terça-feira, 7 de março de 2017

O discurso de Trump no congresso - Luiz Gonzaga Belluzzo e Gabriel Galípolo

VALOR ECONÔMICO - OPINIÃO - 07/03/2017
O artigo da capa da revista The Economist publicada no início de fevereiro, intitulado "Um insurgente na Casa Branca", destaca que quanto mais o Sr. Trump emprega discursos para ofender a "opinião educada", mais seus apoiadores estão convencidos que ele irá desalojar a professoral e gananciosa elite dos salões de Washington.
O artigo chega a associar sua popularidade com a percepção de sua capacidade de esquivar-se dos experts que subvertem o desejo popular para servirem a si mesmos. A massa de prejudicados nos últimos trinta anos manifesta sua rejeição ao establishment, inconformada com a dramática ruptura das relações mais "equilibradas" entre os poderes do "livre mercado" e o resguardo dos direitos socioeconômicos dos cidadãos desfavorecidos.
Esse sentimento foi reforçado após o resultado nas urnas contrariar novamente a previsão dos economistas. Ao invés de desacelerarem, os consumidores britânicos passaram a gastar mais e os setores de construção, manufatura e serviços se recuperaram desde a saída da União Europeia. O mercado de ações americano ganhou quase US$ 3 trilhões em valor desde a eleição em 8 de novembro.
Impressiona o poder performático da linguagem de Trump na construção da ´realidade´ dos que o elegeram
Segundo Robert Skidelsky, ante o comportamento contrário ao esperado, os economistas reagem como o alfaiate que culpa o cliente porque seu corpo não se "ajusta" ao novo terno.
No Congresso, Trump reafirmou o discurso que o conduziu à Casa Branca: "Nós não deixaremos os erros das décadas recentes definirem o curso do nosso futuro. Por muito tempo nós assistimos nossa classe média encolher enquanto exportávamos nossos empregos e riqueza para países estrangeiros. Nós financiamos e construímos um projeto global após o outro, mas ignoramos o destino das nossas crianças em cidades como Chicago, Baltimore, Detroit e tantos outros lugares pelo país. Nós gastamos trilhões de dólares fora do país, enquanto nossa infraestrutura doméstica se desintegrou".
Os dados manejados por Trump são contestáveis. No entanto, impressiona o poder performático da linguagem do novo presidente na construção da "realidade" vivida pelos americanos que o elegeram. A imprensa e a mídia social se defrontam com um temível adversário na porfia da comunicação de massas. Ele afirma, sem trepidar:
Noventa e quatro milhões de americanos estão fora da força de trabalho; mais de quarenta e três milhões de pessoas vivem em pobreza e dependem de programas assistenciais para se alimentarem, os chamados "food stamps"; mais de uma em cada cinco pessoas não estão trabalhando em seus cinco primeiros anos de carreira; essa é a pior recuperação financeira em 65 anos; nos últimos oito anos a administração passada colocou mais dívidas novas que quase todos os outros presidentes combinados (faltou lembrar que a maior parte dessa dívida deriva do resgate aos bancos que, sob a égide da desregulamentação financeira, levaram a alavancagem exótica às raias do paroxismo); mais de um quarto dos empregos da manufatura estadunidense foi perdida desde que o Nafta foi aprovado; mais de 60 mil fábricas foram perdidas desde que a China se juntou à OMC em 2001; o déficit comercial americano no último ano esteve próximo de US$ 800 bilhões.
"A América dispendeu aproximadamente US$ 6 trilhões no Oriente Médio, enquanto a nossa infraestrutura se desintegrava. Com US$ 6 trilhões nós poderíamos reconstruir nosso país, duas vezes. (...) Indústrias agonizantes ressuscitarão rugindo... Nossos militares receberão os recursos que seus bravos guerreiros tanto merecem. A infraestrutura em desintegração será substituída por novas rodovias, pontes, túneis, aeroportos e ferrovias reluzentes através da nossa linda terra".
Trump afirma que chegou o momento de um novo programa nacional de reconstrução, e solicita ao Congresso a aprovação da legislação que produzirá US$ 1 trilhão em investimento em infraestrutura nos Estados Unidos - financiado tanto por capital público quanto privado, carregando a expectativa de criar milhões de novos empregos.
Esse esforço se apoia em dois pilares: "Compre americano e contrate americano". São sintomáticos os empenhos para que a construção do Keystone and Dakota Access Pipelines utilize aço americano em seus oleodutos, e a retirada dos Estados Unidos do antes celebrado Tratado Transpacífico, agora apelidado de "assassino de empregos". O magnata alaranjado do ramo imobiliário edificou sua popularidade ao prometer tarifas de 45% sobre a importação de produtos chineses, extensíveis às empresas que deslocarem sua produção para fora do país.
Os desafios que ameaçam a criação de bons empregos para a classe média são proporcionais à agressividade presidencial. Há quem chame a atenção para os riscos inerentes à anunciada desregulamentação financeira, a brecada na Lei Dodd-Frank; Janet Yellen promete seguir com a elevação na taxa de juros; o previsível terremoto no mercado de trabalho com o avanço da chamada quarta revolução industrial.
Segundo James Galbraith apenas 8% dos empregos americanos hoje estão na manufatura e eles dificilmente retornarão aos 30% dos anos 1950, pois novas fábricas teriam a melhor tecnologia disponível, o que implicaria empregar muito menos mão de obra.
Para Galbraith os governos terão de compensar a tendência estrutural de queda no emprego na indústria pela criação de empregos úteis no setor de serviços, como educação e saúde, e investimentos em infraestrutura, o que pode ser incompatível com a promessa de reforma fiscal com redução histórica na tributação.
Malgrado as diferenças históricas, são inequívocas as semelhanças de inspiração entre o programa de Trump e as políticas econômicas dos regimes "populistas" dos anos 30 do século XX. As semelhanças abrangem a proclamação da primazia do interesse nacional; a privatização do Estado, ocupado diretamente por um comitê de grupos empresariais; a politização da economia, administrada despoticamente pelo estatal-privatismo, na contramão do "mercado". A onipresença da Goldman Sachs no gabinete de Trump mimetiza o poder da Siemens e da Krupp na política econômica do III Reich.
Recomendamos a leitura das memórias de Hjalmar Schacht, o banqueiro de Hitler.
Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.
Gabriel Galípolo, professor do departamento de economia da PUC/SP, é sócio da Galípolo Consultoria

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