Ninguém questiona o emprego das Forças Armadas no controle das fronteiras, do mar costeiro e do espaço aéreo, atividade que no Brasil tem de ser, parcial ou totalmente, da alçada militar. Tampouco na segurança de áreas críticas, em eventos do tipo Olimpíada e na solução de problema operacional além da capacidade da polícia. À margem do adjetivo “armadas”, também na defesa civil em catástrofes. O que este artigo comenta é o uso das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, na segurança pública – no controle da ordem em favelas do Rio de Janeiro por meses, na inspeção de viaturas em estradas, e por aí vai –, atividades rotineiras tipicamente da alçada policial.
O emprego frequente das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, embora constitucional, é um desvio da função militar básica. Tende a estimular a ideia de que em país como o Brasil, pacifista e não pressionado por problemas de defesa nacional – sem envolvimento protagônico em guerra há 150 anos (Guerra do Paraguai) –, é exatamente esse desvio de função o papel de destaque hoje no rol das atribuições das Forças. Esse tropeço cultural e o sufoco fiscal que cerceia o cumprimento dos encargos da União sugerem naturalmente as perguntas: se não temos ameaça clássica, efetiva ou ao menos verossímil, que possa exigir o emprego das Forças Armadas, por que empenhar recursos escassos em submarinos, aviões e carros de combato modernos, na defesa antiaérea...? Se o nosso problema é a criminalidade, a violência e a desordem epidêmicas, por que não direcioná-los para o preparo coerente com ele, de custo muito menor, até mesmo apoiando os Estados, em crise fiscal tão ou mais grave do que a federal, no preparo e modernização de suas polícias?
Compreensível no povo, o desvario também acontece em setores bem informados e da mídia, por convicção equivocada, mas sincera, ou porque ainda vivem o rescaldo do período autoritário – um contrassenso, já que os militares dedicados à a defesa nacional foram menos envolvidos na heterodoxia daquele período. No mundo político, as opiniões se estendem dos que veem a atuação militar na garantia da lei e da ordem como aviltamento da Federação aos que veem com simpatia a assunção de responsabilidade estadual pelo governo federal.
Não se pode menoscabar a garantia da lei e da ordem, mas enfatizá-la acima da defesa nacional é desafiar irresponsavelmente o futuro: a dinâmica da História não assegura perpetuidade à segurança sentida hoje, muito menos num mundo integrado e de interdependência crescente, com suas atribulações e conflitos de toda ordem; e Forças Armadas modernas não se constroem de um dia para o outro, seu preparo é caro, convindo estendê-lo criteriosamente no tempo. Já se foi a época em que se organizava rapidamente um Exército via mobilização e treinamento dos recrutas para o uso de armas e táticas simples.
Não há como fugir dessa realidade: nossa condução política, aquém dos desafios brasileiros (razão maior do déficit social), e nosso paradigma cultural propenso à tolerância trouxeram o Brasil ao cenário de insegurança pública dramático, que exige atuação militarpolicial expressiva e frequente na garantia da lei e da ordem. Essa atuação constitucional é heterodoxa sob a perspectiva da finalidade básica clássica das Forças Armadas e seria desnecessária se os governos estaduais tivessem preparado corretamente seus sistemas policiais – preparo material e humano, profissional e ético. A necessidade da cirurgia federal, paliativo transitório, vai continuar se repetindo enquanto persistir a fragilidade do quadro estadual.
Sem a concomitante redução de nosso dramático déficit social, o sucesso das interveniências milibares na garantia da lei e da ordem tende a ficar (tem ficado) abaixo do propalado pelo otimismo publicitário. Consequência natural: corremos o risco de queda na já cética simpatia do povo pela presença militar no seu cotidiano e de comprometimento da credibilidade das Forças Armadas – risco tanto maior quanto maior for a dimensão da intervenção. Pior ainda se em conflitos entre delinquentes e forças federais “balas perdidas” vierem a matar inocentes: elas serão imediatamente atribuídas aos militares-policiais, como vêm comumente sendo aos policiais-miltares. Esse risco existe hoje no Rio de Janeiro, onde a insegurança pública chegou ao nível apocalíptico e a intervenção vem sendo enaltecida como redentora. Ela trará com certeza algum alívio, mas será um alívio parcial e provavelmente transitório, que só terá continuidade se o Estado exercer com competência sua responsabilidade – e os municípios, no tocante às suas, basicamente sociais.
Enfim e resumindo: no Brasil de propensão cultural pacifista e hoje tumultuado por graves problemas internos de criminalidade, violência e desordem, aumenta no povo a indiferença (já grande) pela defesa nacional e a ideia da desimportância das Forças Armadas, ao menos para essa finalidade. Bastarnos-ia uma Marinha, um Exército e uma Aeronáutica com as feições de uma guarda costeira, uma guarda nacional (ou força nacional de segurança) e uma guarda nacional aérea, preparadas para as atribuições inerentes a essas instituições e para apoiar os sistemas policiais na segurança pública!
Essa cultura de indiferença pela defesa fragiliza o País no futuro incerto, na sua inserção na ordem internacional. Convém conter a presença militar na garantia da lei e da ordem nos limites da imprescindibilidade temporária. E para que a imprescindibilidade temporária não continue frequente é preciso – além de medidas sociais, fora do foco deste artigo – que os Estados preparem seus sistemas policiais em coerência com a realidade.
Federação é o modelo adequado ao Brasil, grande, complexo e heterogêneo, desde que praticada com competência e responsabilidade.
Se Estados preparassem suas polícias, ação dos militares na segurança não seria necessária
MARIO CESAR FLORES ALMIRANTE
@Brasil @política
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