Meu encontro com Marx deu-se, de forma
esporádica e fragmentada,
quando ainda era estudante de
graduação em economia na USP.
Marx não era, é claro, um autor
popular na FEA/USP daqueles anos. Poucos professores pareciam ter ideia de quem
se tratava. Minha leitura do primeiro volume de “O Capital” foi solitária e,
provavelmente, não deve ter rendido muito. Foi no mestrado na Unicamp, onde
Marx era o autor dominante em meados dos anos 70, que passei a lê-lo em
detalhe. Já era atraído pela economia keynesiana, que efervescia com a
emergência dos pós-keynesianos.
Por isso, embora achasse muitos dos
temas tratados entediantes, fui atraído pelas discussões acerca de quem
chamavam, pejorativamente, de “jovem Marx”.
A teoria da alienação era
aparentada, em muitos aspectos, à discussão de incerteza e tomada de decisões
em Keynes. As obras do jovem Marx, complementadas por autores brilhantes como
Isaac Rubin, István Mészáros (quando jovem também), dentre outros, me interessaram.
O tema desses autores é a ação humana quando as relações de produção são coisificadas
e você não reconhece sua produção como resultado de sua atividade.
O agente econômico age em um
ambiente que lhe é estranho, mesmo tendo sido produzido por ele.
Esse é também o quadro em que o
conceito de incerteza proposto por Keynes se define, isto é, um ambiente
construído, mas não reconhecido pelo indivíduo. Até onde eu saiba, no entanto, essa
literatura permaneceu periférica em relação ao núcleo da reflexão marxista.
Mas havia muito na literatura
marxista — especialmente, coincidência ou não, a francesa — que me parecia
pouco mais do que jogos vazios de palavras que os leitores deviam considerar cápsulas
de grande sabedoria. Muito tempo perdido com raciocínios circulares, com o
refraseamento em termos marxistas de teorias formuladas por outras escolas.
Muito esforço destinado mais a provar que a teoria era praticamente
invulnerável à crítica teórica ou empírica, mesmo nas suas partes mais frágeis.
Saí de Campinas já convencido de
que o desencontro com Marx não demoraria a vir.
Essa separação se deu ao fim dos
anos 70, início dos 80, e foi causada por fatores de atração e de repulsão. O
fator de atração é óbvio para quem conhece alguma coisa do que publiquei nos
últimos quase 40 anos, o trabalho com a “e s c o l a” pós- keynesiana. Os
fatores de repulsão foram vários, que sintetizaria em dois grupos principais de
argumentos.
O primeiro diz respeito a uma
característica do marxismo que o distingue de praticamente todas as outras
escolas de pensamento social: sua natureza totalizante. Você pode ser um
keynesiano, um institucionalista, até um neoclássico, sem que isso influencie
sua vida para além das suas convicções econômicas (e, parcialmente, políticas).
Mas ser marxista implica o
compartilhamento de visão totalizante do papel
de indivíduos numa sociedade de
classes. O marxismo molda sua vida e comportamento de modo que nenhuma outra
teoria social o faz. Até sua escolha de amigos é influenciada pelo fato de que
você acaba procurando aqueles que compartilham sua visão de mundo. Alguns se
sentem confortáveis com isso, outros nem tanto. Eu me situo no segundo grupo.
Além disso, apesar de o próprio
Marx não poder ser culpado por essa distorção, ser marxista, nesses termos,
cria a expectativa de que você esteja disposto, quase que por definição, a
estender sua simpatia a quem quer que se declare partidário da visão.
Vejo conhecidos meus defenderem, por
exemplo, genocidas como Stálin ou Mao, porque se autodefiniram como marxistas, embora
a leitura, mesmo rápida, de qualquer texto de sua autoria indique intenso desconhecimento
da teoria social marxista. Isso se repete com relação à Venezuela, onde um
grupo de militares corruptos e incompetentes, liderados por uma figura
delirante como Maduro, buscam e recebem apoio político de gente que deveria saber
melhor do que se trata.
Mas o principal fator de
afastamento é a visão de ciência proposta por Marx, cujas consequências são
problemáticas e têm impacto negativo sobre o modo como pesquisadores marxistas
tratam a informação empírica.
É famosa a afirmação de Marx de
que, se essência e aparência fossem a mesma coisa, a pesquisa científica seria
desnecessária.
Essa afirmação revela
desconhecimento do que as ciências naturais, pelo menos, efetivamente tratam. O
trabalho científico não busca identificar ou explicar “essências”, por baixo ou
por trás das aparências. As ciências naturais buscam identificar padrões nos
dados que se observam, naquilo que aparece. É como olhar para um tabuleiro e
buscar a ordem nas peças, separando aquelas que estão ali acidentalmente. A ciência
moderna não olha embaixo do tabuleiro. Ela olha o que está em cima. A
informação com que lida é sempre visível, e seu problema é separar o
sistemático do acidental, não a essência da aparência.
Por que isso é importante? Porque
enfatiza que a explicação científica do mundo deve ser buscada na informação
empírica. Se a informação que se tem à disposição for insuficiente, busque-se
mais. Ainda tenho na memória a ginástica intelectual que autores faziam para preservar
a validade “essencial” de “leis” como a queda tendencial da taxa de lucro ou a
miséria crescente dos trabalhadores ou o desaparecimento das classes médias
(que Marx definia, em sentido mais restrito, como pequena burguesia) frente à
evidência empírica de que nenhuma dessas “leis” realmente resistia ao exame
empírico.
Algo semelhante ocorre com o
conceito-chave de classes sociais. Classes sociais realmente existentes não
exibem as características esperadas por Marx. O proletariado não se comporta
como proletariado, por exemplo.
Proletários são tão diversos entre
si quanto o são quando comparados com outras classes sociais. Isso importa
quando se lida com uma teoria que, de certa forma, prevê o fim da história quando
o proletariado assumir o poder.
O fato de que proletários
empiricamente existentes não se comportam como espera a teoria não levou ao
reexame da teoria, mas à definição de uma “e s s ê n c i a” proletária,
encarnada não por proletários, mas por ativistas de classe média, organizados
em partidos que, supostamente, deveriam agir como deveriam fazer os
proletários, falar por eles, pensar por eles e decidir em seu lugar. Não
importa se a teoria explica o mundo real, pois, caso não explique, o que é
necessário fazer é adaptar a explicação para preservá-la face a qualquer inadequação
empírica.
No fim, meu encontro com Marx durou
relativamente pouco. Ainda leio com prazer marxistas como Hobsbawm e outros,
especialmente ingleses. Raymond Williams permanece como um dos meus favoritos,
que merece releituras mais ou menos frequentes. Trabalhos do próprio Marx me
interessam ainda, especialmente os que tratam de problemas como a teoria da
alienação. Mas a separação já foi consumada há algum tempo.
Fernando J. Cardim de Carvalho é
professor emérito da UFRJ e “senior research scholar” do Levy Economics
Institute, Bard College
http://www.valor.com.br/cultura/5486601/meu-encontro-e-desencontro-com-marx
@economia @marx
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