quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Energia: Lixo contra fóssil (Marco Tsuyama Cardoso, Valor Econômico)



Quinta-feira, 14 de dezembro de 2017


Valor Econômico | Opinião

Marco Cardoso: Lixo contra fóssil

Até a década de 1970, a Suécia usava basicamente petróleo para satisfazer as suas necessidades energéticas. Cerca de 80% de toda a energia gerada no país tinha como fonte primária o hidrocarboneto. O óleo e seus derivados eram os combustíveis essenciais para abastecer de aquecimento, transporte e eletricidade o país nórdico. Sem nenhuma reserva de "ouro negro" no seu território e tendo de importar o combustível, o país sentiu fortemente as duas crises de petróleo da década e começou uma alteração da sua matriz energética sem precedentes. Para tanto, contou também com o potencial energético de uma fonte muito desprezada aqui no Brasil: o lixo.

Antes disso, os municípios suecos já vinham implantando um sistema de aquecimento centralizado que reduzia o consumo e o impacto ambiental das caldeiras e lareiras individuais. Também já usavam digestores anaeróbicos para reduzir o volume (e o custo do transporte) do lodo residual de estações de tratamento de esgotos. Inicialmente, porém, os sistemas de aquecimento (District Heating) funcionaram à base de petróleo e os digestores anaeróbicos apenas eliminavam, por meio de queima, o biogás gerado no processo.

Essa condição perdurou até as crises da década de 1970 que aumentaram significativamente os preços do petróleo nos mercados internacionais. Na ocasião, ficou evidente a importância de se buscar combustíveis alternativos como o biogás antes desperdiçado.

A mesma década também viu se aprofundar a discussão sobre os resíduos sólidos urbanos, cada vez mais volumosos e com destinação final cada vez mais difícil. Com isso, o país enxergou no lixo parte da energia que antes obtinha do petróleo. Usinas que aproveitavam o poder calorífico dos resíduos começaram se tornar uma opção.

Na metade da década de 1980 surgiram questionamentos com relação à emissão de dioxinas e furanos por essas usinas. Em 1985, foram suspensas as construções de novas unidades, enquanto uma comissão ficou de estudar a questão. Em 1986, a comissão concluiu que a forma de tratamento era adequada e o governo decidiu apenas apertar um pouco mais os limites de emissão, voltando a liberar novas plantas de recuperação energética de resíduos.

Em 1991, tanto as plantas de recuperação por incineração quanto os esforços na indústria de biogás ganharam novos impulsos, quando o país aproveitou uma ampla reforma tributária para instituir o imposto sobre carbono - já para atender uma ainda incipiente preocupação mundial com as mudanças climáticas. Com isso, os combustíveis alternativos ficavam mais atrativos, especialmente os resíduos que tinham um preço negativo, já que as empresas recebiam pelo tratamento em vez de pagar pelo combustível.

Em 2000, o imposto sobre aterramento também contribuiu, mas foi em 2002, com a proibição de aterramento de resíduos combustíveis, e em 2005, com a proibição de aterramento de resíduos orgânicos que as plantas de recuperação energética e de digestão anaeróbica de resíduos orgânicos se espalharam por todo o país.

A Suécia, líder mundial em descarbonização da economia, aterra menos de 1% dos seus resíduos, e aproveita todo o restante, quer aumentar ainda mais sua utilização por meio da economia circular, que visa estender o ciclo de vida dos materiais

Hoje a grande maioria das cidades suecas tem um sistema de aquecimento central que também gera eletricidade (quase 9% da eletricidade do país), utilizando resíduos sólidos na base. Os demais combustíveis, que são comprados, entram conforme a demanda aumenta. Aqueles combustíveis que ainda por cima têm impostos mais altos (petróleo), só entram em casos extremos. Além de fornecer calor e eletricidade, muitas plantas também oferecem refrigeração para indústrias, hospitais e comércio.

Igualmente, a grande maioria das cidades possui uma frota de ônibus que se utilizam de biometano (biogás purificado) oriundo dos resíduos de estações de tratamento de esgotos e dos restos alimentares e resíduos orgânicos de indústrias que foram proibidos de serem aterrados em 2005.

Mas o melhor de tudo é que essa transformação energética que os distanciou dos combustíveis fósseis, longe de causar impacto econômico negativo, contribuiu para o crescimento econômico do país. De 1990 para 2015, o Produto Interno Bruto (PIB) do país avançou 69%, enquanto as emissões de carbono reduziram 25%, colocando o país na condição de líder mundial da descarbonização da economia.

Mesmo com esse excelente desempenho no aproveitamento econômico dos recursos, a Suécia quer avançar ainda mais na busca pela minimização do impacto ambiental. O país que aterra menos de 1% dos seus resíduos e aproveita todo o restante, quer incrementar ainda mais o uso dos seus resíduos por meio da economia circular que visa estender o ciclo de vida dos materiais. Um grande exemplo está na cidade de Helsingborg, onde várias empresas se reúnem de forma colaborativa no projeto "Vera Park".

Com tantas cadeias industriais precisando de resíduos como matéria-prima ou combustíveis para as suas atividades, o país recebe lixo de fora. Não se trata de uma importação no sentido estrito da palavra já que o serviço de tratamento de resíduos é remunerado e o país ganha duas vezes: recebendo pagamento pelo tratamento dos resíduos e os usando como combustível ou matéria-prima para reciclagem.

O Brasil também poderia aproveitar o potencial energético e material do que atualmente quer apenas se livrar. Com o aproveitamento de resíduos teria acesso a uma energia firme, que substitui as fontes fósseis como as termelétricas que têm feito o país regredir no que tange à descarbonização da economia. De 2001 para cá, a capacidade termelétrica a combustível fóssil mais do que dobrou, colocando o país na contramão da história. O aproveitamento do lixo pode ajudar a colocar o Brasil nos trilhos novamente.

Marco Tsuyama Cardoso é pesquisador do Instituto de Energia em Ambiente da USP, especialista em Regulação na Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (Arsesp) e ex-secretário executivo do Fórum Capixaba de Mudanças Climáticas. Passou seis meses na Universidade de Lund em pesquisa sobre aproveitamento energético de resíduos sólidos.


@petróleo

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