terça-feira, 15 de agosto de 2017

Pernas curtas (David Kupfer)



Percorrido mais da metade desse ano de 2017, muita água já rolou por baixo da ponte sem que um futuro econômico promissor possa ser descortinado. Em meio à profusão de números apurados mês após mês descrevendo comportamentos erráticos para os diversos indicadores econômicos, é realmente muito difícil inferir previsões certeiras mesmo que para curtos períodos à frente. Mas já é praticamente consensual entre os analistas a previsão de que a divulgação do PIB do segundo trimestre vai mostrar que houve variação negativa, jogando uma pá de cal no tour de force que segmentos formadores de opinião econômica empreenderam para virar o jogo das expectativas a favor de uma recuperação da economia ainda nesse ano.

Nessa miríade de variáveis conjunturais, um dos indicadores mais preocupantes é o grau de utilização da capacidade instalada na indústria. No primeiro semestre de 2017, segundo a série publicada pela Sondagem Conjuntural da CNI, o valor médio mensal do indicador foi de somente 65%. Dentre os 29 ramos de atividade pesquisados, apenas dois, Derivados de petróleo e Extração de minerais metálicos, exibiram valores superiores a 70%. A análise individual dos diversos setores mostra, quase sempre, o mesmo perfil: após dois anos de queda contínua, a utilização de capacidade está gravitando com oscilações de pequena amplitude em torno de um patamar muito baixo. Em si, esse patamar tão baixo já é revelador do tamanho das dificuldades que a recessão prolongada vem impondo ao setor produtivo.

Muito além de uma análise meramente mecânica desses números, mais grave fica a situação quando se leva em consideração que a capacidade operacional das fábricas sempre incorpora algum grau de ajustamento às condições de demanda projetadas pelas empresas. Por isso, a partir de certo ponto, o grau de utilização pode estabilizar não porque o numerador (a produção) parou de cair e sim porque o denominador (a capacidade produtiva) começou a diminuir.

Hoje a aposta no mercado internacional externo parece a única opção de saída do quadro recessivo Evidências da extensão desse processo de ajuste de capacidade podem ser extraídas da evolução da Formação Bruta de Capital Fixo. Segundo o Ipea, a previsão para o segundo trimestre de 2017 é de que houve uma queda de 1,3% sobre o trimestre imediatamente anterior, de 7,1% na comparação com igual período do ano passado e de 6,2% no acumulado de 12 meses. Com isso, predominam expectativas muito ruins para o investimento no fechamento de 2017, que deverá apresentar queda superior a 5% em relação a 2016. Diante desses números, não é exagero projetar que a economia brasileira deve estar rodando hoje com uma taxa de investimento na casa de 14% do PIB.

Como é sabido, taxas de investimento dessa ordem de grandeza indicam que sequer a depreciação dos ativos produtivos está sendo reposta, quer dizer, o estoque de capital da economia brasileira está em acentuado declínio. São indicadores que mostram que a indústria está respirando por aparelhos. O pouco oxigênio disponível é proveniente do mercado externo. De fato, o único componente da demanda com evolução favorável nesse momento é a exportação. Nesse primeiro semestre de 2017, as exportações cresceram cerca de 19,5%, fato que juntamente com a evolução fraca das importações, permite projetar um saldo comercial, absolutamente recorde, de mais de US$ 60 bilhões para o ano.

De modo geral, os dados apontam para um crescimento de valor das exportações comandado muito mais pelo aumento dos preços (90% da variação total) do que das quantidades (10% da variação total). Isso permite afirmar que as exportações estão crescendo menos pelo aumento da competitividade da produção brasileira e mais pela prevalência de um quadro externo favorável: a Europa finalmente com boas perspectivas após longo período de crise, a resposta positiva da economia chinesa que conseguiu manter o ritmo de crescimento a despeito do ceticismo que contaminou os analistas há alguns meses atrás e, por último mas não menos importante, a manutenção do quadro benigno da economia norte-americana, a despeito de tantas "trumpalhadas".

Os principais setores responsáveis pelo crescimento das vendas externas são alimentos, veículos e bens de capital, além de petróleo. Mas quando se observa apenas o quantum exportado, desponta a indústria automobilística que promoveu nos últimos meses um forte crescimento do número de unidades exportadas. Segundo a Anfavea, apenas entre janeiro e julho, foram embarcados 439,5 mil veículos para o exterior, atingindo 30% da produção total. Tratando-se de movimento muito recente, é cedo para propor interpretações, mas a análise da evolução dos estoques setoriais traz indícios de não se trata de exportação de excedentes, e sim produção realizada para o mercado externo.

Nesse caso, são indícios sugestivos que pode estar havendo um reposicionamento estratégico no sistema de empresas transnacionais do setor visando abrir mais espaço para as filiais brasileiras se reestruturarem, provavelmente com o fito de preservar o valor dos importantes ativos existentes no Brasil. A se confirmar essa hipótese e, principalmente, se extensiva a outros setores internacionalizados da economia brasileira, algo importante poderá estar em curso e merece ser mantido no radar.

Não se pode perder de vista que, historicamente, os ciclos de expansão liderados por exportações que ocorreram na economia brasileira do pós-II Guerra (meados dos anos 1950, meados dos anos 1980, início dos anos 1990, inicio dos anos 2000) sempre foram caracterizados por baixo dinamismo, ou mesmo por tendências estagnacionistas. Nesse momento, no entanto, mesmo que tenha pernas curtas, uma aposta no mercado internacional parece a única opção de saída do quadro recessivo que insiste em contrariar as polianas e os sábios do autoengano que se multiplicam por aí.

David Kupfer é diretor do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador do Grupo de Indústria e Competitividade (GIC-IE/UFRJ). Escreve
mensalmente às segundas-feiras. E-mail: gic@ie.ufrj.br.


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