JB -28/02
Falavam sempre da síndrome do ninho vazio e me parecia tão distante.
Até o dia em que minha filha mais velha me anunciou que havia aceitado
um trabalho em São Paulo e se mudaria no mês seguinte. Era um Dia das
Mães e almoçávamos em família. Foi duro terminar o almoço sem chorar.
Quando fiquei sozinha, à noite, chorava perplexa. Para mim, ela era
apenas uma menina. E neste dia me dei conta de que era uma mulher de 25
anos.
A essa partida sucederam-se outras, com excessiva rapidez.
E um dia meu marido e eu nos olhamos e estávamos sozinhos. A casa havia
ficado enorme e silenciosa. A ordem reinava por toda parte. Meu Deus,
parecia ontem quando nossa cama era um campo de futebol e de jogo de
almofadas, com os três rindo e impedindo-nos de dormir. Agora podíamos
dormir cedo e acordar tarde. Não mais de madrugada para levar algum no
colégio ou para evitar que outro perdesse a hora e o ônibus. Mas a
saudade era imensa e cavava um vazio difícil de ser preenchido.
O
ninho estava vazio. E assim ficou por muito tempo. Ocupamos o espaço
com livros e amigos que às vezes vinham se hospedar. Nossos filhos nos
visitavam e criticavam tudo ou quase tudo: como ainda não mudaram essa
decoração? Mas outra vez esse mesmo prato? Etc. etc. Em casa deles era
diferente. Nós víamos quando os visitávamos.
Depois foram se
casando e formando as próprias famílias. E chegaram os netos. Creio
que nunca desejei tanto algo na vida como ter netos. Ansiava por bebês
que pudéssemos segurar no colo, alimentar, beijar, dar banho. Foram
vindo um, dois, três, quatro, cinco. A forma de criar filhos hoje é bem
diferente da nossa época. Há horários e regras para tudo e ai de quem
cometer a menor infração.
Várias vezes fui admoestada por entrar
de sapatos no quarto de um dos netos, pegá-lo no colo fora de hora. Mas
eles e elas também foram crescendo. E foi nascendo uma linda
cumplicidade entre avós e netos. Não há nada mais próximo de um idoso
do que uma criança. A inocência de um entra em total harmonia com a
segunda inocência do outro. A criatividade livre para desafiar o tempo e
a imaginação flui, bela e empolgante. Os avós passaram a ser aquele
terreno da absoluta liberdade onde todos os desejos são realizados.
Quero
chocolate. Mamãe não deixa, mas vovó sim. Quero ver TV e dormir
tarde. Claro, meu amor. E a vovó começou a se interessar por desenhos
animados, personagens que não existiam em sua infância, mas que povoam o
imaginário infantil agora. Passou a aprender a mexer em iphones, ipads
e notebooks com a assessoria dos netos que se espantam muito pelo fato
de ela não saber fazer operações que para eles são tão simples no mundo
da eletrônica e da cibernética.
Quando eles chegam – ou melhor,
quando os pais deixam que venham à nossa casa – tudo revira de pernas
para o ar. A casa silenciosa, habitada por um casal idoso, se enche de
barulho, as almofadas rolam pelo chão. De madrugada ouvem-se passinhos e
um ou outro ou todos vêm nos visitar na cama. E reedita-se o jogo de
almofadas da infância dos filhos.
No dia seguinte, as olheiras
sulcam os olhos – deles e nossos – e há que ouvir a bronca da mãe e do
pai, que haviam dito para não dormirem tarde etc. E os avós levam
bronca também, sorrindo e piscando para os netos em silenciosa e
consciente parceria. As roupas estão jogadas por toda parte e os sapatos
atirados pelos quatro cantos. Há que recolhê-los e arrumá-los. E que
imensa ternura enche o coração ao fazê-lo e ver em cada sapato o pezinho
que o calça. Pezinhos que terminam o dia imundos, devendo urgentemente
ser limpos num banho longo e que espalha água pelo banheiro inteiro.
Depois
eles se vão. E o ninho fica novamente vazio e em absoluta desordem.
Mas por toda parte se respira o amor que não se pode controlar e manter
sob chave. A passagem dos pequenos furacões trouxe novamente a vida, com
suas surpresas e seus sustos. Com seu movimento, enfim. É hora de
relembrar as conversas, de comentá-las em conjunto para amansar as
saudades.
Até a próxima visita, o próximo encontro, a vida vai
seguir seu ritmo. Mas não mais monótona ou vazia. O dom da família,
das crianças que hoje ocupam o espaço amoroso que um dia os filhos
pequenos ocuparam soprará ar puro nos pulmões dos avós. Dá gosto sentir
que a passagem dos pequenos pela vida às vezes monótona dos grandes é
como o sopro do Espírito, que não se sabe de onde vem, nem para onde
vai. Só se sabe que é o que permite viver e respirar fazendo a vida
merecer o nome que tem: vida.
Do Espírito que sopra onde quer e
subverte a ordem jorram muitos dons, mas sobretudo um que sela os
encontros entre avós e netos pequenos: a alegria. Rir, rir e rir das
coisas que dizem e fazem; ouvi-los rir das coisas que os avós dizem;
gargalhar juntos sem censura e sem medo.
Nos tempos tão sombrios
que hoje vivemos, ter a bênção da proximidade e convivência com as
crianças é realmente um dom sem tamanho, uma graça infinita. Eis porque
Jesus amava tanto os pequeninos e ficava aborrecido quando queriam
impedi-lo de estar com eles. Delas sem dúvida é o Reino, com tudo que
tem de gratuito, de generoso, de belo e de bom. Elas falam de futuro e
de esperança, e fazem crescer o desejo de construir um mundo um pouco
melhor, um pouco mais parecido com o sonho de Jesus e de seu Pai.
* professora
do Departamento de Teologia da PUC-Rio, decana do Centro de Teologia e
Ciências Humanas da PUC-Rio. A teóloga é autora Testemunho: profecia,
política e sabedoria, Editora PUC-Rio e Reflexão Editorial.
http://www.jb.com.br/artigo/noticias/2018/02/28/a-desordem-que-o-amor-faz/
@filosofia @prosa
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