domingo, 17 de dezembro de 2017

Desafios de uma economia intangível (Martin Wolf, Valor)



Valor Econômico  Opinião

 quarta-feira, 29 de novembro de 2017 06:13


Qual é a novidade da economia atual? Não é o papel das ideias por si sós. As tecnologias que damos como certas - a roda, a cerâmica a quente, o arado ou o motor a vapor - foram, no passado, novas ideias brilhantes. A novidade da economia atual é que muitas das nossas melhores ideias permanecem incorpóreas. A ideia é verdadeiramente valiosa, mas não assume forma física. Isso muda quase tudo.

Esse é o tema de um intrigante livro novo, "Capitalism without Capital: The Rise of the Intangible Economy"(Capitalismo sem Capital: a Ascensão da Economia Intangível), de Jonathan Haskel, do Imperial College, e de Stian Westlake, da fundação Nesta, de fomento à inovação. O argumento principal dos autores é irrefutável: a Apple, a empresa mais valiosa do mundo, não possui virtualmente nenhum ativo físico. São seus ativos intangíveis - a integração entre a concepção e o software na formação de uma marca - que criam valor.

Talvez os fatos mais surpreendentes de um livro cheio de surpresas é como são grandes atualmente os investimentos em ativos intangíveis - em pesquisa e desenvolvimento, software, bancos de dados, criações artísticas, projeto, gestão de marcas e processos comerciais. Nos EUA e no Reino Unido, os investimentos em ativos intangíveis ultrapassam atualmente os canalizados para ativos tangíveis. Isso também ocorre na Suécia, mas não na Alemanha, Itália ou Espanha.

Isso é importante porque as propriedades de bens intangíveis são fundamentalmente diferentes das de bens tangíveis. Entender essas diferenças pode explicar algumas das características peculiares da economia contemporânea, entre as quais a expansão da desigualdade e a desaceleração [do crescimento] da produtividade.

Os autores explicam os traços dos ativos intangíveis citando os "quatro Ss": escalabilidade; subsidiariedade; vazamentos e sinergias (scalability; sunkenness; spillovers; synergies, em inglês). Tomados juntos, eles subvertem o funcionamento até então vigente de uma economia de mercado competitiva.

"Escalabilidade" significa que um bem intangível pode ser usufruído por uma pessoa sem privar outra de seus benefícios. Economistas chamam um bem desse gênero de "não concorrente". Você não pode comer o mesmo sanduíche que eu estou comendo. Mas um ativo intangível pode ser usado muitas e muitas vezes. Em uma economia em que a escalabilidade - muitas vezes turbinada por efeitos de rede - é importante, algumas empresas rapidamente ficam enormes. Essas vencedoras podem também gozar das vantagens colossais do pioneirismo.

"Subsidiariedade" se refere ao fato de que os ativos intangíveis tendem a ter pouco ou nenhum valor de mercado, ao contrário, digamos, de terras ou fábricas. Eles têm valor como parte da empresa de seu proprietário, mas não para qualquer outra. Isso significa que o investimento em ativos intangíveis é de alto risco. O fato de as expectativas repousarem sobre alicerces instáveis pode, argumentam os autores, gerar também bolhas nos preços dos ativos.

Essa transformação da economia exige reexame da política pública. Marcos regulatórios ou proteção à propriedade intelectual são mais importantes. Mas isso não significa que essas proteções tenham de ser ainda mais amigáveis aos detentores dessa propriedade

"Vazamentos" significa que uma grande parte dos benefícios de um investimento poderá ser creditada a outras pessoas. Mesmo com proteção da propriedade intelectual, boa parte do benefício do investimento em uma ideia tende a favorecer outras pessoas que não os descobridores. A imitação (e o roubo) são uma forma gratificante de bajulação. A presença desses vazamentos enfraquece o incentivo para investir. A resposta são direitos de propriedade intelectual, mas esses direitos são inerentemente arbitrários e economicamente onerosos.

Finalmente, os intangíveis ostentam sinergias. Isso vai contra os vazamentos. As sinergias estimulam a colaboração interempresas (ou as fusões rematadas), enquanto os vazamentos tendem a desestimulá-la. Tomados juntos, esses traços explicam duas outras características centrais da economia intangível: a incerteza e a contestabilidade. A economia de mercado deixa de funcionar da forma até então vigente.

Será que a ascensão dos intangíveis explica o que veio a ser chamado de "estagnação secular"? Em parte. Isso não se deve tanto, pelo que se constata, ao fato de o crescimento ter sido subestimado. Mas uma grande questão é a crescente discrepância de desempenho entre as principais companhias e as retardatárias. O fato de estas últimas deixarem de se beneficiar das vantagens do investimento em intangíveis, feito por elas ou por outras, pode explicar em parte a fragilidade de seu crescimento em produtividade.

Mas, frise-se mais uma vez, a ascensão dos intangíveis pode também explicar em parte o aumento da desigualdade. Uma das maneiras de o fenômeno agir nesse sentido é o fato de os trabalhadores das empresas mais bem-sucedidas tenderem a compartilhar do sucesso de seu empregador. Além disso, pessoas com qualificações relevantes se saem excepcionalmente bem. Acrescente-se a isso, e de forma intrigante, as empresas intensivas em intangíveis tendem a se aglutinar em cidades de grande expansão. Isso não apenas concentra as oportunidades como também eleva os valores dos imóveis, disseminando a riqueza entre os detentores desses imóveis. Finalmente, os ativos intangíveis são móveis, o que os torna difíceis de taxar.

Essa transformação da economia exige um reexame da política pública. Há cinco desafios. Primeiro, marcos regulatórios ou proteção à propriedade intelectual são mais importantes. Mas isso definitivamente não significa que essas proteções tenham de ser ainda mais amigáveis aos detentores dessa propriedade. Monopólios da propriedade intelectual podem, de fato, ser necessários, mas, a exemplo de todos os monopólios, podem ser caros.

Segundo, uma vez que as sinergias são tão importantes, os formuladores de políticas públicas têm de estudar como estímulá-las, inclusive por meio de políticas de telecomunicações e de desenvolvimento urbano. Terceiro, financiar os intangíveis é difícil. Para o crédito bancário tradicional avalizado por garantias, é quase impossível. O sistema financeiro terá de mudar. Quarto, a dificuldade de se apropriar dos lucros gerados do investimento em intangíveis poderá criar o subinvestimento crônico em uma economia de mercado. O governo terá de desempenhar importante papel no compartilhamento dos riscos. Finalmente, os governos têm também de estudar como enfrentar as desigualdades criadas pelos intangíveis, uma das quais (insuficientemente enfatizada neste livro) é a ascensão de empresas superdominantes.

Haskel e Westlake mapearam a economia de uma nova economia desafiadora. Trata-se de um universo do qual muitas das velhas regras não dão conta. Temos de reimaginar a política pública, e com cuidado. (Tradução de Rachel Warszawski)

Martin Wolf é editor de economia e principal analista econômico do FT

@economia @tecnologia

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.