terça-feira, 24 de março de 2020

Com a covid-19, viramos personagens de filme(João Luiz Rosa, Valor, 24.3.2020)

Com a covid-19, viramos personagens de filme


Terça-feira, 24 de Março de 2020 - 00:00

João Luiz Rosa
Os elementos clássicos de um filme de ficção científica estão todos reunidos: um vírus letal para a espécie humana; o cientista que adverte as autoridades, mas é reprimido; o receio generalizado entre a população; a corrida aos supermercados para estocar alimentos; ruas que lembram cidades-fantasmas. Mas, desta vez, é tudo verdade.

Imagens da Torre Eiffel, da Disneyworld e de ruas de Nova York completamente desertas, por causa da pandemia do novo coronavírus, parecem incomodamente familiares, embora seja difícil lembrar quando esses lugares ficaram vazios recentemente, se é que ficaram. São ecos de cenas vistas em filmes e séries nos quais a civilização chegou perto de se esfacelar ou até mesmo desapareceu. Caminhar na rua do bairro sem ninguém por perto torna ainda mais palpável essa sensação de que nos tornamos personagens de um filme.

Vírus não são novidade no cinema. É surpreendente a quantidade de títulos sobre o assunto nos últimos anos: “Contágio”, “Epidemia”, “Pandemia”, “Vírus”, “Extermínio”... E por aí vai.

Os paralelos entre as pandemias da ficção e da realidade são inevitáveis, a começar pela origem da doença. Frequentemente, o problema começa com o contato entre o ser humano e algum animal selvagem.

Em “Epidemia” (1995), estrelado por Dustin Hoffman e Morgan Freeman, um macaco contaminado por um vírus desconhecido é levado ilegalmente para uma loja de animais na Califórnia, transformando a região no epicentro de uma crise. O filme estreou no mesmo ano do primeiro surto de ebola na África.

Morcegos são a origem mais provável do ebola, provocada por vírus do gênero filovírus. Mas macacos, como retrata o filme, também fazem parte da história das epidemias. Segundo a teoria mais aceita pelos pesquisadores, o HIV, que causa a Aids, teria vindo do SIV, um vírus altamente mutante, encontrado em chimpanzés e macacos-verdes africanos.

No caso da covid-19, chegou-se a falar que um animal em risco de extinção, o pangolim, teria sido o hospedeiro intermediário do coronavírus. A tese, no entanto, foi abandonada. Agora, os morcegos têm sido apontados como principais suspeitos, porque sua carne é vendida em mercados de algumas regiões na China. As autoridades de saúde globais ainda não confirmaram essa informação, mas a hipótese tem precedentes: o animal é considerado a origem mais provável dos dois surtos anteriores de doenças respiratórias provocadas por coronavírus — a Sars, que contaminou mais de 8 mil pessoas e provocou 774 mortes entre 2002 e 2003, e a Mers, com 2.494 contaminados e 858 mortes desde setembro de 2012. Até ontem, o coronavírus contabilizava mais de 353 mil casos e pelo menos 15 mil mortes, segundo dados da Universidade Johns Hopkins, dos Estados Unidos.

Independentemente de qual for o animal hospedeiro, cientistas e ambientalistas têm alertado para o risco de ocorrência de mais pandemias no mundo, à medida que o desmatamento aproxima animais selvagens do convívio humano, com consequências imprevisíveis. Privadas de seu habitat, muitas espécies estão se adaptando à vida na proximidade de grandes cidades, onde passam a se alimentar de lixo. E a conviver com as pessoas.

“Contágio” (2011), do diretor Steven Soderbergh, mostra outros aspectos que parecem saídos do noticiário da TV, em particular a escalada internacional de uma nova doença e o esforço dos cientistas para deter a contaminação. Sem saber, a personagem interpretada por Gwyneth Paltrow espalha um vírus enquanto viaja de Hong Kong, aonde fora a negócios, para os Estados Unidos. A trama deixa clara a dificuldade para estabelecer quem é o paciente zero — ou seja, com quem começou a transmissão — e o que fazer para criar um antídoto. Paralelamente, mostra como o temor das pessoas comuns corrói rapidamente o tecido social. Em uma sequência do filme, pessoas na fila de uma farmácia depredam o estabelecimento ao saber que a cota diária do remédio recomendado acabou. Diante da escassez, ninguém pensa nos outros. Lembra a busca desenfreada nos últimos dias pela cloroquina, usada contra a malária, e a hidroxicloroquina, aplicada no tratamento de lúpus e artrite reumatoide. Embora não se tenha comprovado a eficácia das substâncias no combate à covid-19, a procura aumentou tanto que as autoridades passaram a temer que os remédios faltem para quem realmente precisa deles.

No filme, os cientistas conseguem produzir uma vacina em três meses, em doses limitadas. No mundo real, China e EUA têm liderado os esforços para encontrar uma vacina, mas muitos especialistas preveem que nenhuma solução comprovada ficará pronta em menos de um ano e meio.

Em produções cinematográficas mais fantasiosas, vírus e bactérias podem aparecer como metáfora do mal-estar da sociedade. É o caso de muitas histórias de zumbi, em que os sobreviventes infligem uns aos outros sofrimentos tão ou mais graves que os mortos-vivos. “Kingdom” (2019-2020), uma série sul-coreana da Netflix, combina uma epidemia de zumbis com intrigas palacianas na corte da dinastia Joseon, na era medieval. Uma família aristocrata tenta tomar o trono do sucessor de direito, e usa a doença para conseguir isso. Entre cenas de ação e terror, há referências à guerra de informação, que muitos políticos incitam em épocas de epidemia para se promover diante do público. Também há uma advertência quanto à ameaça de usar forças da natureza para combater inimigos, numa antecipação das guerras bacteriológicas atuais.

De certa forma, o escritor H.G. Wells já tratou disso em 1898, no romance “A Guerra dos Mundos”. A história, várias vezes adaptada para o cinema, ficou célebre depois de Orson Welles transformá-la em um programa de rádio, em 1938, que muitos americanos levaram a sério. É a narração de uma sangrenta invasão de marcianos à Terra. Depois de praticamente vencer os humanos, os alienígenas morrem repentinamente. Sem proteção contra os organismos do planeta, acabam detidos por uma simples bactéria.

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João Luiz Rosa é repórter especial E-mail joao.rosa@valor.com.br

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