Regime comercial atual é inadequado para um mundo de dados, software e IA. Dani Rodrik
O regime comercial internacional que temos hoje, enunciado nas regras da Organização Mundial do Comércio (OMC) e outros acordos, não é uma coisa desse mundo em que vivemos. Ele foi elaborado para um mundo de automóveis, aço e produtos têxteis, e não para um mundo de dados, softwares e inteligência artificial. Já sob grande pressão da ascensão da China e da reação contra a hiperglobalização, ele é completamente inadequado para enfrentar os três principais desafios que essas novas tecnologias apresentam.
Primeiro, há a geopolítica e a segurança nacional. As tecnologias digitais permitem a potências estrangeiras invadir redes industriais, praticar a espionagem cibernética e manipular as redes sociais. A Rússia vem sendo acusada de interferir nas eleições dos Estados Unidos e outros países ocidentais, através da difusão de “fake news” e a manipulação de redes sociais. O governo dos EUA adotou uma postura dura contra a gigante chinesa Huawei por acreditar que as ligações da companhia com o governo chinês tornam seus equipamentos de telecomunicações uma ameaça à segurança nacional.
Em segundo lugar, há as preocupações com a privacidade individual. As plataformas da internet podem coletar quantidades enormes de informações sobre o que as pessoas fazem dentro e fora da internet, e alguns países têm regras mais rígidas do que outros para regular o que elas podem fazer com isso. A União Europeia (UE), por exemplo, aprovou multas paras as empresas que falharem em proteger os dados dos habitantes do bloco.
Em terceiro lugar, há a economia. Novas tecnologias proporcionam uma vantagem competitiva às grandes empresas que conseguem acumular um poder enorme sobre o mercado mundial. Economias de escala e abrangência e efeitos de rede produzem resultados em que o “vencedor fica com t u d o”, e políticas mercantilistas e outras práticas de governo podem resultar em algumas empresas tendo o que parece ser uma vantagem injusta. Por exemplo, a vigilância do Estado permitiu às companhias chinesas acumular grandes volumes de dados, que por sua vez permitiram a elas monopolizar o mercado global de reconhecimento facial.
Uma resposta comum a esses desafios é invocar maior coordenação internacional e regras globais. A cooperação reguladora transnacional e as políticas antimonopólio poderão produzir novos padrões e mecanismos de fiscalização. Até mesmo onde uma abordagem global não é possível — porque países autoritários e democráticos têm desavenças profundas sobre a privacidade, por exemplo —, as democracias ainda podem cooperar entre elas e desenvolver regras conjuntas.
Os benefícios das regras comuns são claros. Na sua ausência, práticas como localização de dados, exigências locais para a nuvem da computação e a discriminação em favor de campeãs nacionais criam ineficiências econômicas na medida em que segmentam os mercados nacionais. Elas reduzem os ganhos do comércio e impedem as empresas de colherem os benefícios da escala. E os governos enfrentam a ameaça constante de terem suas regulamentações minadas por companhias que operam a partir de jurisdições com regras mais frouxas.
Em um mundo em que os países têm preferências diferentes, as regras globais — mesmo quando viáveis — são ineficientes num sentido mais amplo. Qualquer ordem global precisa pesar os ganhos do comércio (maximizados quando as regras são harmoniosas) contra os ganhos da diversidade regulatória (maximizados quando cada governo nacional é totalmente livre para fazer o que quer).
Se a hiperglobalização já se mostrou frágil, isso se deve em parte porque os formuladores de políticas priorizaram os ganhos com o comércio sobre os benefícios da diversidade reguladora. Esse erro não deveria se repetir com as novas tecnologias.
Na verdade, os princípios que deveriam guiar nosso pensamento sobre as novas tecnologias não são diferentes daqueles voltados para os domínios tradicionais. Os países podem desenvolver suas próprias normas reguladoras e definir suas próprias exigências de segurança nacional. Mas eles não têm o direito de internacionalizar suas normas e tentar impor suas regulamentações aos outros países.
Considere como esses princípios se aplicariam à Huawei. O governo dos EUA impediu a Huawei de adquirir empresas americanas, restringiu suas operações no país, lançou ações judiciais contra sua cúpula administrativa, pressionou outros governos a não trabalhar com ela e, mais recentemente, proibiu as empresas americanas de venderem chips para a cadeia de fornecimento da Huawei em qualquer parte do mundo.
Há poucas evidências de que a Huawei esteja envolvida em espionagem em nome do governo chinês. Mas isso não significa que ela não fará isso no futuro. Especialistas ocidentais em tecnologia que examinaram o código da Huawei não conseguiram descartar essa possibilidade. A opacidade das práticas corporativas na China poderia muito bem turvar os laços da Huawei com o governo chinês.
Sob essas circunstâncias, há um argumento plausível a favor da segurança nacional para os EUA — ou qualquer outro país — restringirem as operações da Huawei dentro de suas fronteiras. Outros países, como a China, não estão em posição de criticar posteriormente essa decisão.
No entanto, a proibição das exportações pelas companhias americanas é mais difícil de justificar com base na segurança nacional, do que a proibição das operações da Huawei nos EUA. Se as operações da Huawei em outros países representam uma ameaça à segurança desses países, seus governos estão na melhor posição para avaliar os riscos e decidirem se um bloqueio é apropriado.
Além disso, a proibição dos EUA cria efeitos adversos significativos para empresas de telecomunicações nacionais como B T, Deutsche Telekom, Swisscom e outras em nada menos que 170 países que dependem dos kits e hardware da Huawei.
Em resumo, os EUA são livres para fechar seu mercado à Huawei. Mas seus esforços para internacionalizar suas sanções domésticas carecem de legitimidade.
O caso da Huawei é um presságio de um mundo em que a segurança nacional, a privacidade e a economia interagirão de maneiras complicadas. A governança global e o multilateralismo sempre irão fracassar, por bons ou maus motivos. O melhor que podemos esperar é uma “colcha de retalhos” reguladora, baseada em regras básicas claras que ajudem a fortalecer os países na defesa de seus principais interesses nacionais sem que exportem seus problemas para os outros. Ou desenvolvemos nós mesmos essa “colcha de retalhos”, ou acabaremos com uma versão bagunçada, menos eficiente e mais perigosa. (Tradução de Mário Zamarian)
OLHO: O caso da Huawei é um presságio de um mundo em que a segurança nacional, a privacidade e a economia interagirão de maneiras complicadas. O melhor que podemos esperar é uma “colcha de retalhos ” reguladora , baseada em regras básicas claras
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