sábado, 7 de novembro de 2020

Vacina obrigatória(Miguel Reale Júnior, Estado, 7 11 2020)

 

Vacina obrigatória

COLUNISTAS

sábado, 7 de novembro de 2020 


  

O Estado de S. Paulo  / Espaço Aberto

Cenário Político-Econômico: Colunistas

Miguel Reale Júnior


O obscurantismo bolsonariano faz-nos retroceder no tempo mais de um século. Em 1900 a cidade do Rio de Janeiro, então capital federal, era conhecida como empesteada, vítima de febre amarela, peste bubônica e cólera. Oswaldo Cruz, diretor de saúde pública no governo Rodrigues Alves, enfrentou as duas primeiras a partir de 1902 e em 1904 deu início ao combate à varíola, cuja imunização poderia dar-se pela aplicação de vacina já conhecida havia décadas.


Depois de muita discussão, foi aprovada no Congresso Nacional a Lei n.° 1.261, de outubro de 1904, que determinava a vacinação compulsória. Houve, então, já naquele tempo, tanto fake news, difundindo ser perniciosa a vacina, como exploração política de positivistas, seguidores de Augusto Comte, e florianistas, adeptos de Floriano Peixoto, que tomaram a questão da vacina como pretexto para tentar derrubar o presidente.


A contestação à obrigatoriedade, liderada por parlamentares, antes oficiais do Exército, ganhou cores gravíssimas, pois entre 10 e 20 de novembro as ruas foram ocupadas por revoltosos, com um saldo terrível de 30 mortos e mais de 900 presos, dos quais 450, por antecedentes criminais, foram enviados para o Acre. Muitos feridos.


Até Rui Barbosa se pôs contra a vacina, ponderando que, "assim como o Direito veda ao poder humano invadir-nos a consciência, assim lhe veda transpor-nos a epiderme". A obrigatoriedade foi revogada. Em 1908 muitos morreram de cólera e a população acorreu, então, para tomar a vacina. Rui alterou sua posição e em 1917 homenageou Oswaldo Cruz, reconhecendo dever-se a ele a vitória sobre o flagelo e a diferença entre o "Brasil pesteado, que encontrou, e o Brasil desinfectado, que nos veio a legar".


Em plena pandemia, antes do meio do mandato, Jair só pensa na reeleição. E por interesse político, como em 1904, lança suspeitas sobre a vacina e nega sua obrigatoriedade para contentar seguidores e atacar governadores, contrariando os valores básicos da Constituição e os termos da legislação específica por ele mesmo sancionada. E daí?


No campo legal, a Lei n.° 6.259/75 e o Decreto n.° 78.231/76 impõem a obrigatoriedade da vacina a todos os adultos, aos quais incumbe submeter à vacinação os menores sob sua guarda.


A prevenção da contaminação da covid-19 é, especificamente, disciplinada pela Lei n.° 13.979/20. No artigo 3.° da lei, dispõe-se: "Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: ( ... ) III - determinação compulsória de ( ... ) d) vacinação". Essa conduta pode ser adotada, segundo o parágrafo 7.° desse artigo 3.°, pelos gestores locais de saúde, ou seja, pelos governadores, desde que cientificamente recomendada a providência.


Na Constituição da República consagra-se o valor da solidariedade no artigo 3.°, segundo o qual é objetivo fundamental da República construir uma sociedade livre, justa e solidária. Ser vacinado é ser solidário, pois não apenas se protege a si mesmo, mas todos da comunidade, visando a alcançar a imunização. A solidariedade, na expressão de Dworkin, vem a ser "considerar a vida dos outros como parte de suas próprias vidas" ( Uma Questão de Direito, pág. 297), significando "a pessoa se abrir à outra, pensá-la, sofrer com", no dizer de Arias Bustamante (Alternativa Ideológica: Comunitarismo, pág. 40), unidos todos por grande cordão umbilical.


Pela via da solidariedade social pode-se cimentar, orientar e construir concretamente nossa unidade como povo, surgindo em face desse objetivo da República o dever de solidariedade que a todos vincula (André Corrêa, Solidariedade e Responsabilidade, pág. 313).


Como transmissores, somos todos iguais perante o vírus. Ninguém, por nenhuma razão, pode colocar-se acima dos demais e negar-se a colaborar com a comunidade na precaução contra o malefício da infecção. Rejeitar a vacina, autorizada pela Anvisa, é atuar com desprezo pelo outro, em superioridade antissolidária.


Como elucida o Supremo Tribunal Federal (Oscar Vilhena, Direitos Fundamentais, pág. 388, reproduzindo votos de Celso de Mello), "a proteção à saúde representa um fator que associado a um imperativo de solidariedade social impõe-se ao Poder Público", em qualquer plano da organização federativa, tomando medidas preventivas e curativas.


Em outro voto, Celso de Mello observa que a negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida com base nos direitos sociais significa a renúncia a "reconhecê-los como verdadeiros direitos" (pág. 399), em arrepio ao princípio da solidariedade.


Assim, campanha contra futura vacinação, por motivação política, significa não reconhecer a precaução eficaz contra o vírus como um direito da comunidade, a ser explicado e exigido de todos pelo chefe da Nação. Tal conduta infringe o artigo 7.° da Lei n.° 1.079/50, ou seja, pode ser crime de responsabilidade consistente em violar o direito social à saúde, pois incita a impedir a imunização, objetivo solidário de todo o povo. Que flagelo!


"Campanha contra a vacinação por motivos políticos pode ser crime de responsabilidade "

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