quarta-feira, 22 de março de 2017

Carne, vitamina C e capitalismo (Helio Gurovitz)

O Globo - 20/03/2017
 A Operação Carne Fraca levantou um dos fantasmas mais antigos da humanidade, revelou crimes repulsivos de uma minoria dos frigoríficos, o despreparo da Polícia Federal (PF) e da imprensa para lidar com o tema e demonstrou a absoluta ignorância do brasileiro sobre o capitalismo.

Derivaram da ação dois tipos de preocupação. O primeiro diz respeito à saúde da população brasileira. O segundo, à da nossa economia. A ação da PF foi justificada com base no primeiro. A reação do governo, no segundo. Ambos são legítimos e precisam ser compreendidos.

O cuidado com os animais que comemos é uma das mais arcaicas questões humanas, presente no rito de várias religiões. O catolicismo restringe a carne em certas datas sagrados. O hinduísmo simplesmente a veta. Judaísmo e islamismo seguem até hoje regras rigorosas para o abate que, sob o argumento de respeitar determinações divinas, serviam para manter padrões mínimos de higiene nas comunidades antigas.

Depois da Peste Negra, as cidades medievais afastaram de seu perímetro matadouros e curtumes, de onde imaginavam que vinha a praga (ela era, na verdade, causada por uma bactéria transmitida por pulgas de roedores). O horror provocado pela carne contaminada resistiu até o século XX. Tornou-se uma bandeira dos movimentos sociais no mundo todo, usada como forma de gerar repulsão pelo “capitalismo que envenenava o povo”.

Na União Soviética, o cineasta Sergei Eisenstein representou, no clássico Encouraçado Potemkin, a crueldade dos capitalistas na imagem vermes que consumiam a carne destinada aos marujos do navio onde começou a rebelião de 1905, embrião da Revolução Russa. A carne podre também foi invocada pelo escritor Upton Sinclair para denunciar as condições sórdidas dos matadouros americanos no best-seller The Jungle (A Selva).

As cenas hediondas do livro deixaram a população tão atemorizada que o governo americano se viu obrigado a impôr regulações sanitárias rigorosas e a criar, em 1906, a Food and Drug Administration (FDA), com seu extenso sistema de inspeção alimentar. Símbolo da esquerda, SInclair perdeu nos anos 1930 uma eleição para governador da Califórnia em que prometia acabar com a pobreza.

O recurso à imagem da carne podre transcendeu há muito a religião e a psicologia para entrar na política. Quando o presidente da República, Michel Temer, aparece nas primeiras páginas dos jornais comendo picanha numa churrascaria (foto), tenta afastar da mente da população o horror trazido pelo esquema de corrupção que fazia vista grossa à carne contaminada, desmascarado pela Polícia Federal na última sexta-feira.

Dos 4.837 frigoríficos sujeitos a inspeção federal, a PF encontrou suspeitas de irregularidade em 21. Muitas delas são comprovadas por meio de escutas telefônicas. Apenas uma por meio de análise química. A imprensa embarcou de modo acrítico no relatório da PF que, entre tantos absurdos científicos, descreve como cancerígeno a vitamina C (cujo nome cientítico é ácido ascórbico).

Tanto o ácido ascórbico quanto o sórbico – outro composto citado nos grampos da PF – são conservadores comumente usados na indústria alimentícia, ambos autorizados pela Anvisa (nossa versão brasileira da FDA). Até onde se saiba, nenhum deles é cancerígeno.

A vitamina C, ao contrário, é um anti-oxidante a que são atribuídas propriedades anti-envelhecimento. Pode ser consumida em qualquer quantidade, o excesso é excretado na urina. Além de conservar alimentos, é nutritiva. Apenas em combinação com um outro conservante comum, o benzoato de sódio, pode ocorrer, em certas condições, uma reação química que resulta em benzeno – este sim cancerígeno. Mas não há notícia de uso de benzoato com o ácido ascórbico na carne. Benzoato é usado só em refrigerantes.

Esses são conhecimentos de química básica, acessíveis a alunos do ensino médio, mas infelizmente ignorados tanto na PF quanto na maioria das redações que reproduzem os relatórios de autoridades como se fossem textos sagrados. A vitamina C continua a ser necessária como nutriente e conservador alimentar e, na prática, a operação da PF não oferece nenhum argumento para alguém se tornar vegetariano.

Claro que o descaso com a saúde pública – fosse em um único frigorífico – já seria escandaloso. Saber que funcionários do Ministério da Agricultura recebiam propina para aceitar a maquiagem de produtos impróprios para o consumo deixa qualquer um indignado. Ainda mais quando a denúncia envolve duas das maiores multinacionais brasileiras, BRF e J&F, incensados ao longo dos governos petistas como campeões nacionais. Ambos têm o Estado como acionista e sempre contaram com generosos subsídios para exportação.

Aqueles, contudo, que, desde os tempos de Eisenstein e Upton Sinclair, imaginam o capitalismo como um sistema cruel, em que o povo é alimentado com carne podre por empresários inescrupulosos, precisam rever os próprios preconceitos. É perfeitamente legítimo criticar BRF e J&F pela associação com o capitalismo de compadrio promovido há décadas no Brasil. Mas é irreal imaginar que as empresas têm interesse em prejudicar a saúde pública.


 Só quem nunca vendeu um prego pode pensar que interessa a um açougueiro vender carne podre. Todo comerciante sabe que a clientela só volta quando o produto é bom. É para garantir a qualidade que existem as dezenas de normas sanitárias que todos precisam respeitar. No caso das grandes multinacionais, as exigências são ainda mais rígidas.

Ninguém exporta nada sem cumprir todas as regras dos países de destino. A Organização Mundial do Comércio (OMC) tem registrado aumento nas barreiras fitossanitárias, usadas como forma de proteger a produção nativa de alimentos. Houve, segundo o último relatório anual da OMC, 468 notificações do tipo em 2000 – ante 1681 em 2015.

Se indústrias nacionais de alimentos ainda conseguem exportar para mercados cada vez mais rígidos e exigentes, é porque têm de cumprir regras que garantam a qualidade de seus produtos em todos eles. Quem garante isso não é outro sistema econômico, senão o capitalismo em sua forma mais avançada – aquela que promove o livre-comércio por meio de instituições globais como a OMC.

Foi a regulação internacional, hoje combatida pelo nacionalismo populista nos países ricos, que abriu mercado aos países emergentes e permitiu à nossa indústria se tornar a maior exportadora de carne do mundo. É certo questionar se isso teria sido possível sem uma mãozinha do BNDES – é provável que sim. Mas é lamentável que a imagem dos produtores seja contaminada pela ação de alguns executivos que, aparentemente, preferiram desempenhar o papel dos vermes no filme de Eisenstein.


http://g1.globo.com/mundo/blog/helio-gurovitz/post/carne-vitamina-c-e-capitalismo.html

@política @Brasil

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