segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Energia: o Brasil não é a Califórnia(Ítalo Freitas, Valor, 31 8 2020)


O Brasil não é a Califórnia
COLUNISTAS
segunda-feira, 31 de agosto de 2020 

  
Valor Econômico  / Opinião

Ítalo Freitas

Em discussões técnicas sérias, poucas coisas podem ser tão graves quanto cair na armadilha fácil das simplificações. No setor elétrico, as simplificações significam empobrecimento dos debates e, nos casos extremos, influenciam de forma enviesada a implementação de políticas que causam danos à evolução do próprio setor.

É por isso que entendo ser fundamental discutir de forma mais profunda os desafios que a Califórnia tem enfrentado na sua transição energética, com apagões durante picos de consumo. Muitos têm feito comparações extremamente equivocadas com o Brasil. Para ampliar o debate, gostaria de abordar atributos como flexibilidade, despachabilidade e potência.

Em primeiro lugar, é preciso entender a matriz elétrica da Califórnia. Em 2019, de acordo com a “California Energy Commission”, cerca de 30% da matriz do Estado era de fontes limpas não hídricas, como eólica, solar, biomassa, geotermal e nuclear. As hídricas respondiam por cerca de 15% e o gás natural por cerca da metade da matriz. Essa configuração, altamente renovável, é fruto de uma política iniciada na década de 90 para incentivar as fontes renováveis. E o que causou o apagão não foi essa configuração, mas sim um dimensionamento inadequado de reservas para operação aliado ao modelo americano de interligação entre os Estados.

Nos Estados Unidos, embora exista interligação entre os sistemas de transmissão dos Estados, as regiões elétricas são mais separadas do que no caso brasileiro, havendo gargalos importantes para escoamento. Em alguns casos, para a transferência energética acontecer, é necessário comprar antecipadamente direitos de transmissão. A exportação e importação de energia entre regiões requer, ainda, mecanismos de oferta de preço.

Já no Brasil, o cenário é muito distinto. Nosso Sistema Interligado Nacional tem uma flexibilidade muito maior, que permite transferências energéticas e suprimento de reserva de potência de forma extremamente ágil. Nossa matriz é pensada nacionalmente e as trocas são rápidas.

O Brasil tem mais de 50% de hidrelétricas e seus reservatórios funcionam como uma grande bateria e eles estão sendo recuperados graças à entrada de outras renováveis no sistema, como as eólicas. Nosso backup é radicalmente diferente do americano. É como se eles tivessem uma pequena bateria recarregável e nós tivéssemos uma gigantesca bateria de longa duração e natural. E, no caso brasileiro, é bom reforçar algo importante: essa grande bateria de longa duração são as hidrelétricas.

Destaco uma diferença importante, específica para o caso da energia eólica. O Brasil, que tem a eólica como segunda fonte de geração em capacidade instalada, possui ventos com predominância unidirecionais e alta intensidade de velocidade média ao longo do ano, que são traduzidos em fatores de capacidade acima de 45%. Já na Califórnia, esse indicador é muito menor: foi de 26% em 2016, de acordo com o “Productivity and Status of Wind Generation in California”.

Menciono, ainda, a inequívoca diferença entre os caminhos da transição energética dos dois países. No ano passado, cerca de 60% da geração de eletricidade nos Estados Unidos veio de combustíveis fósseis — carvão, gás natural, petróleo e outros gases. Na Califórnia, conforme mencionamos acima, a matriz já é mais renovável por um esforço do Estado, na sua busca pioneira por uma matriz limpa, que possibilitou a inserção de novas tecnologias, como o armazenamento químico (íon de lítio) de energia, microgrids e resposta à demanda na composição energética de forma rápida.

Como todas essas tecnologias necessitam de tempo para se estabilizarem nos sistemas e os eventos climáticos estão cada vez mais inesperados e severos, surgiram dificuldades para o sistema em momentos de pico. O pioneiro enfrenta muito mais dificuldades, mas o benefício é grande, neste caso a todo o planeta, já que a Califórnia é um dos grandes consumidores mundiais de energia.

Já o Brasil é renovável, com histórico de décadas com as grandes hidrelétricas representando mais de 60% da geração. Por aqui, a transição energética significa aumentar o peso de renováveis como eólica, solar e biomassa num sistema que já é renovável em si e que, naturalmente, conta com uma abundância de recursos naturais renováveis para geração de energia. Voltando à comparação do parágrafo anterior, a Califórnia tem uma bateria recarregável de backup e tem que gerenciar escassez de recursos renováveis, investindo pesadamente para que eles se desenvolvam. O Brasil, além de ter essa gigantesca bateria de longa duração em forma de reservatórios, tem que administrar não a escassez, mas a abundância de recursos.

Dito tudo isso, importante esclarecer que não pretendo afirmar que não exista espaço em nossa matriz para térmicas, mas sim fazer o seguinte questionamento: o que nós do Sistema Elétrico Brasileiro podemos fazer para tornar nossa matriz com a menor pegada de carbono possível e o custo mais competitivo do mundo?

Temos cientistas e engenheiros de altíssimo nível que podem desenvolver tecnologia nacional para nos dar essa resposta. Esse ponto é fundamental porque estamos a caminho de um mercado cada vez mais aberto, mais livre, que olha os preços de forma integrada com atributos das fontes. E, acima de tudo, o mercado elétrico brasileiro alcançou uma maturidade invejável, construída por meio de decisões e planejamento técnicos baseadas em critérios econômicos, segurança e possibilidade de aproveitar de forma inteligente a grande quantidade de recursos renováveis que temos no Brasil.

Qualquer debate sério sobre matriz elétrica parte do princípio de que uma matriz precisa ser diversificada. O que não podemos é usar o caso da Califórnia, em tudo completamente diferente do brasileiro, para espalhar um infundado terror de falta de segurança de suprimento. A Califórnia não é o Brasil. E o Brasil, com sua inteligência de rede de distribuição, maturidade de mercado com decisões técnicas, alta despachabilidade e abundância de recursos renováveis, definitivamente, não é a Califórnia.

No Brasil, transição energética significa aumentar o peso de renováveis num sistema que já é renovável em si

Ítalo Freitas é CEO da AES Brasil e Embaixador de Energia da Rede Brasil do Pacto Global.

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