Antropóloga escreve biografia do escritor carioca em
um momento de retomada do gênero na academia
CHRISTINA QUEIROZ | FAPESP ED. 260 | OUTUBRO 2017
Caricatura feita por Hugo Pires, em 1919
Ancorada no campo de estudos sobre o período
pós-Abolição, a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz biografou Lima Barreto
(1881-1922) a partir de um olhar permeado pelas questões raciais. O livro
Triste visionário (Companhia das Letras) mostra como foi a vida de um
intelectual negro após a Abolição oficial da escravidão, em maio de 1888, e
traz à luz o modo como o autor utilizava a cor da pele como marcador de
diferença social em seus personagens. “Barreto se afirmava como intelectual
negro, algo incomum à época, e procurava se integrar na cena literária
brasileira a partir de uma postura de oposição”, afirma a pesquisadora, que
trabalha com a questão racial há mais de 30 anos e é docente da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e
professora visitante na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos.
Na biografia, Lilia procura mostrar como Barreto
reafirmava sua origem afrodescendente por meio da literatura, construindo
protagonistas negros que iam além dos estereótipos. Esses personagens eram
descritos com seus diferentes tons de pele: “pardos”, “pardas”, “pardos
claros”, “escuros”, “morenos”, “morenas”, “caboclos”, “caboclas”, “azeitonados”
e “morenos pálidos” foram algumas denominações utilizadas pelo escritor para
mostrar a complexidade do universo que queria representar. Lilia comenta que o
uso da cor como marcador de diferença social aparece, por exemplo, no romance
Clara dos Anjos (escrito em 1922 e publicado em 1948), quando o autor descreve
um dos seus personagens como “branco na linguagem dos subúrbios, mas negro
quando vai para a capital”. Segundo a pesquisadora, a descrição minuciosa das
características dos personagens afrodescendentes e do ambiente dos subúrbios
cariocas destoava da literatura produzida por outros escritores da época.
Aos 7 anos, o escritor estava com o pai diante do Paço
Imperial quando a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, em 1888, na presença de
uma multidão
Lilia lembra que o autor nasceu em 1881, ano de
lançamento em livro de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e
morreu em 1922, ano da Semana de Arte Moderna. Com isso, permaneceu no meio do
caminho entre Machado de Assis e o Modernismo, em uma espécie de vácuo
literário. De acordo com ela, Barreto não deve ser considerado
“pré-modernista”, rótulo que contesta por acreditar que representa uma espécie
de “não lugar”. “Mais do que pré-modernista, o escritor deve ser visto como
pioneiro do Modernismo, entre outros elementos pela oralidade presente nos seus
textos”, defende.
Lilia também procura evidenciar os paradoxos que
permeiam a trajetória do escritor. Nesse sentido, reforça que Barreto
reconhecia a importância da obra de Machado de Assis, embora criticasse seu
projeto institucional e o de outros literatos da Academia Brasileira de Letras.
Apesar disso, ele tentou entrar na instituição por três vezes, sem sucesso.
“Barreto queria fazer parte dos circuitos literários por meio de uma postura
contestatória, mas não foi bem-sucedido”, conta. Outros paradoxos que envolvem
a figura do escritor e que Lilia evidencia em seu trabalho biográfico são as
denúncias que Barreto fazia em relação aos abusos da sociedade contra as
mulheres e, ao mesmo tempo, suas acusações de que o feminismo era uma
“importação barata e fora do lugar”. “Ele defendia os hábitos populares, mas
não gostava de futebol, samba e Carnaval. Detestava os funcionários públicos,
mas tirava seu ganha-pão na Secretaria da Guerra como amanuense
[escriturário]”, escreve Lilia na introdução. Assim, ela sustenta a ideia de
que Barreto ocupava uma posição ambivalente tanto no espaço da cidade,
transitando entre os subúrbios e a capital, como também em esferas culturais e
sociais. A pesquisadora levou a ambiguidade que circunda a vida e a obra do
escritor ao próprio título da biografia. “Triste” representaria a ideia de um
escritor desiludido, mas também teimoso. Já “visionário” pode ser alguém com
visão de futuro, mas na fala de um dos personagens de Barreto ganha, também, o
sentido de “louco”.
© DIVULGAÇÃO COMPANHIA DAS LETRAS
Os pais de Barreto, João Henriques e Amália Augusta,
eram filhos de escravos
Um dos aspectos abordados pela pesquisadora envolve o
trânsito do escritor entre a realidade e a literatura. “Os textos do autor
contêm traços evidentes do seu entorno, mas mesmo assim ele ficcionaliza todo o
tempo”, considera. Lilia dá como exemplo desse processo quando Barreto assina
uma das partes do Diário do hospício (1953, póstumo) – que retrata o período em
que o autor ficou internado – com o nome de um de seus personagens (Vicente
Mascarenhas), ou quando em Cemitério dos vivos (1953, póstumo), obra de caráter
ficcional, escreve “Lima Barreto” para se referir ao personagem Vicente
Mascarenhas.
Felipe Botelho Corrêa, professor de literaturas e
culturas do Brasil, de Portugal e da África lusófona na universidade King’s
College de Londres, lembra que a fortuna crítica de Barreto já tinha notado
como ele se valia de aspectos de sua vida para escrever. “O autor dizia que não
se escondia em sua literatura, que sempre mostrava quem realmente era, mesmo
que isso fosse visto como um rebaixamento literário”, conta Botelho. Segundo
ele, Barreto procurava utilizar uma linguagem popular e acessível, como forma
de atingir um maior número de leitores, o que não era bem-visto na época. Daí
as inúmeras críticas que ele recebeu por escrever uma literatura “mal-acabada”.
“Outra prova disso são os textos que ele escreveu para meios populares, como a
revista Careta, lugar em que ele mais publicou durante a vida e que custava o
preço de uma passagem de bonde de segunda classe”, avalia Botelho, que em 2016
publicou Sátiras e outras subversões (Penguin-Companhia das Letras) com 164
textos até então inéditos e que em sua grande maioria foram assinados por
pseudônimos de Lima Barreto.
© DIVULGAÇÃO COMPANHIA DAS LETRAS
Notícia de A Noite sobre livro que Barreto estava
escrevendo acompanhada de ilustrações dos personagens que aparecem no romance
Antes do livro de Lilia, Lima Barreto já contava com
uma biografia importante, publicada pelo historiador Francisco de Assis Barbosa
(1914-1991) em 1952. Barbosa foi responsável por editar as obras de Lima
Barreto em 17 volumes, em um momento em que os livros do autor tinham
praticamente desaparecido do mercado. O trabalho do historiador marcou um
processo de renascimento do autor carioca na cena literária. Ele foi precursor
de uma geração que tirou Lima Barreto do limbo e o reposicionou na literatura
nacional.
Beatriz Resende, docente da Faculdade de Letras da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), conta que o historiador Nicolau
Sevcenko (1952-2014) e Antônio Arnoni Prado, professor aposentado do Instituto
de Estudos da Linguagem na Universidade Estadual de Campinas (IEL-Unicamp),
foram os primeiros a estudar a obra de Lima Barreto no Brasil após os trabalhos
de Barbosa. Na Itália, Roberto Vecchi, hoje diretor do Departamento de Línguas,
Literatura e Cultura Moderna da Universidade de Bolonha, foi outro pioneiro no
processo de formação da fortuna crítica de Barreto. Em 2004, quando Beatriz
preparava a publicação de livros contendo as crônicas do escritor, pesquisou
registros de entrada dele no hospício em 1919, encontrando a hoje conhecida
foto de Barreto totalmente debilitado aos 39 anos. “Esse evento trouxe à tona o
aspecto da vida dele relacionado ao alcoolismo”, conta a pesquisadora.
Segundo Beatriz, quando Barreto morreu, era uma
referência entre escritores nacionais, mas foi sendo esquecido na medida em que
o racismo se apropriou do discurso científico, em um momento que marcou a
exclusão dos negros do meio intelectual. Ela explica que uma das qualidades da
biografia escrita por Barbosa é que o historiador teve acesso a familiares e
amigos ainda vivos. No entanto, o biógrafo não abordou a questão do racismo,
porque não queria se desviar do seu objetivo, que era chamar a atenção para a
importância da literatura dele. “Nos anos 1950, a crítica literária ainda era
depreciativa com os textos de Barreto, que circularam primeiramente entre os
historiadores”, destaca Beatriz.
Com essa fortuna crítica no horizonte, Lilia conta que
procurou desenvolver a biografia atual a partir da elaboração de novas
perguntas, agora relacionadas à questão racial e que não haviam sido abordadas
por Barbosa no trabalho precedente. “Deparei-me com ele [Lima Barreto] há pelo
menos 30 anos, quando realizei minha tese de doutorado e estudei o darwinismo
racial”, relata a pesquisadora. Lilia afirma que pretende mostrá-lo como um
intérprete de seu tempo, tanto do Brasil como das questões negras. De acordo
com ela, a questão racial ganhou vulto nos últimos anos e permite explorar com
um novo olhar a vida e a obra do escritor. “Nos seus romances, nas crônicas,
nos contos, nos diários e na correspondência, Barreto jamais deixou de tocar
nesse tema”, argumenta.
© DIVULGAÇÃO COMPANHIA DAS LETRAS
Retrato de 1914 da ficha de internação no Hospício de
Alienados, onde fez tratamento para o alcoolismo
O historiador João José Reis, professor no
Departamento de História da Universidade Federal da Bahia (UFBA), lembra que
Barreto nasceu na última década de vigência da escravidão, cuja abolição
testemunhou aos 7 anos de idade. “Ele sofreu o racismo de uma sociedade que
cultivava a ideia de que o negro pertencia a uma raça inferior. Tinha a
consciência aguda de que a explicação para grande parte de seus infortúnios
teria de buscar numa compreensão mais profunda do que havia sido a escravidão”,
comenta. Reis considera que a biografia de Lilia retrata, por meio da
trajetória de um personagem, a história da passagem da escravidão para uma
liberdade incompleta e amiúde sequestrada dos negros. “Ao discutir o contexto
de Barreto, o livro esclarece não apenas a biografia de um indivíduo, mas a de
um país no fim da escravidão e, sobretudo, no pós-Abolição”, observa.
A nova biografia de Lima Barreto chega em um momento
de retomada do gênero biográfico entre pesquisadores acadêmicos de diversas
áreas. Em relação ao contexto histórico, Eneida Maria de Souza, professora de
teoria literária na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), esclarece que,
há 40 anos, a crítica não se detinha em explorar o lado biográfico dos autores,
por considerar a obra de arte autônoma em relação às outras disciplinas e à
vida dos escritores. No entanto, entre os anos 1970 e 1980, emergiu uma nova vertente
de crítica cultural, que procura entender a obra a partir de um leque mais
amplo de associações, que envolvem a vida do autor e também suas relações com
outras produções, como o cinema. Segundo Eneida, essas leituras interpretam a
literatura para além dos seus limites intrínsecos e, nesse caminho, a
experiência de vida do escritor se integra aos seus textos como representação
do vivido e não como reflexo direto e literal dos fatos. Nos anos 1980 essa
nova vertente da crítica marcou o início de um processo de retomada do gênero
biográfico, movimento que, hoje, parece ter atingido seu ponto alto. “Como
regra geral, biografias feitas por jornalistas costumam se preocupar mais em
documentar a trajetória, enquanto pesquisadores acadêmicos tendem a pensar o
percurso biográfico desde um ponto de vista fragmentado e a partir de um
problema”, compara Eneida.
© AYMORÉ MARELLA / REPRODUÇÃO DO LIVRO O VELHO GRAÇA
(BOITEMPO)
Última foto de Graciliano Ramos: biografia do autor
escrita por Dênis de Moraes foi relançada em 2012, após 20 anos
Em 1980 Roland Barthes (1915-1980) publicou A câmara
clara, criando o conceito de “biografema”, segundo o qual as trajetórias de
vida só podem ser recompostas por meio de detalhes, fragmentos e gestos, que
são enfocados conforme a relação que estabelecem com a subjetividade do
biógrafo. Conforme essa concepção, o gênero biográfico deve ser entendido como
capaz de espelhar uma realidade a respeito de um sujeito, mas sem a ambição de
oferecer a verdade sobre ele.
O trabalho do biógrafo é montar os cacos de um
quebra-cabeça existencial. Quanto mais cacos puderem ser montados, mais a
biografia se aproximará de uma certa verdade”, opina Dênis de Moraes, professor
associado no Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal
Fluminense (UFF), que escreveu as biografias de Graciliano Ramos, Henfil e
Oduvaldo Vianna. Apesar de identificar que 90% das biografias feitas no Brasil
foram produzidas por jornalistas, Moraes reconhece que o gênero adquire cada
vez mais importância em áreas como história e literatura, passando a ser visto
como capaz de iluminar uma época ou os problemas desse tempo. “Nesse movimento,
elementos do jornalismo, entre eles o uso de fontes orais e uma linguagem menos
rebuscada, também passaram a ser usados nos trabalhos de historiadores e
sociólogos que fazem biografias”, avalia. Além de Moraes, Maria Augusta
Fonseca, professora no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada
na USP, e o filósofo Eduardo Jardim, que foi pesquisador residente na
Biblioteca Nacional, são apenas alguns acadêmicos que se valeram do gênero
biográfico para abordar o percurso de literatos, tendo escrito,
respectivamente, biografias de Oswald de Andrade (1990) e Mário de Andrade
(2015).
Livros
SCHWARCZ, L. M. Lima Barreto: Triste visionário. São
Paulo: Companhia das Letras, 2017, 645 p.
SOUZA, E. M. Crítica cult. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2002, 178 p.
http://revistapesquisa.fapesp.br/2017/10/25/lima-barreto-como-interprete-do-brasil-pos-abolicao/?cat=humanidades
@história @Brasil
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