terça-feira, 14 de novembro de 2017

Cafuringa (Paulo Nogueira Batista Jr)

Paulo Nogueira Batista Jr- O Globo 10/11/2017 0:00

Ponta-direita genial, mas não sabia finalizar
O passado sempre tem razão, dizia Nelson  Rodrigues. E por quê? A meu ver, porque só aquilo que sobrevive intacto na memória, em meio à sucessão tumultuada e infindável dos acontecimentos, é que tem peso e valor real.
Tudo passa, só algumas coisas ficam — e a essas chamamos “passado”. Outro dia, lembraram-me do Cafuringa, jogador que marcou época no Fluminense. Foi um jornalista do UOL, Adriano Wilkinson, que publicou bela homenagem a ele.
As novas gerações provavelmente não conhecem essa grande figura do futebol carioca e brasileiro, que jogou nas décadas de 1960 e 1970. Era um ponta-direita genial do Fluminense, driblador exímio, um “Garrincha sem grife”, para usar expressão do jornalista.
Tinha uma limitação grave, entretanto: não sabia finalizar. Driblava o time adversário inteiro, brilhava sempre, dava verdadeiro shows, lembrava realmente o Garrincha. Só que não fazia gols.
Era penoso o contraste entre a extraordinária habilidade do jogador e a sua enorme dificuldade de concluir. Criou-se uma espécie de trauma. Em 336 jogos pelo Fluminense, ele fez apenas 26 gols, segundo a Wikipédia. Cafuringa era um caso célebre, notório.
A torcida do Fluminense sofria com ele, acompanhava o seu drama passo a passo. Eu, tricolor de coração, sofria junto. Era torcedor fanático, morava no Rio e ia muito aos estádios. Mas mesmo torcedores de outros times acompanhavam, com interesse e simpatia, a agonia do Cafuringa.
Afinal, o Brasil buscava naquela época um sucessor para Garrincha, e Cafuringa era uma possibilidade e uma esperança. O problema foi ficando cada vez mais grave.
Tornou-se assunto obrigatório dos comentaristas esportivos e das conversas entre torcedores. A cada jogo do Fluminense, a expectativa geral era só uma: será que hoje o Cafuringa marca? Um jogo em especial ficou marcado na minha lembrança.
Foi no Maracanã, com estádio lotado. Logo no começo da partida, Cafuringa fez uma das suas jogadas típicas: driblou todo mundo, mas chutou para fora. Jogada sensacional, finalização bisonha. Logo em seguida, outro lance semelhante.
Toda a torcida do Fluminense (e até a torcida do outro time) levantava os braços para o céu (e Deus, lá de cima, respondia: calma, calma). Aí aconteceu o momento inesquecível. Cafuringa fez outra linda jogada, atravessando a defesa adversária.
O goleiro saiu do gol para fechar o ângulo, só que, dessa vez, ele colocou a bola no fundo das redes! Foi uma explosão. O leitor não imagina a emoção que tomou conta do Maracanã naquele instante.
Foi tão forte, mas tão forte que, até hoje, mais de 40 anos depois, me emociono outra vez ao relembrá-la. Quando Cafuringa correu para o lado das arquibancadas em que estava a torcida do Fluminense e se ajoelhou em agradecimento, o estádio inteiro nadava em lágrimas.
Quem sabe existe aí algum leitor extraviado nesta coluna que lembra desse jogo e da figura romântica do Cafuringa? Não sei por que essa história me toca tanto. Os caminhos da memória são às vezes misteriosos.
Talvez Cafuringa tenha alguma relação simbólica com os brasileiros e o Brasil — um país talentoso, criativo, espontâneo, mas que não consegue, simplesmente não consegue finalizar direito o que inicia.
E permanecemos, enquanto nação, uma obra essencialmente incompleta, inacabada.
*Paulo Nogueira Batista Jr. foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento e diretor-executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países



@futebol @economia

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