quarta-feira, 29 de março de 2017
Não é só a direita: por que parte da esquerda britânica apoia o Brexit?
Quando os britânicos acordaram no dia de 24 de junho de 2016, a apertada vitória da decisão de deixar a União Europeia, aprovada em um plebiscito, não foi a única surpresa: embora tenha sido uma bandeira defendida durante anos pela direita no Reino Unido, a saída do bloco foi, de certa forma, também abraçada pela esquerda, mais especificamente pelo Partido Trabalhista.
De acordo com uma série de pesquisas publicadas após o histórico resultado, que desencadeou o processo conhecido como Brexit, eleitores trabalhistas votaram de forma majoritária pela permanência britânica no bloco (63%).
Mas a minoria significativa teve peso determinante no resultado final do pleito - o Brexit venceu por pouco mais de 1 milhão de votos entre as 33 milhões de pessoas que foram às urnas.
A surpresa foi ainda maior pelo fato de que regiões tradicionalmente de esquerda, como o nordeste da Inglaterra e o País de Gales, engrossaram a vitória eleitoral da saída da UE ─ no nordeste, por exemplo, o Brexit venceu com um percentual de votos (58%) maior do que do resultado geral (52%).
Esquerdistas pró-Brexit ganharam seu próprio apelido: lexiteers, um híbrido das palavras "left" (esquerda, em inglês) e Brexit.
O termo chegou a ser mencionado durante a campanha para o plebiscito, mas pareceu ter passado despercebido até o resultado das urnas.
Por que a esquerda?
Contudo, como a própria arquitetura do Brexit, as motivações que levaram eleitores desse espectro político a apoiar uma causa tradicionalmente associada à direita são mais complexos do que um simples apelido.
"O euroceticismo nunca foi exclusividade da direita britânica, e durante a campanha para o referendo havia setores da esquerda declarando apoio ao Brexit", explica o cientista político Jon Tonge, da Universidade de Liverpool, um dos principais analistas eleitorais britânicos.
"Porém, suas vozes eram minoria e tampouco contavam com personalidades políticas fazendo campanha pela Brexit, como foi o caso do Partido Conservador e do Ukip (legenda fundada nos anos 90 exclusivamente com a plataforma de saída da UE)", acrescenta.
Em meio a um Partido Trabalhista marcado pela guinada rumo ao centro nos anos 90, que mudou a imagem associada ao socialismo e, pela primeira vez na história política britânica, garantiu à legenda três mandatos consecutivos no governo, entre 1997 e 2010, a causa eurocética foi abafada.
Ao contrário do que aconteceu em 1975, quando o governo trabalhista de Harold Wilson precisou convocar um plebiscito sobre a permanência no bloco, ao qual havia se juntado apenas três anos antes, para aplacar a ira do partido e, sobretudo, dos sindicatos de trabalhadores, históricos aliados da legenda. Ironicamente, com ajuda crucial dos conservadores, o Brexit original foi derrotado com sobras - 67% a 23%.
"Em 2016, tivemos a situação oposta, em que um premiê conservador (David Cameron) precisou convocar a consulta por pressão das alas eurocéticas do seu partido. Só que o resultado não lhe favoreceu", conta Alan Charlton, embaixador britânico em Brasília entre 2008 e 2013, referindo-se à renúncia de Cameron, que fez campanha aberta contra o Brexit.
Desconfiança
Tonge, porém, explica que o euroceticismo trabalhista nunca "morreu".
"A esquerda tem problemas com a UE e é errado assumir que lexiteers são simplesmente xenófobos. O argumento é que a união facilitou o trabalho do capitalismo e suprimiu os direitos dos trabalhadores, algo reforçado pelas medidas de austeridade que o bloco impôs a países como a Grécia e a Irlanda quando precisaram de ajuda econômica", explica Tonge.
"Sem falar que durante muito tempo houve alas trabalhistas lamentando a entrada do Reino Unido na UE (1972) porque isso mataria de vez o projeto de um governo socialista no país", acrescenta.
O cientista político explica, porém, que a convicção política não é a única explicação para a popularidade do Brexit entre eleitores de esquerda - que também inclui o Partido Nacionalista Escocês, cuja terça-parte do eleitorado (36%) votou pelo Brexit na Escócia, apesar da vitória tranquila dos defensores da permanência do Reino Unido na UE (remainers) no país.
"Não estou dizendo que o argumento sobrevive a uma análise forte, mas eleitores dessas regiões usaram o plesbiscito para manifestar sua percepção de que a UE não ajudou a classe trabalhadora e criou dificuldades por causa da livre movimentação de imigrantes dos países do bloco", diz Tonge.
"E, sim, há eleitores de esquerda que dividem com os de direita a reclamação de que a UE é uma instituição burocrática e que afetou a soberania britânica", diz Tonge.
Estereótipos
Em um artigo publicado na terça-feira pelo jornal americano The New York Times, o acadêmico britânico Alan Johnson expressa a preocupação com generalizações.
"Somos lexiteers, mas nem por isso somos xenófobos. Votamos pelo Brexit porque tememos o projeto autoritário neoliberal de integração proposto pela União Europeia. Defendemos um sistema político democrático", escreveu Johnson.
O web designer Trev Prellie, de 51 anos, que fez campanha aberta pelo Brexit em suas contas de mídias sociais, diz que o argumento de que todos os lexiteers são contrários à imigração é o que mais o deixou frustrado em debates e conversas.
"Para mim, o voto não teve nada a ver com imigração. Votei contra uma organização formada por banqueiros que não foram eleitos por mim. Quando olho para o que a UE fez com a Grécia, não vejo uma instituição benevolente, mas sim uma que passou por cima do voto popular dos gregos, cuja maioria era contra a austeridade", afirma.
Prellie vive em Birmingham, segunda maior cidade do Reino Unido e tradicional bastião da esquerda britânica.
"Além do mais, sou socialista e defendo, por exemplo, a nacionalização de serviços públicos essenciais, algo que a legislação da UE não permite", completa.
'Fronteiras reorganizadas'
Jon Tonge afirma que o resultado do plebiscito britânico mostra o que se pode chamar reorganização de fronteiras políticas no Reino Unido e na Europa, em que tanto partidos de esquerda quanto de direita buscam um discurso mais nacionalista e protecionista.
Isso ainda que o sucesso de políticos da considerada extrema-direita, como Marine Le Pen, na França e Geert Wilders na Holanda, obtenha mais atenção.
"O populismo está nos dois lados em um momento em que muitas pessoas na Europa e no mundo estão desiludidas com a globalização e se sentem alienadas do processo político", finaliza.
http://www.bbc.com/portuguese/internacional-39431590
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