Os quatro caminhos da relação EUA-China
COLUNISTAS
segunda-feira, 31 de agosto de 2020
Valor Econômico / Opinião
Yuen Yuen Ang
De um governo Biden pode-se esperar menos drama e retórica inflamada
Não há relações diplomáticas bilaterais mais complicadas do que a entre os Estados Unidos e a China, que afeta não só os dois países, mas também toda a humanidade. E agora o futuro dessas relações depende de quem vai liderar os dois países nos próximos anos.
Nos EUA, as próximas eleições presidenciais acontecem em apenas dois meses e — salvo complicações — o Republicano no poder, Donald Trump, ou seu adversário Democrata, Joe Biden, fará o juramento de posse em 20 de janeiro de 2021. No caso da China, porém, quase todo mundo assume que o presidente Xi Jinping deterá as rédeas do poder indefinidamente.
Mas embora uma mudança na liderança chinesa pareça improvável, ela não é impossível. Como tal, realmente deveríamos estar considerando a possibilidade de quatro cenários separados nas relações sino-americanas.
Primeiro, suponha que Biden vença e a China continue sob a liderança de Xi no longo prazo. Num comentário feito anteriormente neste ano à “Foreign Affairs”, Biden prometeu que sua maior prioridade de política externa como presidente será restabelecer a liderança global da América e alianças democráticas. Ele quer investir em infraestrutura, educação e pesquisa e desenvolvimento. Com um governo Biden, pode-se esperar menos drama e retórica inflamada com a China.
Mas sem dúvida uma ação dura contra as políticas industrial e externa da China continuaria na mesa. Uma vez restabelecido o compromisso da América de defender uma ordem global liberal, os líderes chineses refreariam sua busca por uma liderança internacional. Se a agenda de Biden for concretizada, os EUA estarão mais seguros e assim menos paranoicos com a ascensão da China.
No segundo cenário, Trump consegue outra vitória surpreendente, com profundas implicações para as relações EUA-China. Enquanto a vitória incômoda de Trump em 2016 foi amplamente tida como uma casualidade, uma segunda vitória teria de ser tomada como um endosso “de facto” de seu nacionalismo demagógico e xenofobia.
Num país profundamente dividido e inseguro, a oposição à China poderá se tornar a única questão que membros dos dois lados da divisão partidária poderão abraçar. Com oito anos de Trump no poder, o dano infligido à posição global da América será duradouro, ou mesmo permanente.
É verdade que um otimista pode afirmar que depois de vencer as eleições Trump amenizaria sua postura e se concentraria em fazer negócios com a China, em vez de alimentar a inimizade. Mas se os últimos quatro anos nos mostraram algo, é que Trump joga apenas para as suas bases, que respondem a apelos emocionais e não a análises e deliberações racionais. É mais provável que, um segundo mandato encorajaria o governo Trump a levar os ataques à China a um extremo.
Este cenário seria terrível para a China, mas meio que um presente para Xi politicamente. Quanto mais os EUA aviltarem a China, mais os cidadãos chineses — até mesmo aqueles que se ressentem do controle ditatorial de Xi — vão apoiá-lo. E dentro do Partido Comunista Chinês, qualquer um que ousar criticar Xi será acusado de cooperar com os agressores estrangeiros, e assim devidamente silenciado.
Ainda assim, uma mudança na liderança da China não pode ser descartada. Sim, com a China tendo contido com sucesso a covid-19, enquanto os EUA continuam com dificuldades, Xi parece ter vencido. E como ele já acabou com os limites constitucionais ao seu mandato, ele poderá continuar sendo o líder supremo da China pela vida toda.
Mas atrás dessa fachada de invencibilidade, Xi deverá se sentir tão inseguro quanto Trump na esteira da pandemia. Apesar da certeza de punição, alguns membros do alto escalão do Partido Comunista recentemente se manifestaram contra ele, e em questões econômicas importantes, sua posição e a do primeiro-ministro são uma contradição aberta, uma anormalidade na política chinesa. Na política externa em especial, a postura cada vez mais agressiva de Xi rendeu mais inimigos para a China num momento de tensões domésticas sem precedentes.
Para assegurar a estabilidade política necessária para o crescimento econômico, Deng Xiaoping, o proeminente líder que lançou a “reforma e abertura” no fim do século XX, se dedicou a estabelecer normas de liderança coletiva e a sucessão institucionalizada.
Mas como Xi desmantelou sistematicamente essas normas, o Partido Comunista agora enfrenta uma situação em que qualquer resultado político é possível: Xi poderá ter um mandato vitalício, ser forçado a transferir o poder em 2022 ou derrubado por um golpe súbito. A ausência de eleições periódicas não deve ser tomada como uma afirmação de que a política chinesa é inerentemente mais estável que a dos EUA ou as de outras democracias.
Suponha, para efeito de planejamento de cenário, que um novo líder chinês estivesse negociando com Biden ou Trump. Sob Biden, se poderia pelo menos esperar o engajamento dos EUA na diplomacia profissional. Mas se um distúrbio político na China coincidisse com outro mandado para Trump, todas as apostas estariam em aberto.
Como diz a velha piada, fazer previsões é difícil, especialmente sobre o futuro. Ninguém pode dizer com certeza o que vai acontecer nos próximos meses e anos, porque os resultados possíveis estão sendo constantemente desafiados pelas ações e choques atuais como a pandemia e as enchentes inéditas. Mas o que os tomadores de decisões podem e deveriam fazer é considerar cenários diferentes com base nas atuais características e tendências.
Depositar todas as esperanças num resultado que parece mais provável ou desejável é arriscar sucumbir a uma complacência perigosa. Quando se trata da questão crítica das relações EUA-China, a postura sábia é olhar para frente e imaginar todas as possibilidades, por mais impensáveis que elas possam parecer agora.
Atrás da fachada de invencibilidade, Xi deverá se sentir tão inseguro quanto Trump na esteira da pandemia. Apesar da certeza de punição, alguns membros do alto escalão do PC se manifestaram contra ele em questões econômicas importantes
Yuen Yuen Ang , professor de ciências políticas da Universidade de Michigan, Ann Arbor, é autor de ‘How China Escaped the Poverty Trap’ e ‘China’s Gilded Age’.
COLUNISTAS
segunda-feira, 31 de agosto de 2020
Valor Econômico / Opinião
Yuen Yuen Ang
De um governo Biden pode-se esperar menos drama e retórica inflamada
Não há relações diplomáticas bilaterais mais complicadas do que a entre os Estados Unidos e a China, que afeta não só os dois países, mas também toda a humanidade. E agora o futuro dessas relações depende de quem vai liderar os dois países nos próximos anos.
Nos EUA, as próximas eleições presidenciais acontecem em apenas dois meses e — salvo complicações — o Republicano no poder, Donald Trump, ou seu adversário Democrata, Joe Biden, fará o juramento de posse em 20 de janeiro de 2021. No caso da China, porém, quase todo mundo assume que o presidente Xi Jinping deterá as rédeas do poder indefinidamente.
Mas embora uma mudança na liderança chinesa pareça improvável, ela não é impossível. Como tal, realmente deveríamos estar considerando a possibilidade de quatro cenários separados nas relações sino-americanas.
Primeiro, suponha que Biden vença e a China continue sob a liderança de Xi no longo prazo. Num comentário feito anteriormente neste ano à “Foreign Affairs”, Biden prometeu que sua maior prioridade de política externa como presidente será restabelecer a liderança global da América e alianças democráticas. Ele quer investir em infraestrutura, educação e pesquisa e desenvolvimento. Com um governo Biden, pode-se esperar menos drama e retórica inflamada com a China.
Mas sem dúvida uma ação dura contra as políticas industrial e externa da China continuaria na mesa. Uma vez restabelecido o compromisso da América de defender uma ordem global liberal, os líderes chineses refreariam sua busca por uma liderança internacional. Se a agenda de Biden for concretizada, os EUA estarão mais seguros e assim menos paranoicos com a ascensão da China.
No segundo cenário, Trump consegue outra vitória surpreendente, com profundas implicações para as relações EUA-China. Enquanto a vitória incômoda de Trump em 2016 foi amplamente tida como uma casualidade, uma segunda vitória teria de ser tomada como um endosso “de facto” de seu nacionalismo demagógico e xenofobia.
Num país profundamente dividido e inseguro, a oposição à China poderá se tornar a única questão que membros dos dois lados da divisão partidária poderão abraçar. Com oito anos de Trump no poder, o dano infligido à posição global da América será duradouro, ou mesmo permanente.
É verdade que um otimista pode afirmar que depois de vencer as eleições Trump amenizaria sua postura e se concentraria em fazer negócios com a China, em vez de alimentar a inimizade. Mas se os últimos quatro anos nos mostraram algo, é que Trump joga apenas para as suas bases, que respondem a apelos emocionais e não a análises e deliberações racionais. É mais provável que, um segundo mandato encorajaria o governo Trump a levar os ataques à China a um extremo.
Este cenário seria terrível para a China, mas meio que um presente para Xi politicamente. Quanto mais os EUA aviltarem a China, mais os cidadãos chineses — até mesmo aqueles que se ressentem do controle ditatorial de Xi — vão apoiá-lo. E dentro do Partido Comunista Chinês, qualquer um que ousar criticar Xi será acusado de cooperar com os agressores estrangeiros, e assim devidamente silenciado.
Ainda assim, uma mudança na liderança da China não pode ser descartada. Sim, com a China tendo contido com sucesso a covid-19, enquanto os EUA continuam com dificuldades, Xi parece ter vencido. E como ele já acabou com os limites constitucionais ao seu mandato, ele poderá continuar sendo o líder supremo da China pela vida toda.
Mas atrás dessa fachada de invencibilidade, Xi deverá se sentir tão inseguro quanto Trump na esteira da pandemia. Apesar da certeza de punição, alguns membros do alto escalão do Partido Comunista recentemente se manifestaram contra ele, e em questões econômicas importantes, sua posição e a do primeiro-ministro são uma contradição aberta, uma anormalidade na política chinesa. Na política externa em especial, a postura cada vez mais agressiva de Xi rendeu mais inimigos para a China num momento de tensões domésticas sem precedentes.
Para assegurar a estabilidade política necessária para o crescimento econômico, Deng Xiaoping, o proeminente líder que lançou a “reforma e abertura” no fim do século XX, se dedicou a estabelecer normas de liderança coletiva e a sucessão institucionalizada.
Mas como Xi desmantelou sistematicamente essas normas, o Partido Comunista agora enfrenta uma situação em que qualquer resultado político é possível: Xi poderá ter um mandato vitalício, ser forçado a transferir o poder em 2022 ou derrubado por um golpe súbito. A ausência de eleições periódicas não deve ser tomada como uma afirmação de que a política chinesa é inerentemente mais estável que a dos EUA ou as de outras democracias.
Suponha, para efeito de planejamento de cenário, que um novo líder chinês estivesse negociando com Biden ou Trump. Sob Biden, se poderia pelo menos esperar o engajamento dos EUA na diplomacia profissional. Mas se um distúrbio político na China coincidisse com outro mandado para Trump, todas as apostas estariam em aberto.
Como diz a velha piada, fazer previsões é difícil, especialmente sobre o futuro. Ninguém pode dizer com certeza o que vai acontecer nos próximos meses e anos, porque os resultados possíveis estão sendo constantemente desafiados pelas ações e choques atuais como a pandemia e as enchentes inéditas. Mas o que os tomadores de decisões podem e deveriam fazer é considerar cenários diferentes com base nas atuais características e tendências.
Depositar todas as esperanças num resultado que parece mais provável ou desejável é arriscar sucumbir a uma complacência perigosa. Quando se trata da questão crítica das relações EUA-China, a postura sábia é olhar para frente e imaginar todas as possibilidades, por mais impensáveis que elas possam parecer agora.
Atrás da fachada de invencibilidade, Xi deverá se sentir tão inseguro quanto Trump na esteira da pandemia. Apesar da certeza de punição, alguns membros do alto escalão do PC se manifestaram contra ele em questões econômicas importantes
Yuen Yuen Ang , professor de ciências políticas da Universidade de Michigan, Ann Arbor, é autor de ‘How China Escaped the Poverty Trap’ e ‘China’s Gilded Age’.
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