Quinta-feira,
14 de dezembro de 2017
Valor Econômico | Opinião
Marco Cardoso: Lixo contra fóssil
Até a década de
1970, a Suécia usava basicamente petróleo para satisfazer as suas necessidades
energéticas. Cerca de 80% de toda a energia gerada no país tinha como fonte
primária o hidrocarboneto. O óleo e seus derivados eram os combustíveis
essenciais para abastecer de aquecimento, transporte e eletricidade o país
nórdico. Sem nenhuma reserva de "ouro negro" no seu território e
tendo de importar o combustível, o país sentiu fortemente as duas crises de
petróleo da década e começou uma alteração da sua matriz energética sem
precedentes. Para tanto, contou também com o potencial energético de uma fonte
muito desprezada aqui no Brasil: o lixo.
Antes disso, os municípios suecos já vinham
implantando um sistema de aquecimento centralizado que reduzia o consumo e o
impacto ambiental das caldeiras e lareiras individuais. Também já usavam
digestores anaeróbicos para reduzir o volume (e o custo do transporte) do lodo
residual de estações de tratamento de esgotos. Inicialmente, porém, os sistemas
de aquecimento (District Heating) funcionaram à base de petróleo e os
digestores anaeróbicos apenas eliminavam, por meio de queima, o biogás gerado
no processo.
Essa condição perdurou até as crises da década de
1970 que aumentaram significativamente os preços do petróleo nos mercados internacionais.
Na ocasião, ficou evidente a importância de se buscar combustíveis alternativos
como o biogás antes desperdiçado.
A mesma década também viu se aprofundar a
discussão sobre os resíduos sólidos urbanos, cada vez mais volumosos e com
destinação final cada vez mais difícil. Com isso, o país enxergou no lixo parte
da energia que antes obtinha do petróleo. Usinas que aproveitavam o poder
calorífico dos resíduos começaram se tornar uma opção.
Na metade da década de 1980 surgiram
questionamentos com relação à emissão de dioxinas e furanos por essas usinas.
Em 1985, foram suspensas as construções de novas unidades, enquanto uma
comissão ficou de estudar a questão. Em 1986, a comissão concluiu que a forma
de tratamento era adequada e o governo decidiu apenas apertar um pouco mais os
limites de emissão, voltando a liberar novas plantas de recuperação energética
de resíduos.
Em 1991, tanto as plantas de recuperação por
incineração quanto os esforços na indústria de biogás ganharam novos impulsos,
quando o país aproveitou uma ampla reforma tributária para instituir o imposto
sobre carbono - já para atender uma ainda incipiente preocupação mundial com as
mudanças climáticas. Com isso, os combustíveis alternativos ficavam mais
atrativos, especialmente os resíduos que tinham um preço negativo, já que as
empresas recebiam pelo tratamento em vez de pagar pelo combustível.
Em 2000, o imposto sobre aterramento também
contribuiu, mas foi em 2002, com a proibição de aterramento de resíduos
combustíveis, e em 2005, com a proibição de aterramento de resíduos orgânicos
que as plantas de recuperação energética e de digestão anaeróbica de resíduos
orgânicos se espalharam por todo o país.
A Suécia, líder mundial em descarbonização da
economia, aterra menos de 1% dos seus resíduos, e aproveita todo o restante,
quer aumentar ainda mais sua utilização por meio da economia circular, que visa
estender o ciclo de vida dos materiais
Hoje a grande maioria das cidades suecas tem um
sistema de aquecimento central que também gera eletricidade (quase 9% da
eletricidade do país), utilizando resíduos sólidos na base. Os demais
combustíveis, que são comprados, entram conforme a demanda aumenta. Aqueles
combustíveis que ainda por cima têm impostos mais altos (petróleo), só entram
em casos extremos. Além de fornecer calor e eletricidade, muitas plantas também
oferecem refrigeração para indústrias, hospitais e comércio.
Igualmente, a grande maioria das cidades possui
uma frota de ônibus que se utilizam de biometano (biogás purificado) oriundo
dos resíduos de estações de tratamento de esgotos e dos restos alimentares e
resíduos orgânicos de indústrias que foram proibidos de serem aterrados em
2005.
Mas o melhor de tudo é que essa transformação
energética que os distanciou dos combustíveis fósseis, longe de causar impacto
econômico negativo, contribuiu para o crescimento econômico do país. De 1990
para 2015, o Produto Interno Bruto (PIB) do país avançou 69%, enquanto as emissões
de carbono reduziram 25%, colocando o país na condição de líder mundial da
descarbonização da economia.
Mesmo com esse excelente desempenho no
aproveitamento econômico dos recursos, a Suécia quer avançar ainda mais na
busca pela minimização do impacto ambiental. O país que aterra menos de 1% dos
seus resíduos e aproveita todo o restante, quer incrementar ainda mais o uso
dos seus resíduos por meio da economia circular que visa estender o ciclo de
vida dos materiais. Um grande exemplo está na cidade de Helsingborg, onde
várias empresas se reúnem de forma colaborativa no projeto "Vera
Park".
Com tantas cadeias industriais precisando de
resíduos como matéria-prima ou combustíveis para as suas atividades, o país
recebe lixo de fora. Não se trata de uma importação no sentido estrito da
palavra já que o serviço de tratamento de resíduos é remunerado e o país ganha
duas vezes: recebendo pagamento pelo tratamento dos resíduos e os usando como
combustível ou matéria-prima para reciclagem.
O Brasil também poderia aproveitar o potencial
energético e material do que atualmente quer apenas se livrar. Com o
aproveitamento de resíduos teria acesso a uma energia firme, que substitui as
fontes fósseis como as termelétricas que têm feito o país regredir no que tange
à descarbonização da economia. De 2001 para cá, a capacidade termelétrica a
combustível fóssil mais do que dobrou, colocando o país na contramão da
história. O aproveitamento do lixo pode ajudar a colocar o Brasil nos trilhos
novamente.
Marco Tsuyama Cardoso é pesquisador do Instituto
de Energia em Ambiente da USP, especialista em Regulação na Agência Reguladora
de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (Arsesp) e ex-secretário
executivo do Fórum Capixaba de Mudanças Climáticas. Passou seis meses na
Universidade de Lund em pesquisa sobre aproveitamento energético de resíduos
sólidos.
@petróleo
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