O advento do
paradigma digital tem suscitado um intenso debate. Concretizado nas noções de
Manufatura Avançada ou de Indústria 4.0, no que se refere à indústria o
paradigma engloba novos métodos de produção mediante os quais são promovidas a
integração entre o real e o virtual por meio de sistemas ciberfísicos, a
automação por meio de soluções de comunicação Máquina-Máquina e a interconexão
ativa entre sistemas de gestão e rotinas de aprendizado que propicia a tomada
de decisão sem intervenção humana, dentre outras aplicações. Adiante, são
apresentadas quatro reflexões sobre as implicações desse novo paradigma sobre o
futuro da indústria.
A primeira reflexão é sobre, afinal, qual é a essência dessa nova onda digital. A rigor, o que se está vivenciando é mais uma ramificação da trajetória de evolução das tecnologias de informação e comunicação (TICs). Essa trajetória começou com o uso pontual de recursos computacionais, por exemplo, na contabilidade ou na gestão de estoques nos sistemas de produção rígida, ditos fordistas, que tiveram seu auge nos anos 1960 e 1970.
Sobreveio então uma segunda geração digital, a exemplo do CAD-CAM, que forneceu a base técnica da produção flexível (toyotismo ou enxuta) dominante nos anos 1980, na qual o uso das TICs se disseminou por todas as atividades empresariais, mas ainda sem integração ou com integração apenas parcial entre si. Em seguida, com a explosão da indústria de software nos anos 1990, a disponibilidade de pacotes de informática extremamente poderosos deu lugar uma nova ramificação caracterizada pela integração em tempo real de todos os sistemas de produção e gestão empresariais.
Transformação digital penalizará empresas acomodadas, que não poderão recorrer mais a soluções imitativas
A atual geração digital é a da "produção conectada e inteligente". Envolve acompanhamento em tempo real de logística de fornecedores por meio de serviços Web; desenvolvimento de produtos com uso de modelagem virtual, monitoramento online do ciclo de vida de clientes etc. Assim como as ramificações anteriores, representa uma descontinuidade. Trata-se do uso de redes de comunicação, internet, computação em nuvem (Conexão) para transmitir e processar grandes massas de dados (Inteligência). Assim, se essa reflexão faz sentido, está-se diante de algo realmente novo, que não pode ser alcançado pela simples extensão ou intensificação da onda anterior.
A segunda reflexão é por que o paradigma digital deve ser considerado disruptivo? Certamente, não é por ser baseado em inovações radicais. Ao contrário, o paradigma digital está sendo portado pela emergência de uma miríade de inovações incrementais em pipeline, recém-introduzidas ou já em difusão. O paradigma digital é disruptivo porque a convergência dessas tecnologias leva a novidades que transformam as transações de mercado, redefinem relações de trabalho, contestam empresas líderes, abrem espaços para empresas entrantes, quer dizer, reestruturam os sistemas produtivos.
É, portanto, um fenômeno econômico-social mais do que científico-tecnológico. Por isso, dependendo do ponto de vista, inovações disruptivas são ameaças para empresas consolidadas e oportunidades para entrantes. Se essa segunda reflexão faz sentido, a questão central é de que lado a empresa quer - ou pode - se posicionar.
A terceira reflexão diz respeito à temporalidade da difusão do paradigma digital, isto é, quando o processo terá atingido um ponto limite a partir do qual as empresas que se mantiverem alijadas correrão risco de eliminação. Os estudos no âmbito do projeto Indústria 2027, realizado sob coordenação dos Institutos de Economia da UFRJ e da Unicamp para o IEL/CNI, sugerem que boa parte dos impactos disruptivos ainda estão por vir. No horizonte de dez anos à frente enfocado pela pesquisa são poucos os setores da indústria em que aplicações das novas tecnologias digitais já são hoje efetivamente revolucionárias.
À exceção de alguns casos, como, por exemplo, o uso de inteligência artificial na indústria de bens de capital, cujos impactos já são disruptivos hoje, na maior parte das atividades industriais as transformações deverão se manifestar mais fortemente apenas a partir da segunda metade da próxima década. Se a reflexão é válida, significa que há tempo para experimentação e seleção de estratégias eficazes de entrada no paradigma digital, fato certamente positivo ao menos para as empresas que planejam.
A implicação negativa relaciona-se à quarta reflexão. A entrada no paradigma digital está longe de ser trivial porque requer ajustes simultâneos na manufatura, na organização da produção e na gestão do negócio. Isso exige arquiteturas empresariais muito bem estruturadas, ações transversais coerentes envolvendo todas as áreas da empresa e planos de ação claros e de execução muito bem sincronizada.
São, portanto, ajustes muito específicos de cada empresa. Quer dizer, ao menos por enquanto não há "receita de bolo" para guiar as empresas nesse percurso. Se essa reflexão é correta, aqui reside o maior problema para a indústria brasileira. O estudo acima mencionado também revelou que a maioria das empresas brasileiras está em estágio muito inicial de adoção das tecnologias mais avançadas. E pior, não estão praticando qualquer ação visando progredir nessa direção.
Em síntese: a indústria brasileira está desafiada a um grande esforço de modernização tecnológica. Atitudes empresariais defensivas dificilmente serão bem-sucedidas. Porém, há tempo para planejar e construir estratégias. Mas é necessário começar imediatamente. Os aspectos idiossincráticos da transformação digital penalizarão as empresas acomodadas pois dessa vez não poderão pura e simplesmente recorrer a soluções imitativas como em outros momentos do passado.
David Kupfer é diretor do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador do Grupo de Indústria e Competitividade (GIC-IE/UFRJ). Escreve mensalmente às segundas-feiras. E-mail: gic@ie.ufrj.br. As opiniões aqui expressas são do autor e não da instituição.
A primeira reflexão é sobre, afinal, qual é a essência dessa nova onda digital. A rigor, o que se está vivenciando é mais uma ramificação da trajetória de evolução das tecnologias de informação e comunicação (TICs). Essa trajetória começou com o uso pontual de recursos computacionais, por exemplo, na contabilidade ou na gestão de estoques nos sistemas de produção rígida, ditos fordistas, que tiveram seu auge nos anos 1960 e 1970.
Sobreveio então uma segunda geração digital, a exemplo do CAD-CAM, que forneceu a base técnica da produção flexível (toyotismo ou enxuta) dominante nos anos 1980, na qual o uso das TICs se disseminou por todas as atividades empresariais, mas ainda sem integração ou com integração apenas parcial entre si. Em seguida, com a explosão da indústria de software nos anos 1990, a disponibilidade de pacotes de informática extremamente poderosos deu lugar uma nova ramificação caracterizada pela integração em tempo real de todos os sistemas de produção e gestão empresariais.
Transformação digital penalizará empresas acomodadas, que não poderão recorrer mais a soluções imitativas
A atual geração digital é a da "produção conectada e inteligente". Envolve acompanhamento em tempo real de logística de fornecedores por meio de serviços Web; desenvolvimento de produtos com uso de modelagem virtual, monitoramento online do ciclo de vida de clientes etc. Assim como as ramificações anteriores, representa uma descontinuidade. Trata-se do uso de redes de comunicação, internet, computação em nuvem (Conexão) para transmitir e processar grandes massas de dados (Inteligência). Assim, se essa reflexão faz sentido, está-se diante de algo realmente novo, que não pode ser alcançado pela simples extensão ou intensificação da onda anterior.
A segunda reflexão é por que o paradigma digital deve ser considerado disruptivo? Certamente, não é por ser baseado em inovações radicais. Ao contrário, o paradigma digital está sendo portado pela emergência de uma miríade de inovações incrementais em pipeline, recém-introduzidas ou já em difusão. O paradigma digital é disruptivo porque a convergência dessas tecnologias leva a novidades que transformam as transações de mercado, redefinem relações de trabalho, contestam empresas líderes, abrem espaços para empresas entrantes, quer dizer, reestruturam os sistemas produtivos.
É, portanto, um fenômeno econômico-social mais do que científico-tecnológico. Por isso, dependendo do ponto de vista, inovações disruptivas são ameaças para empresas consolidadas e oportunidades para entrantes. Se essa segunda reflexão faz sentido, a questão central é de que lado a empresa quer - ou pode - se posicionar.
A terceira reflexão diz respeito à temporalidade da difusão do paradigma digital, isto é, quando o processo terá atingido um ponto limite a partir do qual as empresas que se mantiverem alijadas correrão risco de eliminação. Os estudos no âmbito do projeto Indústria 2027, realizado sob coordenação dos Institutos de Economia da UFRJ e da Unicamp para o IEL/CNI, sugerem que boa parte dos impactos disruptivos ainda estão por vir. No horizonte de dez anos à frente enfocado pela pesquisa são poucos os setores da indústria em que aplicações das novas tecnologias digitais já são hoje efetivamente revolucionárias.
À exceção de alguns casos, como, por exemplo, o uso de inteligência artificial na indústria de bens de capital, cujos impactos já são disruptivos hoje, na maior parte das atividades industriais as transformações deverão se manifestar mais fortemente apenas a partir da segunda metade da próxima década. Se a reflexão é válida, significa que há tempo para experimentação e seleção de estratégias eficazes de entrada no paradigma digital, fato certamente positivo ao menos para as empresas que planejam.
A implicação negativa relaciona-se à quarta reflexão. A entrada no paradigma digital está longe de ser trivial porque requer ajustes simultâneos na manufatura, na organização da produção e na gestão do negócio. Isso exige arquiteturas empresariais muito bem estruturadas, ações transversais coerentes envolvendo todas as áreas da empresa e planos de ação claros e de execução muito bem sincronizada.
São, portanto, ajustes muito específicos de cada empresa. Quer dizer, ao menos por enquanto não há "receita de bolo" para guiar as empresas nesse percurso. Se essa reflexão é correta, aqui reside o maior problema para a indústria brasileira. O estudo acima mencionado também revelou que a maioria das empresas brasileiras está em estágio muito inicial de adoção das tecnologias mais avançadas. E pior, não estão praticando qualquer ação visando progredir nessa direção.
Em síntese: a indústria brasileira está desafiada a um grande esforço de modernização tecnológica. Atitudes empresariais defensivas dificilmente serão bem-sucedidas. Porém, há tempo para planejar e construir estratégias. Mas é necessário começar imediatamente. Os aspectos idiossincráticos da transformação digital penalizarão as empresas acomodadas pois dessa vez não poderão pura e simplesmente recorrer a soluções imitativas como em outros momentos do passado.
David Kupfer é diretor do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador do Grupo de Indústria e Competitividade (GIC-IE/UFRJ). Escreve mensalmente às segundas-feiras. E-mail: gic@ie.ufrj.br. As opiniões aqui expressas são do autor e não da instituição.
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