sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

BC, casa de penhor de última instância (Martin Wolf - FT e Valor)

Veículo: VALOR ECONÔMICO -SP 
Editoria: OPINIÃO 
Autor: Martin Wolf
Data: 01/06/2016, página: A13

BC, casa de penhor de última instância (Artigo)

Será que teremos outra enorme crise financeira? Como disse Hamlet sobre a queda de um pardal: "Se for para ser agora, não será depois. Se não for para ser depois, será agora. Se não for para ser agora, então será depois. Estar pronto é tudo". O mesmo vale para os bancos. Eles estão projetados para cair. Então, cair certamente irão.
Um livro recente explora não apenas essa realidade, mas também uma solução radical e original. O que justifica ainda mais dar atenção a essa sugestão é o fato de que o autor esteve no cerne do establishment monetário antes e depois da crise. Trata-se de Mervyn King, ex-presidente do Banco da Inglaterra, autoridade monetária do país. O livro chama-se "The End of Alchemy" (o fim da alquimia, em inglês).
O título é apropriado: a alquimia é o coração do sistema financeiro; além disso, a atividade bancária, assim como a alquimia, foi uma ideia medieval, embora ainda não a tenhamos descartado. É o que precisamos fazer agora, argumenta King.
A alquimia é o coração do sistema financeiro. É a crença de que o dinheiro guardado nos bancos pode ser retirado na hora em que os depositantes pedirem. É um truque baseado em trapaça: funciona apenas, e somente, se houver grande confiança. E é fraudulento
Como destaca King, a alquimia é "a crença de que o dinheiro guardado nos bancos pode ser retirado a qualquer hora que os depositantes pedirem". É um truque baseado em trapaça, em dois aspectos: funciona apenas, e somente apenas, se houver grande confiança; e é fraudulento. Instituições financeiras fazem promessas que não podem manter em prováveis situações que o mundo enfrentará. Nos bons momentos, são um negócio lucrativo. Nos maus momentos, as autoridades precisam vir socorrê-los. Não é grande surpresa, portanto, que as instituições financeiras tenham se tornado tão grandes e paguem tão bem. 
Vejamos qualquer grande banco. Vai ter uma ampla gama de ativos de risco de longo prazo em seus livros, entre os quais, mais notavelmente, hipotecas e empréstimos a empresas. Vai financiar esses ativos com depósitos (supostamente resgatáveis quando solicitados) e empréstimos de curto prazo e de prazo um pouco maior. Talvez 5% dos ativos vão ser financiados com capital próprio.
O que acontece se os que lhe emprestaram dinheiro decidirem que os bancos podem não estar solventes? Se forem depositantes ou credores de papéis de curto prazo, eles podem exigir seu dinheiro de volta imediatamente. Sem ajuda do banco central (a única instituição capaz de criar dinheiro ilimitadamente), os bancos não vão atender essa demanda. Como um colapso generalizado seria economicamente devastador, entra em cena a necessidade de auxílio financeiro. Com o tempo, essa realidade criou uma "corrida da rainha vermelha", em que se corre para ficar no mesmo lugar: os governos tentam tornar as finanças mais seguras e o mundo das finanças explora esse apoio para assumir ainda mais riscos.
Em termos gerais, há duas soluções radicais. Uma é forçar os bancos a se financiar com muito mais capital próprio. A outra é fazer com que os bancos equiparem o passivo líquido com ativos seguros e líquidos. A exigência de 100% de reservas do "plano Chicago", proposto durante a Grande Depressão, é um esquema desse tipo. Se um passivo líquido e seguro financiar ativos líquidos e seguros - e passivos sem liquidez e com risco financiarem ativos sem liquidez e sem segurança - acaba a alquimia. As finanças passariam a ser seguras. Infelizmente, o fim da alquimia também acabaria com grande parte da assunção de riscos no sistema.
King oferece uma alternativa original. Os bancos centrais ainda atuariam como instituições de crédito de última instância. Mas não seriam mais forçados a emprestar tendo como garantia praticamente qualquer ativo, já que é justamente essa possibilidade que cria o risco moral. Em vez disso, os bancos centrais acertariam antecipadamente os termos sob os quais concederiam, em tempos de crise, empréstimos com garantias, incluindo descontos relevantes. O tamanho desses descontos seria um "imposto sobre a alquimia". Eles seriam fixados em patamares altos e não poderiam ser alterados durante crises. Obanco central se tornaria uma "casa de penhores para todo tipo de clima".
O valor dos ativos líquidos, então, seria conhecido. Consistiriam nas reservas nos bancos centrais somadas ao valor da garantia de quaisquer outros ativos. No longo prazo, argumenta King, os assim definidos ativos líquidos se equiparariam ao passivo líquido de uma instituição, definido como os empréstimos com vencimento em um ano ou menos.
Esse esquema tem várias vantagens. Primeira, reconhece que apenas o banco central pode criar a liquidez necessária em uma crise. Segunda, oferece um caminho para um mundo sem alquimia. Terceira, oferece uma opção entre o status quo e a reserva bancária extrema, de 100%. Quarta, elimina o risco moral, uma vez que a penalidade para ganhar liquidez seria definida antecipadamente. Quinta, aproveita as circunstâncias atuais, incluindo as reservas criadas pelo afrouxamento monetário quantitativo e a infraestrutura criada pelos bancos centrais para avaliar e administrar garantias. Sexta, a regulamentação poderia, então ser reduzida a apenas duas regras: uma taxa máxima de alavancagem (de no máximo 10 para 1) e a regra de que o valor dos ativos no banco centralpossível de usar como garantia precisa exceder o valor do passivo líquido.
No segundo trimestre de 2015, o valor das garantias de bancos britânicos no Banco da Inglaterra era de 314 bilhões de libras esterlinas e as reservas bancárias eram de 317 bilhões de libras. Isso dá um total líquido de 631 bilhões de libras. Em comparação, os depósitos chegavam a 1,82 trilhão de libras. Com o tempo, esse abismo poderia ser eliminado. O Banco da Inglaterra deveria tornar permanentes as reservas existentes. Poderia levantar as reservas por meio de mais aumentos permanentes na base monetária. Por fim, poderia acertar o valor que pode ser usado como garantia de mais ativos. 
É um conjunto de propostas radical e interessante. Se as regras propostas estivessem em vigor, as únicas pessoas com interesse em "corridas" bancárias seriam os credores de longo prazo e os acionistas. Mas se os preços das ações desabassem e os empréstimos de longo prazo secassem, os executivos estariam sob o grau de pressão apropriado. Isso também daria tempo para liquidar a posição financeira de instituições em dificuldade. Se o capital próprio fosse insuficiente, então as perdas recairiam sobre os credores de longo prazo, em ordem predeterminada. 
Esse esquema tem desvantagens. Os valores que podem ser usados como garantia variariam com as condições econômicas, o que poderia criar certo nível de estresse. Mas trata-se de uma tentativa válida de disciplinar um sistema financeiro que faz promessas que não pode cumprir. Pelo menos, o custo de fazer essas promessas passaria a ser previsível e transparente. A alquimia seria menos lucrativa; os bancos estariam mais bem capitalizados; as corridas de credores de curto prazo acabariam. Essas ideias merecem ser consideradas com a mente aberta. (Tradução de Sabino Ahumada). 
Martin Wolf é editor e principal analista de economia do Financial Times

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