domingo, 31 de maio de 2020

A Força Deletéria da China(Larry Rohter, Época, 29 5 2020)

L.R. - A FORÇA DELETÉRIA DA CHINA

Sexta-feira, 29 de Maio de 2020 
LARRY ROHTER
Uma vez um chanceler brasileiro me disse, conversando em off, que “o mundo ainda vai ter saudades da hegemonia americana”

Em 1997 entrou em vigor um tratado em que o Reino Unido concordou em devolver a próspera colônia de Hong Kong à China, e os chineses prometeram seguir o princípio de “um país, dois sistemas”, outorgando ao mais importante entreposto comercial e financeiro da Ásia sua plena autonomia por 50 anos. Na semana passada, porém, o Partido Comunista Chinês (PCC) jogou o acordo no lixo, impondo uma nova “lei de segurança nacional” (sempre uma frase nefasta, como bem sabem os brasileiros) e reagindo com repressão brutal quando o povo de Hong Kong tomou as ruas para protestar contra o descumprimento do tratado.

Por que estou falando disso quando o Brasil e o mundo enfrentam uma pandemia letal? Por uma razão fundamental: o tratamento dado aos 7,5 milhões de habitantes de Hong Kong mostra o roteiro que a China, cada vez mais poderosa e beligerante, pretende implementar em suas relações com o mundo. Tratados e acordos não valem nada, qualquer oferta de cooperação é apenas um pretexto para aumentar o poderio do PCC, e nenhuma oposição será tolerada.

É bom lembrar que em 18 de maio, na reunião anual da Organização Mundial da Saúde (OMS), a China ofereceu US$ 2 bilhões em ajuda para combater a pandemia, que se originou na China em dezembro e foi escondida e subestimada pelo governo chinês durante semanas, deixando o resto do mundo desprevenido. Mas a aparente generosidade chinesa tem uma contrapartida: a China terá um papel decisivo na investigação que a OMS pretende lançar para determinar as origens da pandemia e tomar medidas para evitar uma reincidência.

Originalmente, a Austrália tinha sugerido que qualquer investigação seja independente. Mas a China reagiu iradamente à proposta, colocando tarifas de 80% em exportações australianas de grãos, ameaçando cortar importações de carne e vinho. Um alto funcionário do PCC afirmou que a Austrália é apenas um “chiclete grudado na sola de nosso sapato”. Isso não lembra as bravatas e insultos do embaixador chinês em Brasília em março, quando o governo brasileiro criticou o fracasso dos esforços chineses para conter o vírus que agora matou milhares de brasileiros? Pois é. Os australianos acabaram se curvando e aderindo a um plano mais suave da Comunidade Europeia, dando protagonismo aos chineses na investigação.

Quando eu era correspondente na China nos anos 1980, a China seguia uma política que Deng Xiaoping, o ditador de turno naquela época, chamava de “Esconder nossa força e dar tempo ao tempo”. O país estava saindo do caos da Revolução Cultural e ainda tinha uma economia fraca. Mas depois de quatro décadas de crescimento anual de dois dígitos e investimentos maciços nas forças armadas o PCC comanda uma superpotência. Xi Jinping, o mandachuva atual, não precisa mais esconder a força. Com o mundo distraído pela pandemia que os próprios chineses espalharam, o tempo de ostentá-la chegou. Se não gosta, dane-se.

A repressão em Hong Kong e a chantagem aos australianos são apenas duas manifestações disso. Ao longo de uma fronteira disputada com a Índia, tropas chinesas estão abertamente violando uma linha de cessar-fogo estabelecida em 1962. No Mar da China Meridional, que apesar do nome são águas internacionais que também banham as costas de outros seis países, todos eles com direitos reconhecidos pela lei internacional, a China está ilegalmente ocupando ilhotas e construindo bases nelas. E as ameaças contra Taiwan, que Beijing considera uma “província rebelde”, mas na prática é um país independente desde 1949 e uma democracia exemplar, são cada vez mais estridentes.

Não sou a favor da hegemonia de ninguém e reconheço que o domínio americano trouxe sofrimento a vários países, entre eles o Brasil. Mas os Estados Unidos são um país plural e multicultural, com várias raças, etnias, religiões e tendências políticas, todas tentando forjar um consenso ou, ao menos, um modus vivendi. A China não: tem uma só etnia dominando um partido único que exige total unidade de pensamento. Não entende a convivência, é tudo ou nada.

Tentando reescrever a história, a China agora alega que foi transparente nas fases iniciais da pandemia. Não foi, e todos nós sabemos disso. Na propaganda interna, também aponta a mortandade nos Estados Unidos e no Brasil como prova da superioridade do sistema autoritário deles. Outra mentira. Meu medo imediato é que o relatório da OMS seja outra tentativa de branquear a verdade. Mas no longo prazo devemos todos temer que predomine a visão distópica que o PCC pretende estabelecer como realidade mundial.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.