosos e terroristas. Surgem também inquietantes interrogações sobre as concentrações de poder, no caso de a empreitada ter êxito.

O plano atual prevê apenas um sistema pagamento. A moeda em si, nas palavras do relatório técnico, deverá ser “integralmente lastreada por uma reserva de ativos reais. Uma cesta de depósitos bancários e de títulos governamentais de curto prazo será mantida na Reserva de Libras para cada Libra que for criada, consolidando confiança em seu valor intrínseco”. Esse valor, no entanto, será vulnerável às flutuações cambiais e aos choques financeiros (entre os quais os controles cambiais). Suas oscilações em relação às moedas podem incomodar os usuários. Os órgãos reguladores terão de avaliar as instabilidades associadas a um sistema desse gênero.

Não posso julgar a estabilidade técnica do sistema pretendido. A afirmação de que ele se baseia em tecnologia de “blockchain” [uma espécie de livro contábil eletrônico que armazena o registro das operações em blocos digitais] parece bastante questionável. Mas apenas apoiadores fanáticos de sistemas “não autorizados” têm de se preocupar com isso. O mais importante é que o sistema seja robusto, resistente a violações e que proteja a privacidade pessoal, sendo, ao mesmo tempo, suficientemente transparente para reguladores, autoridades judiciais e outros agentes legitimamente interessados pelos que o usam.

Uma questão decisiva é como a Libra vai interagir com os bancos tradicionais. Poderá privá-los de uma grande parcela de seus clientes, do lado dos pagamentos. Em contraposição, o sistema da Libra poderá deter enormes depósitos nos bancos, equiparados, do outro lado de seu balanço, a carteiras de Libra mantidas pelos clientes.

De forma alternativa, como disse Carney: “Com o surgimento de novos fornecedores e sistemas de pagamento, o acesso à infraestrutura central [do Banco da Inglaterra] deverá mudar, e faz sentido considerar se eles também poderiam deter recursos por um só dia no balanço do banco”. Dependendo do grau em que os bancos centrais criarem essas reservas (uma decisão que só cabe a eles), um sistema como o da Libra poderá contornar totalmente os sistemas tradicionais de pagamentos bancários. As vantagens históricas dos bancos como instituições de crédito especializadas poderão desaparecer.

Desponta uma possibilidade muito mais significativa: o sistema da Libra, com seu conhecimento dos clientes, se tornaria, ele mesmo, uma instituição de crédito, usurpando assim os balanços dos bancos tradicionais do lado dos ativos. Na pior das hipóteses, o mundo poderá ter um monobanco dominado pelo Facebook. Os riscos disso são enormes: instabilidade monetária e financeira, concentração de poder econômico e político, falta de privacidade e muitos outros problemas potenciais.

Uma moeda mundial, criada pela concessão de empréstimos de um banco mundial (uma vez que os bancos criam dinheiro como subproduto de seus empréstimos), em uma moeda (a Libra) não respaldada por qualquer banco central e desprovida de regulador dominante, parece criar um risco apavorante à estabilidade.

Existe, efetivamente, potencial para sistemas de pagamento grandemente aprimorados. Mas o surgimento de um sistema de pagamento em uma rede da escala do Facebook levantaria algumas interrogações gigantescas. No caso de a Libra se desenvolver, em última instância, num verdadeiro sistema bancário, com capacidade para criar sua própria moeda autorizada (artificial), as interrogações se tornarão ainda mais prementes. Mesmo se forem descartados os empréstimos por meio do sistema da Libra, os reguladores não deveriam permitir que esse plano avance sem entender, plenamente, as implicações. Isso seria verdadeiro mesmo se o principal patrocinador não fosse o Facebook. Mas é. Portanto, tenhamos cuidado.

A primeira pergunta é se podemos confiar no patrocinador de inovação tão delicada. O Facebook foi repulsivamente irresponsável com relação a seu impacto sobre as nossas democracias. Não podemos lhe confiar nossos sistemas de pagamento

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