quinta-feira, 17 de maio de 2018

Meu encontro (e desencontro) com Marx (Fernando Cardim, Valor Econômico)


Meu encontro com Marx deu-se, de forma esporádica e fragmentada,
quando ainda era estudante de graduação em economia na USP.
Marx não era, é claro, um autor popular na FEA/USP daqueles anos. Poucos professores pareciam ter ideia de quem se tratava. Minha leitura do primeiro volume de “O Capital” foi solitária e, provavelmente, não deve ter rendido muito. Foi no mestrado na Unicamp, onde Marx era o autor dominante em meados dos anos 70, que passei a lê-lo em detalhe. Já era atraído pela economia keynesiana, que efervescia com a emergência dos pós-keynesianos.
Por isso, embora achasse muitos dos temas tratados entediantes, fui atraído pelas discussões acerca de quem chamavam, pejorativamente, de “jovem Marx”.
A teoria da alienação era aparentada, em muitos aspectos, à discussão de incerteza e tomada de decisões em Keynes. As obras do jovem Marx, complementadas por autores brilhantes como Isaac Rubin, István Mészáros (quando jovem também), dentre outros, me interessaram. O tema desses autores é a ação humana quando as relações de produção são coisificadas e você não reconhece sua produção como resultado de sua atividade.
O agente econômico age em um ambiente que lhe é estranho, mesmo tendo sido produzido por ele.
Esse é também o quadro em que o conceito de incerteza proposto por Keynes se define, isto é, um ambiente construído, mas não reconhecido pelo indivíduo. Até onde eu saiba, no entanto, essa literatura permaneceu periférica em relação ao núcleo da reflexão marxista.
Mas havia muito na literatura marxista — especialmente, coincidência ou não, a francesa — que me parecia pouco mais do que jogos vazios de palavras que os leitores deviam considerar cápsulas de grande sabedoria. Muito tempo perdido com raciocínios circulares, com o refraseamento em termos marxistas de teorias formuladas por outras escolas. Muito esforço destinado mais a provar que a teoria era praticamente invulnerável à crítica teórica ou empírica, mesmo nas suas partes mais frágeis.
Saí de Campinas já convencido de que o desencontro com Marx não demoraria a vir.
Essa separação se deu ao fim dos anos 70, início dos 80, e foi causada por fatores de atração e de repulsão. O fator de atração é óbvio para quem conhece alguma coisa do que publiquei nos últimos quase 40 anos, o trabalho com a “e s c o l a” pós- keynesiana. Os fatores de repulsão foram vários, que sintetizaria em dois grupos principais de argumentos.
O primeiro diz respeito a uma característica do marxismo que o distingue de praticamente todas as outras escolas de pensamento social: sua natureza totalizante. Você pode ser um keynesiano, um institucionalista, até um neoclássico, sem que isso influencie sua vida para além das suas convicções econômicas (e, parcialmente, políticas).
Mas ser marxista implica o compartilhamento de visão totalizante do papel
de indivíduos numa sociedade de classes. O marxismo molda sua vida e comportamento de modo que nenhuma outra teoria social o faz. Até sua escolha de amigos é influenciada pelo fato de que você acaba procurando aqueles que compartilham sua visão de mundo. Alguns se sentem confortáveis com isso, outros nem tanto. Eu me situo no segundo grupo.
Além disso, apesar de o próprio Marx não poder ser culpado por essa distorção, ser marxista, nesses termos, cria a expectativa de que você esteja disposto, quase que por definição, a estender sua simpatia a quem quer que se declare partidário da visão.
Vejo conhecidos meus defenderem, por exemplo, genocidas como Stálin ou Mao, porque se autodefiniram como marxistas, embora a leitura, mesmo rápida, de qualquer texto de sua autoria indique intenso desconhecimento da teoria social marxista. Isso se repete com relação à Venezuela, onde um grupo de militares corruptos e incompetentes, liderados por uma figura delirante como Maduro, buscam e recebem apoio político de gente que deveria saber melhor do que se trata.
Mas o principal fator de afastamento é a visão de ciência proposta por Marx, cujas consequências são problemáticas e têm impacto negativo sobre o modo como pesquisadores marxistas tratam a informação empírica.
É famosa a afirmação de Marx de que, se essência e aparência fossem a mesma coisa, a pesquisa científica seria desnecessária.
Essa afirmação revela desconhecimento do que as ciências naturais, pelo menos, efetivamente tratam. O trabalho científico não busca identificar ou explicar “essências”, por baixo ou por trás das aparências. As ciências naturais buscam identificar padrões nos dados que se observam, naquilo que aparece. É como olhar para um tabuleiro e buscar a ordem nas peças, separando aquelas que estão ali acidentalmente. A ciência moderna não olha embaixo do tabuleiro. Ela olha o que está em cima. A informação com que lida é sempre visível, e seu problema é separar o sistemático do acidental, não a essência da aparência.
Por que isso é importante? Porque enfatiza que a explicação científica do mundo deve ser buscada na informação empírica. Se a informação que se tem à disposição for insuficiente, busque-se mais. Ainda tenho na memória a ginástica intelectual que autores faziam para preservar a validade “essencial” de “leis” como a queda tendencial da taxa de lucro ou a miséria crescente dos trabalhadores ou o desaparecimento das classes médias (que Marx definia, em sentido mais restrito, como pequena burguesia) frente à evidência empírica de que nenhuma dessas “leis” realmente resistia ao exame empírico.
Algo semelhante ocorre com o conceito-chave de classes sociais. Classes sociais realmente existentes não exibem as características esperadas por Marx. O proletariado não se comporta como proletariado, por exemplo.
Proletários são tão diversos entre si quanto o são quando comparados com outras classes sociais. Isso importa quando se lida com uma teoria que, de certa forma, prevê o fim da história quando o proletariado assumir o poder.
O fato de que proletários empiricamente existentes não se comportam como espera a teoria não levou ao reexame da teoria, mas à definição de uma “e s s ê n c i a” proletária, encarnada não por proletários, mas por ativistas de classe média, organizados em partidos que, supostamente, deveriam agir como deveriam fazer os proletários, falar por eles, pensar por eles e decidir em seu lugar. Não importa se a teoria explica o mundo real, pois, caso não explique, o que é necessário fazer é adaptar a explicação para preservá-la face a qualquer inadequação empírica.
No fim, meu encontro com Marx durou relativamente pouco. Ainda leio com prazer marxistas como Hobsbawm e outros, especialmente ingleses. Raymond Williams permanece como um dos meus favoritos, que merece releituras mais ou menos frequentes. Trabalhos do próprio Marx me interessam ainda, especialmente os que tratam de problemas como a teoria da alienação. Mas a separação já foi consumada há algum tempo.


Fernando J. Cardim de Carvalho é professor emérito da UFRJ e “senior research scholar” do Levy Economics Institute, Bard College



http://www.valor.com.br/cultura/5486601/meu-encontro-e-desencontro-com-marx

@economia @marx

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