6 novembro 2017
Passaríamos páginas aqui descrevendo seus
usos. Seu caule era comestível, bem como suas raízes, normalmente servidas como
um petisco marinado em vinagre. Cozida junto com lentilhas, a erva atuava como
conservante. E criadores de carneiros e ovelhas obtinham carne mais macia se
alimentassem seus animais com silphium.
Mais? Suas flores amarelas eram matéria-prima
para perfumes, ao passo que a seiva, depois de desidratada, podia ser ralada
para dar tempero a pratos como flamingo grelhado, por exemplo. O condimento,
conhecido como "laser", era fundamental na alta cozinha do Império
Romano.
A erva tinha ainda aplicações médicas e era usada para uma série de
condições, de hemorroidas a mordidas de cães.
Por fim, silphium era útil no quarto: além
de afrodisíaco, a erva pode ter sido um dos primeiros métodos anticoncepcionais
por seu potencial de "purgar o útero". Há historiadores que dizem que
o formato de coração de suas raízes pode ser uma das origens de nossa
associação do romance com o símbolo.
E os romanos amavam tanto a silphium que
faziam referência a erva em poemas e canções, eternizando-a também em sua literatura.
Por séculos, soberanos detinham o monopólio sobre a planta. Isso fez de Cirene,
localizada onde hoje fica a cidade líbia de Shahhat, um dos lugares mais ricos
da África. A erva era representada até no dinheiro usada pelos locais.
O famoso imperador romano Júlio César
gostava tanto do silphium que chegou a armazenar mais de 680 kg da erva no Tesouro
Romano.
No entanto, a planta hoje não existe mais e
apenas algumas imagens estilizadas e relatos de naturalistas permanecem. Sendo
assim, a verdadeira identidade da erva favorita dos romanos é um mistério. Para
alguns historiadores, a planta foi extinta, mas outros especialistas acham que
ela ainda pode existir no Mediterrâneo como uma variação.
Como isso aconteceu? E podemos trazer a
erva de volta?
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Reza a lenda que a silphium foi descoberta
depois de uma imensa tempestade na costa leste da Líbia, há mais de 2,5 mil
anos. A partir dali, a erva teria se espalhado pela região, crescendo de forma
abundante em colinas e planícies.
Isso pode soar estranho, já que o norte da
África não é muito conhecido por seu potencial agrário. Mas a região de que
estamos falando, conhecida na antiguidade como Cirenaica, marcada por
verdejantes planaltos, é conhecida pela abundância de água. Algumas partes hoje
recebem 85 cm
de água por ano, um índice de pluviosidade parecido com o do Reino Unido.
A região foi originalmente colonizada pelos
gregos e anexada pelos romanos por volta de 96 a .C. - algumas décadas
depois, Cirene foi dada por Atenas a Roma. Quase imediatamente, os estoques de
silphium começaram a diminuir em um ritmo alarmante. Apenas 100 anos mais
tarde, a erva tinha desaparecido - Plínio, um dos mais conhecidos historiadores
romanos, escreveu que mudas da erva eram sumariamente extraídas e enviadas de
presente ao imperador Nero por volta dos anos 56 a 84 d.C..
O grande problema é que a planta é o que se
pode chamar de temperamental: só crescia em Cirenaica e ocupava uma área total
de 201 km
de comprimento por 40 km
de largura. Por mais avançadas que fossem para a época, as civilizações grega e
romana não conseguiram reproduzir a silphium em outras regiões.
Em vez disso, a erva era colhida em sua
forma silvestre, e embora houvesse controle rigoroso da extração, havia um
próspero mercado negro para o produto. A seiva ressecada, por exemplo, era
vendida por traficantes nas ruas a preços exorbitantes. E não raramente os
fregueses levavam "gato por lebre", adquirindo sem saber a
"assa-fétida", um tempero popular na Índia e conhecido pelo seu odor
sulfuroso - e que os romanos acabaram considerando um substituto razoável para
a silphium.
Traficantes também "malhavam" a
erva, misturando-a a mostarda e outras plantas como o zimbro - mais conhecido
hoje por seu papel na preparação do gin.
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Mas porque o silphium não podia ser cultivado?
Mesmo um dos mais conhecidos botânicos da antiguidade, Teofrasto, não conseguiu
explicar a razão. Não adiantou sua amizade com Aristóteles - que além de
filósofo é o pai da Biologia. Mas Teofrasto ao menos observou algo relevante:
as plantas tendiam a crescer melhor em terras escavadas um ano antes.
Há várias razões que podem explicar isso.
"Normalmente, o problema é relacionado às sementes", diz Monique
Simmonds, vice-diretora de Ciências de Kew Gardens, o principal jardim botânico
do Reino Unido.
Ela cita como exemplo as papoulas. Uma
única planta pode produzir até 60 mil sementes, mas elas precisam ser expostas
à luz para germinar. Sem isso, apenas ficarão na terra até que sejam comidas ou
apodreçam. Sendo assim, papoulas vingam em solos "perturbados", em
que a luz pode invadir fendas no solo.
Mas há outras explicações - e o melhor
lugar para procurar pistas talvez seja outra planta que desafia fazendeiros: o
mirtilo tipo huckleberry. Nos Estados Unidos, centenas de milhares de pessoas
anualmente invadem os parques nacionais com cestas em punho em busca de uma
fruta cobiçadíssima ao redor do mundo - e nem possíveis encontros com ursos
desanimam a turma.
As frutas avermelhadas - ao contrário do
mirtilo azul mais comum - fazem parte de geleias, molhos, tortas, sorvetes,
drinques alcoólicos e até curries. E, todos os anos, a demanda é superior à
oferta, pois não há uma única fazenda de huckleberries na América do Norte.
Colonizadores europeus bem que tentaram
trazer a fruta, mas falharam. Esforços sérios mais recentes de cultivo tiveram
início em 1906, mas os mirtilos ainda resistem à produção controlada - onde
foram cultivados, não deram fruto.
O huckleberry é nativo de encostas de
montanhas e florestas norte-americanas. As frutas crescem em arbustos e tem
raízes "espalhadas" pelo solo. A falta de um enraizamento mais
centralizado faz com que os mirtilos sejam especialmente difíceis de
transplantar. Fazendeiros durante anos cometeram o erro de confundir o caule
subterrâneo da planta com as raízes.
Tentar replantá-las desse jeito era o mesmo
que esperar que folhas germinassem.
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Só que nem mesmo os avanços tecnológicos da
botânica conseguiram subjugar os huckleberries. E o mais curioso é que não
parece haver grandes segredos em seu crescimento. A resposta está no habitat,
segundo especialistas. "As plantas em uma determinada área têm grande
impacto na química do solo", explica Simmonds.
A agricultura inevitavelmente afeta o
equilíbrio entre elementos químicos no solo, como o magnésio, e isso resulta no
fato de que algumas plantas jamais "pegarão" em terras cultivadas.
Hoje, o único método conhecido de cultivar esses mirtilos é desmatar uma região
e deixar as plantas em paz.
Para Kenneth Parejko, biólogo da
Universidade de Wisconsin (EUA) que estudou o "enigma do silphium",
plantas silvestres são particularmente sensíveis a essas alterações. "No
norte dos EUA, há muitas flores silvestres que crescem nas pradarias, mas que
não sobrevivem se tentarmos plantá-las no jardim."
Talvez os gregos estivessem a par disso. Há
registros de tentativas de cultivo da erva na Europa, mas o diagnóstico foi que
a planta carecia de um determinado "humor" para germinar - a teoria
humoral associava temperamentos com fluidos corporais e foi o principal corpo
de explicação racional da medicina até o século 17.
Há outra possibilidade: o silphium era um
híbrido. O cruzamento de espécies é conhecido em diversos ramos da biologia. Um
camelo macho com uma lhama fêmea, por exemplo, resultam nos "camas",
filhotes com o potencial de produção de lã da mãe e a força do pai. No mundo
das plantas há os morangos de jardim, cruzamento das variedades
norte-americanas e chilenas - as frutas resultantes são maiores e mais
suculentas.
E o que dizer do milho, o mais conhecido
híbrido da agricultura e cuja produção anual supera 360 bilhões de metros
cúbicos? Mas enquanto a primeira geração dessas uniões pode ser altamente
desejável, seus "filhos" e "netos" frequentemente não estão
no mesmo nível. Híbridos de segunda geração são extremamente imprevisíveis por
causa de desequilíbrio genéticos - imaginem um animal com o temperamento da
lhama e a capacidade de produção de lã de um camelo, por exemplo.
Em plantas selvagens, porém, isso não é um
problema. O cruzamento precisa acontecer apenas uma vez e, a partir daí, as
plantas não crescem de sementes, mas através de reprodução assexuada pelo
avanço das raízes. Um exemplo está nos cemitérios do Oriente Médio, em que um
tipo de íris cresce em túmulos muçulmanos milhares de anos depois do primeiro
cruzamento em algum deserto - isso apesar das plantas serem estéreis.
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Se o silphium era realmente um cruzamento e
os gregos tentaram cultivá-lo com sementes, o resultado provavelmente seria
difícil de reconhecer. Curiosamente, isso se encaixa com relatos sobre a
presença da erva em mercados de regiões como o norte do Irã e a Síria, ainda
que em uma variação bem menos valiosa que a de Cirene. Sabemos que mercadores
podem ter vendido gato por lebre, mas talvez estejamos falando de algum tipo de
descendente do silphium.
Mas o grande problema era a cobiça. Plínio
escreveu que senhorios romanos eram obrigados a cercar pastagens com a presença
do silphium para evitar que servissem de alimentos para ovelhas. Mas houve
rebeliões em que pastores em busca da valorização de seu estoque - lembremos
que as ovelhas alimentadas com a erva tinham carne mais cara - derrubavam as
cercas.
Sendo assim, o silphium estava sendo
atacado por todos os lados. Extraído e pastado à exaustão. E pode ter sido
minado também por sua própria biologia. Embora os gregos tivessem regras
rigorosas sobre o quanto da raiz pudesse ser extraído - o que poderia assegurar
algum tipo de regeneração -, traficantes podem ter ignorado as determinações.
"Se você levar a raiz, precisa de uma planta que cresça bem da
semente", diz Simmonds.
A história do silphium é familiar da
maneira mais triste. Nos dias de hoje, ervas medicinais fazem parte de uma
indústria bilionária, mas muitas estão ameaçadas pelo extrativismo, o
crescimento urbano desordenado e o aquecimento global. Apenas na África do Sul,
por exemplo, 82 tipos de ervas estão na lista de espécies ameaçadas e pelo
menos outras duas desapareceram.
Uma esperança no caso do silphium é que
poucos estudos sobre diversidade vegetal foram feitos até hoje. É possível que
algumas plantas possam ter escapado dos gregos e romanos. "A erva pode
ainda estar lá, porque a Líbia não é um país fácil de mapear", explica
Simmonds.
O problema aqui é que ninguém sabe
realmente como a planta é, com explica Erika Rowan, historiadora da
Universidade de Exeter, no Reino Unido. "Sementes de plantas como coentro
e aneto já foram encontradas em sítios arqueológicos, mas ninguém até hoje
encontrou silphium", diz Rowan.
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Teofrasto descreveu a planta como
possuidora de raízes escuras e cobertas por uma casca negra. Elas seriam
compridas, do tamanho da distância entre a ponta do dedo médio e o cotovelo, o
que os romanos conheciam como cúbito. O botânico dizia ainda que a planta tinha
um caule oco e folhas douradas, parecidas com as do aipo.
Moedas antigas mostram a planta florida e,
segundo Simmonds, ela pareceria bastante visível e facilmente percebida.
Teofrasto, inclusive, comparou a erva a outra espécie, a Magydaris
pastinacea, natural da Síria e das encostas do Monte Parnasos, próximo à
cidade grega de Delfos. Ele definiu ambas como "arbustos sem coluna" e
relacionados ao funcho.
Cientistas mais modernos acreditam que o
grego podia estar certo. Eles agora acreditam que, assim como a assa-fétida, o
silphium pode ter pertencido a um grupo de plantas relacionadas ao funcho,
conhecido como Férula. Na verdade, são parentes da cenoura e crescem de forma
selvagem no norte da África e no Mediterrâneo. Duas dessas plantas, ambas
variações de funcho-gigante, ainda existem na Líbia hoje. E uma delas pode ser
silphium.
Mas Rowan já avisa que, mesmo que a erva
não esteja extinta, ela possivelmente não terá um revival - pelo menos no
Ocidente. "Há uma série de temperos romanos, como o levístico (um parente
do salsão), que eram obrigatórios à mesa em priscas eras, mas que agora são
desconhecidos e praticamente impossíveis de adquirir".
E vale lembrar que a cozinha romana não era
em nada parecida com a comida italiana que conhecemos. Era baseada em
contrastes entre sabores doces, salgados e azedos - pense, por exemplo, em
melões com molho de tripas de peixe. "Se algo era comestível, os romanos
comiam."
A lista inclui, por exemplo, papagaio
assado com alho-porró e uma redução de mosto de uvas - e pitadas de silphium.
É possível que jamais saibamos a verdadeira
identidade da erva, mas podemos aprender com seu declínio. O último censo em
Cirene mostra que muitas espécies estão desaparecendo, que a terra arável está
perdendo espaço para o deserto e que a pastagem está fora de controle. O
Império Romano há muito se foi, mas parece que estamos cometendo os mesmos
erros.
@culinária
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