Em meio a mudanças regulatórias desenhadas para destravar o setor de petróleo e gás no Brasil, o diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo (ANP), Décio Fabrício Oddone da Costa, diz que está na hora de "corrigir o que não deu certo e deixar para trás ideias estatizantes e intervencionistas". A urgência é apresentada em números. Segundo o executivo, o país perde R$ 2,6 bilhões a cada ano com o atraso da entrada em produção de uma plataforma como a do campo de Libra, no pré-sal.
Entre as mudanças em curso no setor, a mais polêmica é a que reduz o percentual exigido, nos próximos leilões, para contratação de bens e serviços no Brasil pelas empresas de petróleo. O objetivo é facilitar o início de projetos que vão exigir investimentos de R$ 240 bilhões até 2021.
Para contratos assinados em leilões passados, a proposta, em consulta pública, prevê possibilidade de assinatura de aditivo contratual sob as novas regras, que terão percentual de 25% de conteúdo local. No caso de descumprimento, serão aplicadas multas sem a possibilidade de "waiver", que é o perdão pelo descumprimento dos índices previstos e que já resultou em multas de R$ 576 milhões aplicadas pela ANP até agora.
"Queremos gerar volume, e 25% de muitas plataformas é muito melhor do que 55% de nenhuma ou de poucas, como a gente está agora", disse. O executivo trabalhou 30 anos na Petrobras, onde entrou em 1985. Seguiu a carreira do avô, Décio Oddone, primeiro geofísico brasileiro e integrante da diretoria da Petrobras na criação da empresa, em 1953. A influência do avô sempre foi uma inspiração que ele não esconde. Oddone integrou as primeiras equipes de exploração da Bacia de Campos e fez carreira internacional na estatal, tendo passado Iraque, Líbia e Angola. Presidiu a Petrobras na Bolívia e na Argentina, de onde foi afastado por ordem de Jorge Zelada, hoje preso, e foi vice-presidente de Investimentos da Braskem. Deixou a diretoria da Prumo em 2016 para assumir a ANP. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida após sua volta de um giro por oito países: Inglaterra, EUA, Austrália, Malásia, Cingapura, China, Rússia e Noruega.
Valor: A descoberta do pré-sal abriu um debate sobre o ambiente regulatório que acabou interrompendo os leilões no Brasil. Qual o saldo desse período?
Décio Oddone: Quando descobrimos o pré-sal começaram as discussões. Levamos cerca de cinco anos discutindo. Nesse período tivemos queda do preço do petróleo, redução dos investimentos da Petrobras e também dificuldade de cumprimento de regras de conteúdo local, que passaram a ser mais rígidas em 2005. Isso tudo teve impacto enorme na produção do petróleo no Brasil, e o declínio da atividade exploratória foi impressionante. Chegamos a ter 238 poços perfurados em 2011 e só 7 em 2017. Se não fizermos nada, estaremos contratando agora a paralisia da indústria mais à frente.
Valor: Como reverter isso?
Oddone: Precisamos ter coragem de corrigir o que não deu certo e deixar para trás as ideias estatizantes e intervencionistas que vimos que não funcionaram. Às vezes parece que não conseguimos sair daquelas ideias dos anos 50. Cada vez que divulgamos uma medida para estimular a atividade aparece gente dizendo que estamos cedendo à pressão das empresas, insinuando que temos postura de colonizados. Acho que é o contrário. Pensar isso é que é submissão. Estamos escolhendo o caminho que queremos seguir. Quem acha fazemos isso pressionados por outros é que demonstra ter uma mentalidade de colonizado.
Valor: Pode ser mais específico?
Oddone: Estão sendo tomadas algumas medidas de natureza política, como o fim da obrigatoriedade da Petrobras ser operadora única no pré-sal, e outras não, como o calendário de leilões, a revisão do modelo de conteúdo local e a nova política de exploração e produção. Essas mudanças vão dar uma dinâmica nova e inédita ao setor. Vão trazer investimentos relevantes, gerar contratações junto à cadeia de fornecedores, fomentar um ciclo positivo de aumento de emprego e arrecadação.
Valor: Quanto pode vir?
Oddone: Calculamos cerca de US$ 80 bilhões de investimento direto nas rodadas que serão realizadas a partir de agora até 2019. Nos nossos cálculos estatísticos, as reservas de petróleo e gás devem praticamente dobrar. Hoje o país ainda vive dos projetos de exploração e produção que foram concedidos no passado, cujo prazo de exploração começou anos atrás.
Valor: Mantida a previsão de R$ 240 bilhões em investimentos?
Oddone: A ANP contabiliza 20 projetos de produção previstos para o período de 2017 a 2021 que podem gerar investimentos de R$ 240 bilhões e instalação de outras 20 plataformas. É nisso que temos que focar no curto prazo. É preciso destravar esses investimentos.
Valor: Que projetos estão incluídos nesse cálculos?
Oddone: Vários do pré-sal, como Libra, Sépia, Lula, Búzios e outros. São projetos que estão andando em maior ou menor velocidade em função de uma série de dificuldades. O que a gente quer fazer é ajudar para que esses projetos saiam. Dos leilões que aconteceram nos últimos anos, na 11ª e 12ª rodadas [de 2013] e desde a 7ª rodada [de 2005], cerca de 150 poços exploratórios, dos quais 40 no mar, estão travados. Ainda não aconteceram porque não têm licença ambiental, existe dificuldade com conteúdo local ou alguma outra razão. Só aí são cerca de R$ 10 bilhões de investimento. Uma sonda marítima, por exemplo, gera mil empregos, incluindo rodízio da tripulação e apoio. Essas atividades podem ser destravadas.
"A política de conteúdo local não tem o objetivo de multa. A multa significa o fracasso da política"
Valor: Com tantas dificuldades do governo na área fiscal, não foi difícil convencer a Fazenda a abrir mão dessas multas?
Oddone: Em primeiro lugar, a política de conteúdo local não tem o objetivo de multa. O objetivo é distinto. A última coisa que eu quero aqui é multar. A multa significa o fracasso da política e o ideal é que ela fosse conduzida sem multa. Outra coisa que é preciso lembrar é que estamos vivendo um período de institucionalização. Eu nunca falei com a Fazenda sobre isso. Essa atribuição cabe à ANP. Se por um lado, no passado, as fornecedoras interpretaram as questões de compromisso de conteúdo local como uma demanda potencial e fizeram investimentos com base em expectativas de contratação que não se realizaram, não procedem as argumentações da industria do petróleo de que os compromissos de conteúdo local eram totalmente inexequíveis. Também não é isso. No momento, o que não está claro é que a isenção em larga escala ou a negociação individual de compromisso de ajuste, o "waiver", seja a solução. E não é. Se tivermos milhares de "waivers" isso aqui vai virar um inferno.
Valor: Não é injusto conceder o 'waiver' quando empresas pagaram menos se comprometendo com mais conteúdo local?
Oddone: Um debate que existe é se houve prejuízo para concorrentes nos casos em que a oferta de conteúdo local foi critério vencedor da licitação. Foram apenas dois casos em 673 desde 2005. Uma das áreas já foi devolvida, era em terra da Petrobras com BG no São Francisco. Resta uma no Recôncavo Baiano também em terra. Então não tem nenhum campo relevante. O impacto disso na seleção de ganhadores dos leilões foi mínimo.
Valor: E o TCU criticou essa demora da agência
Oddone: No ano passado, o TCU determinou que em 180 dias a ANP normatizasse a aplicação do "waiver", inclusive para os casos já protocolados. Desde 2009, a ANP vinha alertando sobre as dificuldades encontradas na aplicação da política de conteúdo local. O sistema é rígido, detalhado, de difícil cumprimento e fiscalização, e não parece refletir a atual capacidade da industria fornecedora em bases razoavelmente competitivas. Nosso objetivo ao regulamentar não é ajudar a indústria de petróleo mas evitar insistir nos erros e corrigir o que não deu certo. A contratação de conteúdo local não deve onerar o setor de petróleo de forma arbitrária.
Valor: Como se chegou aos 25% de conteúdo local?
Oddone: Foi em função de uma ampla discussão para redefinir as regras de conteúdo local feita no âmbito do governo.
Valor: Alguma empresa ou segmento industrial reclamou com a ANP que essa mudança é injusta?
Oddone: Eu recebi aqui o Sinaval e a Abimaq, e eles têm uma posição de que os conteúdos locais precisam ser mantidos nos níveis anteriores. Mas nos níveis anteriores, a atividade paralisou. Tanto assim que o governo mesmo reformulou a política. O fato é que as contratações não vieram.
Valor: Essa paralisação não foi por falta de outras empresas competindo com a Petrobras, que passou a ter dificuldades?
Oddone: Quando se tem uma redução da atividade como a gente teve no Brasil, isso é resultado de uma série de fatores. Não foi um fator único. O que a gente viveu foi uma conjunção de políticas equivocadas com concentração em uma única empresa, que é a Petrobras. Mas também de outros fatores como o preço do petróleo que reduziu o nível exploratório das companhias. É uma série de conjunções e devemos trabalhar com as que nos competem. O governo determina as políticas e mudou algumas. A regulação, a ANP ajusta.
Valor: E foram cinco anos sem leilões, de 2008 a 2013.
Oddone: Se me pedissem para eleger um fator, elegeria esse como o mais relevante, como também a dificuldade com conteúdo local. Com o preço do petróleo a mais de US$ 100 tudo fica mais fácil, a indústria fica mais próspera e mais propensa a gastar mais, o que não acontece em época de escassez de recursos como agora. O que queremos que as pessoas entendam é que nosso objetivo é fazer alguma coisa. A indústria brasileira vai se beneficiar muito mais do que se os projetos continuarem parados, e as empresas, a indústria e a ANP entrassem em uma interminável discussão de pedidos de "waiver". Mantida a regra como está vai ser uma judicialização eterna, um debate caso a caso.
Valor: E como fica a situação da indústria brasileira?
Oddone: As empresas mais competitivas serão as primeiras a se beneficiar quando as contratações das empresas de petróleo voltarem. E no final toda a cadeia vai se beneficiar. Queremos gerar volume, e 25% de muitas plataformas - e eu falei vários números aqui - é muito melhor que 55% de nenhuma ou de poucas, como a gente está agora. Isso precisa ser entendido. Sem falar nos outros benefícios de uma retomada da atividade. É por isso que estamos propondo as mudanças e levando o assunto para consulta pública. Todos vão ter condições de opinar.
"Numa democracia capitalista como a nossa, as contratações devem ser feitas sem imposições excessivas"
Valor: Quem vai tomar a decisão final sobre a mudanças na política de conteúdo local?
Oddone: A ANP. Os interessados poderão se manifestar. Temos tradição de engessar muito as decisões. A de conteúdo local é um exemplo. Agora vamos licitar blocos do pré-sal e seria bom ver companhias disputando quem oferece maior bônus no momento em que o país precisa de receitas adicionais. Mas não podemos, porque está definido na lei que o bônus não é mínimo, é fixo. Ganha quem oferecer a maior parcela de petróleo para a União. Passamos anos discutindo o destino da renda do pré-sal e acabamos decidindo que a Petrobras seria operadora única com mínimo de 30% de cada bloco.
Valor: O bônus previsto para as áreas do pré-sal é de R$ 8,5 bilhões. Acha que perdeu-se tempo?
Oddone: Aí tem uma coisa interessante. A União se apropria de 75% da renda do petróleo, o "government take" como se fala em inglês, que é o conjunto de resultados que sobram depois de pagos todos os custos. Como o Estado detém cerca de 50% do capital da Petrobras, se distribuído sob a forma de dividendos, metade do seu lucro poderia reverter para a União. O resto corresponderia aos demais acionistas.
Valor: O governo tem 47,61% considerando participações indiretas do BNDES e da Caixa.
Oddone: Mas vamos imaginar que sejam 50%, vamos fazer uma conta de padeiro. Dessa forma, se a Petrobras operasse sem sócios em uma área no pré-sal, metade do lucro auferido pela companhia, 12% da renda total, poderia passar ao Estado, elevando a parcela que caberia ao governo a 87%. No entanto, a Petrobras optou por ter 30% nos blocos que selecionou nos próximos leilões. Em função disso, a participação do Estado no lucro da companhia poderia chegar perto de 4% do total, o que elevaria o montante da União a 79% da renda total. Nos blocos em que a Petrobras não participar, a quota do Estado será de 75%. Portanto, toda a discussão sobre a renda gerada pela exploração do pré-sal resume-se a cerca de 4% do total.
Valor: A discussão tomou muito tempo, inclusive no Congresso
Oddone: Pois é. E enquanto essas regras eram discutidas, o país pagava Juros elevados sobre a sua dívida. Do ponto de vista econômico-financeiro teria sido melhor iniciar a produção logo. Algo parecido acontece na discussão sobre o conteúdo local, que está na ordem do dia. Parece que as contratações a preços mais elevados são um problema só das empresas, inclusive da Petrobras. E olha a contradição aí. A Petrobras é do povo, ela é nossa, mas pode arcar com custos mais elevados. E numa democracia capitalista como a nossa, as contratações devem ser feitas de forma livre, sem imposições excessivas. A interferência deve ser limitada, já que existem políticas. Nessa discussão sobre o conteúdo local não se fala dos custos para a sociedade.
Valor: Qual o impacto do atraso de uma plataforma como a do campo de Libra?
Oddone: Com o petróleo custando US$ 50 o barril e considerando que a plataforma terá capacidade de produzir 150 mil barris, a conta é impressionante. São R$ 2,6 bilhões de receitas postergadas a cada ano por causa do atraso na entrada em produção de uma plataforma como essa. Se estamos falando de um potencial de 20 plataformas nos próximos anos, faz a conta. São dezenas de bilhões de reais potenciais de projetos previstos. E mesmo que não sejam tudo isso, continuam sendo dezenas de bilhões de reais em receitas que, do ponto de vista prático, nunca mais vão ser recuperadas. Se vai produzir o petróleo daqui a 20 anos, se trouxer a valor presente é nada. Quem mais perde com isso é a sociedade. É preciso coragem de propor alguma coisa, e é o que estamos fazendo.
Valor: É possível que venha uma onda de importações que possa impactar a balança comercial?
Oddone: Eu vejo uma situação em que a retomada da atividade vai gerar demanda. Teremos coisas que serão feitas fora e existem grandes discussões sobre o que. Mas não tenho dúvidas de que montagem de cascos e módulos serão feitos no Brasil. Eu já vi apresentações públicas de consórcios falando que níveis de contratação próximos aos que estão estabelecidos agora serão viáveis. E se não forem na forma que estamos propondo, aí haverá multa, porque não vai mais existir a figura do "waiver". E quando se retoma a atividade se cria toda uma cadeia de produção que não está presente quando a atividade é reduzida. Não nos esqueçamos também que o Brasil é longe, existe um custo logístico para trazer as coisas para cá, e a questão de impostos aplicáveis às importações. Isso gera vantagens para as empresas estabelecidas no Brasil. As empresas mais competitivas serão beneficiadas no primeiro momento, mas com o grande volume de plataformas que vão ser consumidas nos próximos anos, não tenho dúvida que vai aumentar o grau de contratações da indústria em geral.
Valor: Existe algum estudo mostrando as dificuldades de se adquirir bens no mercado nacional?
Oddone: Existem muitos estudos, nenhum da ANP. Os pedidos de "waiver" que temos aqui, exceto Libra e Sépia, da Petrobras, são da fase de exploração, que não tem essa questão de indústria tão intimamente relacionada.
Valor: Quais itens de conteúdo local estão sendo objeto de pedidos de "waiver"?
Oddone: Temos pedidos para afretamento de sondas, apoio logístico a embarcações, aquisição de sísmica, brocas, equipamentos de poços e revestimentos, que são as tubulações. E temos dois de sistemas de comunicação. Tudo ainda relacionado com a atividade de exploração, enquanto o grosso da contratação da indústria local vem na fase de desenvolvimento. Mas a ANP ainda não está avaliando esses pedidos.
Valor: Como vê a conjuntura de preço do petróleo?
Oddone: Tanto a Opep quanto a Agência Internacional de Energia [AIE] identificam que a reação da indústria à queda do preço do petróleo em 2014 e 2015 vai gerar a necessidade de exploração. No momento em que cai o preço, o primeiro ajuste que as empresas fazem é cortar a exploração e foi esse o movimento que vimos de 2014 a 2016. Agora está voltando o interesse das empresas por exploração e tanto a AIE quanto a Opep acham que em 2020 a falta de exploração em 2014, 2015 e 2016 vai levar a um aumento de preços.
http://www.valor.com.br/brasil/5064006/para-anp-e-hora-de-deixar-de-lado-ideias-intervencionistas
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