DESPEDIDA
por Ugo Giorgetti - 21/jan/2022
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O casal era uma bomba, que explodiu em cheio quando se mostrou publicamente. Lembro-me de acusações grosseiras, agressões e falatórios horrorosos que teriam liquidado gente menos especial que os dois. Eles, de uma maneira ou de outra, foram em frente e, aos trancos e barrancos, ficaram juntos muitos anos
Há mais ou menos 60 anos, um homem e uma mulher se conheceram, iniciaram um romance e pouco depois viraram personagens do maior escândalo da época, que sacudiu tanto o futebol como a Música Popular Brasileira. O nome dela era Elza Soares. O dele, Manoel Francisco dos Santos, o Garrincha.
De fato, não creio que jamais tenha conhecido casal com tão grandes possibilidades de afrontar os costumes da época de forma total. Nunca vi gente que reunisse em si tudo o que parte substancial da sociedade brasileira abomina. Eram de origem humilde, pobre, mas, apesar disso, tinham conseguido se tornar célebres em suas respectivas profissões, o que tornava essa união ainda menos aceitável. Como um jogador de futebol e uma cantora, ambos negros, ele casado e com vários filhos, têm a coragem de se unir, passando a viver juntos em plena luz do dia?
Analisando os dois separadamente, já ficava claro que eram exceções, gente diferente, que, exatamente por isso, costuma pagar alto preço por se afastar ou negar a norma e o lugar comuns.
Ele era um jogador, embora admirado, idolatrado mesmo, não confiável. Seu estilo individualista, sua despreocupação quanto a esquemas táticos, seu pendor para divertir o público com fintas e firulas faziam dele um ídolo popular, mas não um ídolo entre dirigentes, treinadores e gente responsável de maneira geral. Sua carreira repousava sobre o físico. Enquanto sua arrancada para a direita, sempre repetida, conhecida por qualquer zagueiro, continuasse impossível de ser detida, tudo ia muito bem. Fazia, aliás, parte do espetáculo saber exatamente o que ele iria fazer e ainda assim a impossibilidade de ser impedido. Era uma unanimidade entre o público de futebol da época, completamente diferente em tudo do de hoje.
Ela, por seu lado, era também uma cantora de dificílima definição. Apareceu na música popular quando esta se modificava de maneira brusca e definitiva, com a entrada em cena de uma geração classe média, bem informada, inteligente, que tinha entre suas ambições colocar um pouco de otimismo, bom gosto e suavidade numa música que, segundo alguns, era carente disso tudo. O modo de Elza Soares cantar não combinava com nada disso. Diziam que a Bossa Nova tinha enorme influência do Jazz. Não tinha. Quem tinha influência do Jazz era Elza Soares, com sua voz crispada, seus improvisos súbitos no meio da música, que a transformavam numa cantora fora dos padrões brasileiros consagrados, com seus efeitos rascantes, guturais, lembranças de negros americanos que ela, penso eu, só conhecia por instinto e por intuição. Não consigo ver Elza Soares cantando com a suavidade exigida “o barquinho vai, a tardinha cai”, nem imaginá-la numa reunião no apartamento de Nara Leão, na Avenida Atlântica. Como Garrincha, seu talento não passava despercebido, isso era impossível, mas ao mesmo tempo não se sabia como classificá-la no universo da canção brasileira. Além disso, muita gente torcia o nariz para seu jeito de se apresentar, sem esconder uma sensualidade à flor da pele.
O casal era uma bomba, que explodiu em cheio quando se mostrou publicamente. Lembro-me de acusações grosseiras, agressões e falatórios horrorosos que teriam liquidado gente menos especial que os dois. Eles, de uma maneira ou de outra, foram em frente e, aos trancos e barrancos, ficaram juntos muitos anos.
O que os golpeou fortemente foi o fato de que um jogador de futebol tem carreira infinitamente mais breve do que uma cantora. Quando ela nem tinha ainda atingido seu ápice, Garrincha descia a montanha inexoravelmente e, claro, isso não lhe escapou. Quando percebeu que o arranque da perna direita não tinha mais aquela repentina força e velocidade, quando o lance magistral que tinha criado começava a ser detido, percebeu que o futebol acabava e talvez isso o tenha feito beber ainda mais.
Todos bebiam muito naquela época, principalmente a classe social mais baixa. Cachaça, caninha, rabo de galo, conhaque e não sei mais o que não chamavam a atenção de ninguém. Garrincha era apenas um dos que bebiam e, acho, não tenho certeza, passou a beber cada vez mais pesado, à medida em que seu futebol declinava. Estavam estabelecidas as condições necessárias para uma clássica história de amor, infeliz e trágica. O desfecho veio com a separação e, depois, a morte do jogador em 1983, completamente entregue à bebida, à solidão e ao desespero. A bebida matou Garrincha, mas a causa da bebida foi a falta do futebol. Garrincha morreu ao ver que não podia fazer o que mais amava. O que amava mais do que a Elza Soares.
Ela seguiu sua vida. Nunca deixou de cantar. Talvez também amasse mais sua música do que a Mané Garrincha. Durante esses longos anos que separam a morte de Garrincha da dela, que ocorreu nesta quinta-feira, 20 de janeiro, esteve imperturbável, cantando. Por mais que os gostos mudassem, os comportamentos fossem outros, ela não mudou. Nunca soube que tenha se queixado de qualquer coisa, de qualquer agressão, qualquer ataque. E foram muitos. Também nunca se arrependeu publicamente de coisa alguma. Esse estoicismo admirável ninguém lhe pode negar.
A história desse casal exige o talento de um grande escritor, desses capazes de estar à altura dos maiores temas da literatura, sobretudo o tema do amor trágico. Haverá esse escritor entre nós?