Do Livro "Se Não Entenderes Eu Conto de Novo, Pá", de Ricardo Araujo Pereira )
Quanto menos nos lembrarmos destes dez anos, melhor. Não pode dizer-se que tenha sido uma década memorável
O primeiro facto saliente acerca da década que agora termina é a
resistência que oferece a quem pretenda referir-se a ela. Os anos sessenta são
fáceis de designar, assim como os anos setenta ou oitenta, mas "os anos
zero" é uma expressão que está ainda à espera de ser cunhada - talvez por
ser estranha e, além do mais, imprecisa. Acabamos, portanto, de viver dez anos
que não conseguimos denominar. Há males que vêm por bem: quanto menos nos
lembrarmos destes dez anos, melhor. Não pode dizer-se que tenha sido uma década
memorável. Foram dez anos que começaram, aliás, sob o signo da desilusão: o
mundo não acabou no ano 2000, o que frustrou de igual modo os bruxos e aquela
gente apreciadora dos grandes eventos. Os americanos bem tentaram, elegendo George
Bush logo no primeiro ano da década, e deve reconhecer-se ele fez um esforço
notável, mas, como em quase tudo o resto, fracassou.
Outra desilusão, talvez maior ainda, foi provocada pelos escritores de
ficção científica. Anos e anos a escreverem sobre o século XXI, que afinal é
igualzinho ao século XX mas com mais telemóveis. O tamanho do nosso crânio não
aumentou, não vestimos todos de igual, não viajamos em naves. O futuro chegou
e, não há como negá-lo, é aborrecido. Não só não viajamos em naves como passou
a ser mais difícil viajar de avião. As viagens aéreas, que a ficção científica
previa cada vez mais sofisticadas e rápidas, por causa dos atentados de 11 de
Setembro de 2001 tornaram-se bastante mais lentas e rudimentares. Em lugar de
homens do futuro que entram em naves rodeados de fumo e munidos de aparelhos
altamente tecnológicos, somos homens do passado que entram nos aviões
descalços, sem o cinto das calças e impedidos de levar até uma garrafa de água.
Entretanto, nem tudo são más notícias: a justiça portuguesa aproximou-se do
nível da justiça internacional. Não, evidentemente, por ser ter tornado mais
rápida, mas porque a justiça internacional se tornou vagarosa. Milosevic e
Pinochet foram julgados por crimes contra a humanidade, tendo falecido antes de
conhecerem o veredicto. Se pensarmos que Pinochet morreu com 91 anos, o
processo Casa Pia deixa de parecer tão demorado, embora tenha ocupado sete anos
desta década e ameace ocupar vários da próxima.
Após a intervenção americana no Iraque, Saddam Hussein foi democraticamente
executado por um grupo de alegres convivas. Pareceu apropriado que, tendo a
guerra sido feita a pretexto de armas de destruição maciça imaginárias, a
democracia imposta fosse, também ela, pouco mais que uma fantasia. O enforcamento
foi filmado pelo telemóvel de um dos carrascos e colocado no YouTube. Foi dos
filmes mais vistos do ano, juntamente com um em que dois gatinhos brincam com
um novelo.
Na internet, o aparecimento das redes Hi5, Facebook, Orkut e Twitter, entre
outras, permitem que pessoas com pouco jeito para fazer amigos na vida real
consigam fazê-los no computador, e que as pessoas com pouco jeito para fazer
amigos na vida real e no computador critiquem duramente este tipo de rede. O
aparecimento da Wikipedia, uma enciclopédia feita por gente que não domina
especialmente qualquer área do saber, deu ao cidadão comum a satisfação de
sentir que os seus conhecimentos são, muitas vezes, superiores aos dos
enciclopedistas. Nas entradas da Wikipedia que utilizei para fazer este balanço
da década, o ano de 2003 tem mais datas referentes a aspectos relacionados com
os concorrentes do concurso Operação Triunfo do que, por exemplo, aos aspectos
da economia mundial.
Um negro foi eleito pela primeira vez presidente da Harvard Law Review. Um
negro candidatou-se pela primeira vez à presidência dos Estados Unidos. Um
negro venceu pela primeira vez as eleições americanas. Infelizmente, foi sempre
o mesmo negro. Continuamos sem saber bem se os Estados Unidos e o mundo
resolveram parar de discriminar os negros ou só este em particular.
Em Portugal, José Sócrates foi eleito pela primeira vez a 20 de Fevereiro
de 2005 e começou desde essa data a vestir cada vez melhor e a governar cada
vez pior. No entanto, uma vez que sucedeu a Pedro Santana Lopes, durante uns
meses chegou mesmo a parecer um bom primeiro-ministro. Nos primeiros cinco
minutos do mandato, o nome de José Sócrates não apareceu associado a qualquer
escândalo.
No futebol, num certo sentido a década foi dominada por Portugal: José
Mourinho emergiu como o melhor treinador da actualidade e Cristiano Ronaldo
sagrou-se melhor jogador do mundo. Os portugueses impõem-se cada vez mais no
futebol mundial e cada vez menos na selecção nacional.
E, até
agora, foi mais ou menos isto que se passou. Mas tenho esperança de que, nos 15
dias que lhe sobram, a década ainda consiga dar a volta por cima.
@humor
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.