sexta-feira, 30 de julho de 2021

Variante Delta põe em xeque estratégia de ‘covid zero’ de China e Austrália(Estado, 30 7 21)

Variante Delta põe em xeque estratégia de ‘covid zero’ de China e Austrália

Julho, 30 7 2021

PEQUIM - A disseminação da altamente contagiosa variante Delta desafia até mesmo os países com as medidas anticovid mais duras do planeta. A mutação é vista como uma ameaça para economias que tentam recuperar as perdas dos últimos 17 meses e caminhar rumo à vida pós-pandemia.


Um surto que teve origem em um aeroporto de Nanjing, cidade no leste da China, está testando as medidas de tolerância zero do país, algumas das mais rigorosas do mundo. Novas infecções estão se multiplicando e causando surtos localizados em outras partes do país, apesar do sistema de testagem em massa e de quarentenas.


A capital, Pequim, registrou ontem sua primeira infecção por transmissão local em seis meses. O caso é associado a um surto na Província de Hunan, no sul do país, entre pessoas que estiveram recentemente em Nanjing.


A variante, detectada inicialmente na Índia, que é cerca de 60% mais contagiosa que outras cepas, desafia algumas das defesas mais incisivas contra o vírus, com lugares “covid zero” – ou seja, países que haviam conseguido expurgar a doença de suas fronteiras – vendo novos surtos. Tudo isso apesar de políticas sanitárias bastante restritivas.


Entre os mais duramente afetados está a Austrália, onde a Delta vem conseguindo escapar do sistema de quarentena obrigatória em hotéis sanitários com muito mais facilidade do que cepas anteriores, aproveitando-se da baixa taxa de vacinação no país.


Um surto causado pela Delta forçou Sydney, apesar da sua eficiente infraestrutura de rastreio de contatos e testagem, a prolongar nesta semana uma quarentena imposta no fim de junho. Desde meados daquele mês, mais de 3 mil casos foram registrados na cidade.


No Reino Unido, apesar de a Delta também ser responsável pela maioria dos casos, o número de infecções vem caindo, atraindo a atenção do mundo. Mais de 70% dos adultos no Reino Unido estão totalmente imunizados e 88% receberam a primeira dose, uma das melhores situações no mundo. Entre os que não foram vacinados, muitos tiveram covid-19 ou foram assintomáticos, contribuindo para a imunidade natural.


Na China, os primeiros diagnósticos foram realizados em nove zeladores do aeroporto de Nanjing. O surto rapidamente se expandiu para seus contatos próximos e, em seguida, para outras regiões do país. Até ontem, as infecções associadas ao aeroporto já eram mais de 200, todas pela variante Delta. Este é um dos maiores surtos na China desde uma onda no início do ano no noroeste do país, quando mais de 2 mil pessoas contraíram a doença.


Muitas das pessoas infectadas na China, incluindo os funcionários do aeroporto de Nanjing, já estavam completamente vacinadas, mas apenas quatro desenvolveram casos graves da doença. Os números indicam que a resposta imunológica gerada pelas vacinas chinesas, eficazes para conter quadros críticos da covid, é menor para prevenir a transmissão da variante.


Nanjing está endurecendo suas medidas anticovid diante do surto, que registrou 18 novos casos ontem. Todos os complexos residenciais foram postos em quarentena e a cidade está começando uma terceira rodada de testes PCR em mais de 9 milhões de pessoas. O aeroporto cancelou a maior parte de seus voos e os funcionários foram postos sob restrições.


Segundo estudos, a eficácia das vacinas chinesas em prevenir casos sintomáticos de covid-19 varia entre 50% e 80%, inferior aos mais de 90% das doses que usam a tecnologia de RNA mensageiro, como a da Pfizer-BioNTech e da Moderna. Ambas são altamente eficazes em conter casos graves, mortes e evitar a sobrecarga de hospitais.


Países como a Tailândia e os Emirados Árabes Unidos, que iniciaram suas campanhas com as vacinas chinesas, decidiram oferecer doses de reforço para algumas pessoas perante a variante Delta. Globalmente, a cepa já forçou os EUA a voltarem a recomendar o uso de máscara em áreas com altas taxas de contágio e atrasou a reabertura em Cingapura.


Israel decidiu começar a oferecer uma terceira dose da vacina da Pfizer para pessoas com mais de 60 anos. No país, 57% da população já foi totalmente imunizada, mas os casos aumentaram da média de 15 por dia no início de junho para mais de 1.600 agora.


Os surtos na China, mesmo que mínimos quando comparados com epidemias vistas nos EUA e no Sudeste Asiático, põem pressão para que as autoridades repensem suas campanhas de vacinação para possivelmente incluir doses de reforço. A vacinação chinesa, a mais rápida do mundo, conseguirá inocular 75% de sua população de 1,4 bilhão de pessoas com duas doses em um mês, caso mantenha seu ritmo atual.


A Sinovac, que no Brasil recebeu o nome de CoronaVac, disse na quarta-feira que uma terceira dose de suas vacinas aumenta o nível de anticorpos entre três e cinco vezes. As conclusões sobre o inoculante feito com o vírus inativado, a espinha dorsal da campanha de vacinação chinesa, constroem um argumento mais forte para dar injeções de reforço naqueles com mais risco de contrair o vírus. / W.POST, NYT, AP e REUTERS

sábado, 24 de julho de 2021

Reino Unido decreta o fim da pandemia. Foi a melhor decisão?(Fernando Reinach, Estado, 24 7 21)

 




Reino Unido decreta o fim da pandemia. Foi a melhor decisão?

JULY 24, 2021

No dia 19 de julho o governo inglês revogou todas as medidas de distanciamento social, o uso de máscaras e as restrições ao comércio. A vida voltou ao normal em Londres. Os ingleses festejaram nos pubs e nas boates. A festa do "dia da liberdade" virou a noite. As únicas restrições mantidas se relacionam às viagens internacionais e ao ingresso de turistas.

 

A partir de agora, o controle da covid passa a ser uma responsabilidade individual e não mais do governo. Ou seja, a covid vai ser tratada como mais uma doença infecciosa. Cada um cuida de si e administra os riscos que deseja correr. O governo informa a população, fornece os meios para as pessoas se protegerem (vacinas) e hospitais para se tratarem.

 

 

A lógica por trás dessa decisão é que existem vacinas capazes de evitar novos casos e mortes. Essas vacinas já foram oferecidas a todos os maiores de 18 anos do país: quem quis foi vacinado com as duas doses. Além disso, quem desejar vai receber um reforço nos próximos meses.

 

Os que não se vacinaram foram contatados por telefone e e-mail e a vacina lhes foi oferecida. Com isso mais de 60% da população está vacinada e os 40% restantes são crianças e os adultos que não querem se vacinar. Testes rápidos de antígenos foram distribuídos e qualquer residência pode ter um par deles na gaveta.

 

Tudo isso fez com que o risco da covid para a população tenha se reduzido a níveis aceitáveis. E deve continuar assim pois a doença está controlada e as novas cepas estão sendo constantemente monitoradas, como fazem com a gripe.

 

Nesse contexto, o governo não acredita que seja justo atrapalhar a vida de toda a população por causa de uma minoria que se recusa a ser vacinada. O plano é que a covid seja incorporada à rotina da vida de todos os ingleses, como já acontece com as outras doenças infecciosas: gripe, sarampo, Aids e tantas outras.

 

A aposta da Inglaterra é arriscada. No exato momento em que as medidas foram anunciadas o número de casos da variante delta está subindo (~40 mil por dia) e se acredita que pode chegar a 100 mil por dia. Apesar desse aumento de casos, o número de internações e óbitos continua baixo, como previam os epidemiologistas. Se essa tendência continuar quando os efeitos da abertura total forem sentidos nas próximas semanas, o governo inglês vai poder afirmar que a pandemia realmente terminou. O Sars-CoV-2 passou a ser mais um vírus “normal”, monitorado e combatido com vacinas.

 

Os otimistas acreditam que tudo vai dar certo e que essa onda atual de casos ainda vai aumentar. Acham que ela vai ajudar o país a atingir mais rapidamente a imunidade coletiva. Essa onda está sendo chamada de “onda de saída”, uma consequência da liberação das medidas restritivas. São na maioria casos leves, pois casos graves se concentram em pessoas não vacinadas.

 

Já os pessimistas estão com medo de que o atual crescimento dos casos acabe lotando os hospitais e provocando um aumento de mortes, o que obrigará o governo a voltar atrás. Ou seja, acreditam que a vacinação ainda não desacoplou totalmente o número de casos do número de mortes. Além disso temem que a circulação do vírus possa permitir o surgimento de novas variantes.

 

O fato é que a Inglaterra foi o primeiro país a decretar o fim da pandemia e a volta à normalidade. Uma decisão baseada em análises feitas por cientistas com base na enorme quantidade de dados que a Inglaterra vem coletando. Logo saberemos se essa foi a decisão correta.

 

Se tiver sido, a Inglaterra vai mostrar ao mundo como será nosso futuro. Ou então os ingleses terão que meter o rabo entre as pernas e voltar atrás na sua decisão de decretar o fim da pandemia.

sábado, 17 de julho de 2021

Será o final da pandemia?(Fernando Reinach, Estado, 17 07 21)

 

Será o final da pandemia? Não temos dados para saber o que ocorre no 2º semestre


O número de casos e óbitos no Brasil vem caindo de maneira consistente, o que pode indicar o prenúncio do fim da pandemia. Por outro lado, já foram detectados casos da cepa Delta em diversos locais, o que talvez signifique nova onda nas próximas semanas.

 

Além disso existe um número desconhecido de casos de reinfecção em pessoas que já tiveram a doença e que foram vacinados com duas doses. O caso do governador João Doria é um exemplo. O fato é que a baixa qualidade do monitoramento da pandemia no Brasil e os dados incompletos do governo dificultam nossa capacidade de prever o que nos espera nos próximos meses.

 

Em países com altos níveis de vacinação (mais de 60% da população vacinada com duas doses de vacinas de alta eficácia), onde a pandemia já parecia controlada, a variante Delta está provocando um aumento de casos. Aparentemente isso não refletiu no total de internações ou mortes, o que tem sido atribuído ao alto nível de vacinação. Esse fenômeno está em pleno andamento no Reino Unido e está no início nos EUA e em Israel.

 

Nos EUA, o fenômeno já pode ser observado nas estatísticas nacionais e é muito claro em alguns Estados. Esse aumento de casos tem levado esses países a vacinar os mais jovens e a iniciar a aplicação de uma terceira dose da vacina num esforço de controlar de vez o coronavírus. Os fabricantes de vacina já estão testando doses de reforço com a mesma vacina ou com vacinas desenvolvidas para proteger contra as novas variantes. Esse movimento tem recebido críticas uma vez que a maior parte da população mundial ainda não foi vacinada, mas acredito que faz parte do papel dos países mais avançados descobrir e testar soluções que possam depois ser estendidas a todo o planeta.

 

Do lado científico, há dados demonstrando que a quantidade de anticorpos diminui ao longo do tempo em pessoas vacinadas com vacinas de mRNA (Pfizer) e de adenovírus (AstraZeneca). Daí, talvez um reforço seja necessário.

 

Qual a situação no Brasil? Por aqui, os níveis de vacinação com as duas doses ainda são muito baixos (menos de 20%) e foram detectados casos da variante Delta. Como o governo só divulga a presença de um ou outro caso da variante e não complementa essa informação com o número total de amostras analisadas, é impossível sabermos a frequência dessa variante entre os novos casos. Uma possibilidade é que a Delta já seja predominante por aqui e, nesse caso, talvez não ocorra uma onda de novos casos nos próximos meses. Mas pode ser, também, que esses casos sejam os primeiros no Brasil e a Delta esteja iniciando sua expansão. Se esse for o cenário, é muito provável que tenhamos nova onda de casos nos próximos meses. E, se ela vier, é provável que as hospitalizações e mortes aumentem novamente, já que o nível de vacinação com duas doses ainda é baixo e não sabemos como a Coronavac se comporta com a nova variante. Em suma: não temos os dados necessários para saber o que vai ocorrer no Brasil no segundo semestre.

 

Outro problema, por aqui, é que o governo não divulga os números de testes feitos a cada dia, só o de testes positivos. Se o número de testes executados não for muito maior que o de casos positivos, o número de testes positivos não é um indicador do número real de casos. Esse problema existe desde o início da pandemia e é por esse motivo que os indicadores de mortes e de internações em UTIs têm sido os mais confiáveis do progresso da pandemia.

 

Com a vacinação progredindo é provável que haja uma dissociação do número de casos e do número de mortes, como vem ocorrendo no Reino Unido. Além disso é indispensável divulgar as estatísticas do número de pessoas vacinadas com cada uma das vacinas que se contaminam novamente (como Doria), são internadas e vêm a falecer. Sem essa informação será difícil decidir se a população deverá receber um reforço e se ele deve ser feito com a mesma ou com outra vacina. A baixa taxa de vacinação e o esforço de vacinar rapidamente a população não é desculpa para não enfrentarmos essas decisões e iniciarmos o planejamento para o segundo semestre de 2021.

 

*MAIS INFORMAÇÕES: SPIKE-ANTIBODY WANING AFTER SECOND DOSE OF BNT162b2 OR ChADOx1. LANCET https://doi.org/10.1016/ S0140-6736(21)01642-1 2021

quinta-feira, 15 de julho de 2021

Nunca os seres humanos foram tão explorados quanto agora(Eugênio Bucci, Estadão, 15 7 21)

 

‘Nunca os seres humanos foram tão explorados quanto agora', diz Eugênio Bucci

15.7.21

Enquanto navegamos pelas redes sociais, estamos trabalhando - para os outros. E de graça, permitindo que nossas informações sejam reunidas, catalogadas e transformadas em bases de dados. Não há mais um imaginário com o qual as companhias dialogam para vender um produto. O capital passou a criar o próprio imaginário em que estamos mergulhados.

 

É esse um dos pontos de partida para o novo livro de Eugênio Bucci, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. A Superindústria do Imaginário: Como o Capital Transformou o Olhar em Trabalho e se Apropriou de Tudo Que É Visível inaugura a Coleção Ensaios da editora Autêntica. E traz reflexões e conceitos nos quais Bucci vem trabalhando há mais de duas décadas.

 

 

Eugênio Bucci fala sobre os danos irreversíveis das ‘fake news’

Eugênio Bucci fala sobre os danos irreversíveis das ‘fake news’

“Nunca os seres humanos foram tão abusivamente explorados como agora”, diz Bucci na entrevista a seguir, na qual fala sobre as ideias do livro e o modo como essa nova configuração na relação com o capital influencia diferentes campos, da arte à produção jornalística.

 

O livro traz reflexões já presentes em seu doutorado. Em que medida o passar do tempo contribuiu com as ideias apresentadas? O que ainda não havia que hoje se tornou presente e foi fundamental para o livro?

Mais do que reflexões, há conceitos nesse livro que eu formulei há mais de 20 anos. O entendimento do que vem a ser o valor de gozo é um deles. A expressão foi cunhada pelo psicanalista francês Jacques Lacan num curso que ele deu em 1967, mas nunca foi desenvolvida por ele ou por seus seguidores na forma de uma categoria comunicacional e econômica. E, no meu doutorado, há 20 anos, eu proponho um modelo teórico para isso. Agora, no meu novo livro, essa construção ficou mais aprofundada e mais fundamentada. Outros conceitos cruciais, porém, eu só pude enxergar e elaborar mais tarde, como o de superindústria do imaginário. Quanto ao que não existia na época, eu posso lembrar aqui as plataformas sociais e esses conglomerados monopolistas globais, como Facebook e Google. O advento desses gigantes da era digital só confirmou os postulados da minha tese.

 

O senhor mostra como estamos expostos aos algoritmos em um jogo desigual, pois sabemos pouco sobre eles. É possível igualar as chances nesse jogo?

Por enquanto, acho difícil e improvável igualarmos esse jogo, que se tornou uma relação assimétrica num grau absurdo. Os algoritmos sabem tudo sobre a intimidade dos frequentadores da internet e esses frequentadores nada sabem sobre os algoritmos. Perto disso, o 1984 de George Orwell é uma fábula infantil. A exploração econômica que esses conglomerados realizam é mais absurda ainda. Pensemos nas plataformas sociais. O modelo de exploração chega às raias da desumanidade. Quem são os digitadores, os fotógrafos, os editores, os locutores, os atores e os modelos de tudo o que aparece nas plataformas? Ora, os “usuários”, como aprendemos a chamá-los. Um Facebook da vida não precisa contratar ninguém para “postar conteúdos”, no linguajar deles, pois os tais “usuários” fazem isso de graça. E como se estivessem se divertindo, aproveitando as vantagens de um entretenimento que lhes é dado de graça. Sejamos diretos: quem entra de graça aí não são as funcionalidades das plataformas, mas o trabalho do tal “usuário”. Além do seu trabalho e do seu olhar, que vale dinheiro, e muito, o pobre e inocente “usuário” entrega todos os seus dados, sua biografia, seus sonhos mais pueris para o algoritmo. Depois, no fim da linha, quem vai ser vendido é o próprio usuário, com seus dados, seu olhar e o circuito secreto de seu desejo inconsciente. Nunca os seres humanos foram tão abusivamente explorados como agora.

 

Teremos de construir uma forma de resistência, mas ela está muito distante. Ela só poderá vir da regulação democrática que seja capaz de, em primeiro lugar, quebrar os monopólios e, em segundo lugar, impedir a apropriação desleal, pelos algoritmos, dos dados e da configuração do nosso desejo. O que essas empresas fazem é mercadejar com o que há de mais íntimo e mais pessoal. Isso é intolerável se queremos viver numa sociedade civilizada. É verdade que a tecnologia nos trouxe e nos traz coisas maravilhosas, mas a tecnologia aprisionada pela ganância do capital rebaixa a dignidade humana a um patamar selvagem, que não podemos aceitar. Uma rebelião digital é urgentemente necessária.

 

Em um contexto no qual o sujeito tem sua própria vontade trabalhando pelo capital, é possível ainda falar de individualidade?

Sim, a individualidade existe, assim como existem as subjetividades de cada pessoa. Mas, não nos esqueçamos, há um processo caprichoso e atroz de colonização dos nossos aparatos psíquicos individuais. Os artifícios da exploração adotados pela superindústria são mais ou menos como um vírus que se insinua por dentro do corpo e se aloja no interior das células de sua vítima para subjugar o organismo. Os bits da superindústria penetram nas subjetividades, de onde extraem informações, transformam o desejo numa mercadoria barateada e escravizam as pessoas. Há estudos provando que essas plataformas se valem de mecanismos viciantes para capturar e enclausurar o tal “usuário”.

 

Uma delas é a perda de contato com a razão, com os fatos e com a política orientada para o bem comum. Tragada pela economia das sensações e das emoções, a política se degrada em fanatismo. O que é o bolsonarismo se não uma legião de aproveitadores que se apropriaram de ferramentas da era digital para promover a mentira, o ódio e o culto da violência? Entre as consequências dessa indústria, nós podemos listar, também, o adoecimento da democracia.

 

A superindústria do imaginário traz mudanças para a organização do espaço público, interferindo em noções de tempo, de espaço, e nas formas de comunicação. Em que medida a esfera pública compreende essas mudanças e se adapta a isso?

Veja que coisa perturbadora. Nossa esfera pública foi moldada pela mediação dos jornais impressos, que chamo de instância da palavra impressa. Esse padrão comunicacional predominou desde fins do século 18 até a primeira metade do século 20 e imprimiu o seu fenótipo ao Estado moderno. Hoje, porém, a sociedade pulsa em outro padrão, a instância da imagem ao vivo, da qual a internet é uma extensão e um aprofundamento vertiginoso. Os dois padrões entram em embates o tempo todo. As mobilizações de 2013 no Brasil foram uma evidência disso: as redes sociais se batiam contra a burocracia estatal, que não tinha como assimilar aquele imenso volume de demandas, que acabaram ficando sem respostas.

 

A passagem da instância da palavra impressa para a instância da imagem ao vivo também tem influências na atividade jornalística. Como, no entanto, pensar na possibilidade de transformação do jornalismo em um contexto que favorece as fake news?

O jornalismo está em crise escancarada, não apenas porque perdeu o pé das tecnologias, mas principalmente porque a política passou a desprezar a verdade dos fatos, que é o centro de gravidade da função jornalística. Se um presidente da República dá uma banana para os fatos, todos os dias, o que o jornalismo pode fazer? Pode insistir na apuração do que se passa, como temos feito, mas a situação é difícil. O ambiente digital, que foi sequestrado pela voracidade de um capitalismo sem princípios, tem sido hostil para os jornalistas, para o diálogo racional e para a moralidade pública.

 

A instância da imagem ao vivo 'é o portal por onde a totalidade do agora abraça a totalidade do espaço'. Em que medida o modo como se organiza esse agora, com suas novas especificidades, pode levar a uma mudança de percepção a respeito do passado ou então da possibilidade de se imaginar um futuro?

Tenho a impressão de que o gerúndio é a forma verbal por excelência da nossa era. Não é por acaso que essa mania de falar tudo no gerúndio, própria do telemarketing americanizado, teve alastramento tão penetrante. A superindústria do imaginário existe no gerúndio, numa bolha temporal em que as coisas seguem num acontecendo rumorejante, sem que seu início e seu fim se mostrem com clareza. O curso da História se dissolve nesse gerúndio totalitário, em que Elvis Presley, do qual se diz que não morreu, Buda, Neymar, Anitta, a rainha Elizabeth II, o papa Francisco e os ministros do Supremo Tribunal Federal parecem ser celebridades equivalentes, análogas, elas todas fungíveis, elas todas igualmente vazias. Que futuro a gente pode imaginar? A propósito, o verbo imaginar ficou meio inviável dentro do imaginário superindustrial.

 

 

sábado, 10 de julho de 2021

Coronavac: ação contra casos graves, sem bloqueio total da transmissão(Fernando Reinach, Estado, 10 7 21)

 

Notícias recentes da Coronavac mostram ação contra casos graves, sem bloqueio total da transmissão

JULY 10, 2021

Na época em que o Instituto Butantan terminou o estudo de Fase 3 da Coronavac, como se recorda, uma das razões para o atraso na divulgação dos dados foi a existência de um estudo semelhante feito na Turquia. Enquanto o estudo brasileiro indicava uma eficácia de ~50% contra o aparecimento de casos sintomáticos de covid-19, o estudo turco obteve uma eficácia de ~85%. Depois disso, a comunidade científica espera a revisão por pares e a publicação definitiva dos resultados desses dois estudos para entender o motivo da discrepância e a real eficácia da Coronavac.

 

 

Brasil chega a 14,16% da população com imunização completa contra a covid-19


 

Até o momento o estudo coordenado pelo Butantan ainda não passou pela revisão de pares e não foi publicado em sua forma definitiva. Mas nesta sexta-feira, 9, foi publicado na revista The Lancet a versão revisada e definitiva do estudo turco, acompanhado de um editorial elogiando-o por fornecer dados sólidos sobre a eficácia da Coronavac. Dado seu pequeno tamanho (11.303 voluntários, divididos entre o grupo controle e o vacinado), o estudo somente foi capaz de avaliar a eficácia contra o aparecimento de casos sintomáticos detectados por exames PCR. E a eficácia ficou em 83,2% (intervalo de confiança entre 65,4 e 92,1%). Não foi possível calcular a eficácia da vacina em prevenir internações ou mortes.

 

A eficácia medida nesse estudo é maior que a divulgada pelo Butantan, e que está sob avaliação dos pares desde 14 de abril. Essa é uma boa notícia para quem foi vacinado com a Coronavac, pois é o primeiro estudo da eficácia dessa vacina publicado em uma revista científica. Mas é importante lembrar que o estudo foi feito entre 14 de setembro de 2020 e 5 de janeiro de 2021, quando muito provavelmente somente a cepa original do coronavírus circulava na Turquia. Frente a novas variantes, esse número deve ser menor.

 

Outra boa notícia é o estudo que foi publicado no The New England Journal of Medicine, descrevendo os dados obtidos no Chile após a vacinação com a Coronavac. São dados obtidos em condições reais de vacinação, entre os dias 2 de fevereiro e 1.º de maio de 2021, quando provavelmente a cepa presente no Chile era a original. Nesse estudo foi envolvido um número muito grande de voluntários (10,2 milhões de pessoas, divididos em três grupos: os não vacinados, os vacinados com uma dose e os vacinados com as duas doses). O estudo mostrou que a efetividade da Coronavac em prevenir casos de covid com sintomas foi de 65,9%. A vacina também preveniu 87,5% das hospitalizações, 90,3% das internações em UTis e 86,3% das mortes. Os intervalos de confiança dessas medidas são pequenos, por causa do enorme número de voluntários estudados.

 

Esses resultados são os primeiros de efetividade da Coronavac e demonstram que ela impede grande parte dos casos graves e de mortes. Por outro lado, a baixa efetividade contra casos mais leves (65,9%) talvez explique por que no Chile o número total de casos por milhão de habitantes continua alto. A interpretação mais simples é que a Coronavac impede o surgimento de casos graves, mas não bloqueia completamente a transmissão do vírus.

 

Os primeiros dados sobre a Coronavac estão aparecendo nas revistas científicas. Confirmam que a vacina funciona, é muito útil em prevenir casos graves, mas é menos efetiva em inibir o espalhamento do vírus. Infelizmente a efetividade contra novas variantes ainda é desconhecida e os poucos dados divulgados não foram publicados em revistas científicas. Hoje a cepa original praticamente não existe mais, tendo sido substituída pelas novas variantes, sendo a mais preocupante a delta. Nas próximas semanas vamos saber o estrago que ela vai fazer no Brasil, onde poucos receberam as duas doses da vacina.

 

MAIS INFORMAÇÕES: EFICACY AND SAFETY OF AN INACTIVATED WHOLE-VIRION SARS-COV-2 VACCINE (CORONAVAC): INTERIM RESULTS OF A DOUBLE-BLIND, RANDOMISED, PLACEBO-CONTROLLED, PHASE 3 TRIAL IN TURKEY. LANCET. https://doi.org/10.1016/ S0140-6736(21)01429-X

 

2- EFFECTIVENESS OF AN INACTIVATED SARS-COV-2 VACCINE IN CHILE. N.E.J.M. https://doi.org/10.1056/NEJMoa2107715

 

É BIÓLOGO, PHD EM BIOLOGIA CELULAR E MOLECULAR PELA CORNELL UNIVERSITY E AUTOR DE A CHEGADA DO NOVO CORONAVÍRUS NO BRASIL; FOLHA DE LÓTUS, ESCORREGADOR DE MOSQUITO; E A LONGA MARCHA DOS GRILOS CANIBAIS

segunda-feira, 5 de julho de 2021

As criptomoedas na mira dos bancos centrais(Celso Ming, O Estado de S. Paulo, 4 7 21)

CELSO MING - As criptomoedas na mira dos bancos centrais

domingo, 4 de julho de 2021 


 

O Estado de S. Paulo  / Economia

CELSO MING


Desde quando apareceu a primeira delas (o bitcoin, em 2008), as criptomoedas vêm sofrendo fortes ataques por parte de autoridades monetárias e policiais ao redor do mundo pelos argumentos errados.


Um deles é o de que não são 'legítimas', porque não são emitidas por bancos centrais ou por governos soberanos. Mas esta não é exigência intrínseca de uma moeda. Ao longo da História, são inúmeras as moedas que tiveram grande aceitação sem que ostentassem a efígie de César ou do imperador do momento.


O primeiro dólar, por exemplo, nasceu por decisão do conde Hieronymus Schlick lá por 1540, cuja propriedade, na área de Joachimstal ('Vale do Joaquim'), na Boêmia, encontrou uma mina de prata. Cunhou então o Joaquimstha-lergroschen (algo como grosso do 'Vale do Joaquim'), nome convenientemente encurtado para taler (do vale) em alemão, tallero em italiano e dollar em inglês. Foi umamoeda de grande aceitação sem que ninguém reclamasse então da deficiência de soberania na sua emissão. Desde tempos imemoriais, ouro em pó desempenhou função de moeda sem que levasse o carimbo de autoridade de Estado. A aceitação das criptomoedas provém das regras confiáveis de sua criação, da sua ancoragem em algoritmos e na indevassável tecnologia blockchain.


Também não se pode alegar que a emissão por um banco central toma uma moeda mais confiável do que essas novidades. A inflação e a rejeição de tantas moedas oficiais mostram que bancos centrais e governos não foram tão zelosos na guarda do valor da sua moeda.


Outro argumento frequentemente repetido pelas autoridades é o de que as criptomoedas estão sendo cada vez mais usadas por sonegadores, terroristas e narcotraficantes, que se valem do anonimato nas transações. Por isso, concluem essas autoridades, deveríam ser banidas. No entanto, o dólar e o euro são moedas mais usadas e mais falsificadas por esses fora da lei do que as criptomoedas, sem que ninguém até agora tivesse pregado sua retirada de circulação. Nenhuma moeda tem a função de apontar atividades ilícitas. No dia em que deixar de assegurar a privacidade e qualquer um puder saber quanto alguém guarda no cofre, essa moeda começará a ser rejeitada.


É inegável que a política monetária (política de juros) dos bancos centrais está sob ameaça. Se o uso das criptomoedas se tornar ainda mais generalizado, os bancos centrais não terão como calibrar o volume de moeda no mercado para combater a inflação.


Por trás dessa impossibilidade está o fato de que os bancos centrais desfrutam hoje (ou até recentemente) de monopólio sobre a criação e a administração da moeda nacional. É sobre essa circunstância que se assentam as bases da atual política monetária, que é a prerrogativa exercida pelos bancos centrais de aumentar ou diminuir o volume de moeda de maneira a combater (ou não) a inflação. No entanto, nada assegura de fato esse monopólio. A qualquer momento, uma moeda mais confiável pode eliminá-lo. Ainda não se sabe como os governos ou os bancos centrais poderíam quebrar a espinha dorsal das criptomoedas de modo ape-renizar seu próprio monopólio.


O maior problema das criptomoedas é sua enorme volatilidade, o que as impossibilita de se tomar reserva estável de valor. E há, ainda, o fato de que consomem volumes enormes de energia elétrica tanto para a sua 'mineração' (criação) quanto pelo processamento das transferências de titularidade.


Há uma revolução no sistema monetário global facilitada pela Tecnologia da Informação ou, mais especificamente, pela generalização dos algoritmos e dos aplicativos, que possibilitaram as criptomoedas. Não sabemos ainda o que está a caminho. Sabemos apenas que será um mundo bem diferente do que é hoje.