Por Marcelo Carnielo - O que não se diz sobre a pandemia
Quinta-feira, 21 de Maio de 2020 - 00:18
Valor Econômico / Opinião
Por Marcelo Carnielo
Problemas da saúde existem desde sempre, só tornaram-se mais evidentes.
Ao ler as publicações diariamente sobre a covid-19 e os seus efeitos no sistema de saúde brasileiro, tenho a impressão de que todo o caos no setor é provocado por essa doença. Parece- me que esquecemos que o sistema público de saúde sempre esteve em crise, desde que nasceu e que as UTIs (Unidades de Terapia Intensiva) sempre estiveram lotadas. Em 106 UTIs adultas analisadas pela Planisa nos últimos três anos, a ocupação média foi de 90%, isto é, dentro do limite de ocupação destas unidades, muito embora alguns possam questionar que o limite seria 100%, o que é impraticável.
Muito se fala da possibilidade de se escolher qual paciente irá utilizar um leito de UTI e qual não. Desde sempre, nos rincões deste país, muitas crianças nascem precisando de leitos de UTI Neonatal, mas do local de nascimento até a UTI Neonatal mais próxima, a algumas centenas de quilômetros, essa criança, apesar de tudo, nem foi submetida à escolha: morreu, morre e provavelmente continuará morrendo. A verdade é dolorida, mas aqui no Brasil e no mundo não há e não haverá recursos para todos, portanto, as escolhas acontecem desde sempre, o problema é que, muitas vezes, elas são péssimas, baseadas em questões políticas e outras.
Ainda, sabidamente muitos pacientes ocupam indevidamente leitos de UTI, especialmente na esfera privada, onde os ganhos financeiros nestas unidades são reais, resultado de um modelo de remuneração que coloca o hospital, as fontes pagadoras e os próprios médicos no centro do cuidado, enquanto deveria ser o paciente. Muito embora o SUS remunere R$ 508,63 por uma diária nível III e custe as unidades hospitalares, nestas 106 UTIs adultas estudadas, em média R$ 1.934.
Apesar do subfinanciamento e de todos os avanços do SUS, além da gestão de excelência e inquestionável de muitos hospitais públicos e privados (filantrópicos e não filantrópicos), alguns comparáveis aos melhores hospitais do mundo, o sistema de saúde como um todo tem muito a melhorar.
Estima-se que pelo menos 10% dos pacientes internados no Brasil são por condições sensíveis à atenção primária, isto é, poderiam ser tratados na assistência básica e, segundo estudo da consultoria IAG Brasil, 80% dos pacientes do SUS permanecem internados além do necessário. Com isso, além de onerar os cofres públicos, prejudica a oferta de leitos e, consequentemente, aumenta significativamente o desperdício dos recursos da saúde.
Em estudo conduzido pela Planisa em uma unidade hospitalar com mais de 500 leitos, registrou- se excedente de diária acima de R$ 4 mil por mês, que consumiram mais de R$ 5 milhões mensais desnecessariamente. Então, ao invés de pensarmos somente em ampliação de leitos, que requer investimento e tempo, que tal pensarmos em utilizar melhor os leitos que já existem?
Agora, por exemplo, com a covid- 19, muitos hospitais de campanha se espalham pelo país. Longe de se avaliar aqui os custos e a efetividade destes hospitais, mas por que não se contratam primeiramente os leitos já existentes em hospitais privados, provavelmente mais baratos e que já possuem estrutura e profissionais capacitados? Afinal, o problema de atendimento não termina com a disponibilização do leito e do respirador, mas sim com a alta do paciente e, para que isso ocorra, a capacitação e habilidade dos profissionais de saúde são fatores imprescindíveis.
Soma-se a isso, pacientes submetidos a cirurgias que não precisavam ou que poderiam ser realizadas em centros cirúrgicos-ambulatoriais, os erros assistenciais, as reinternações por recaídas, as fraudes, entre outros. O médico Claudio Lottemberg e outros autores, em seu livro “A revolução digital na saúde”, afirma que levantamentos indicam que cerca de 60% das cirurgias realizadas não seriam necessárias. Estima-se que os desperdícios da saúde brasileira sejam ao redor de R$ 22 bilhões a cada ano, o que nos coloca na 51ª posição, entre 56, no índice da Bloomberg.
Outro fenômeno que observamos com a covid-19, principalmente na esfera privada, é a ociosidade das unidades de emergência, que quase que milagrosamente ficaram vazias. Diante disto, pergunto: os pacientes não estão ficando mais doentes? Ou utilizavam- se da emergência de forma ambulatorial? Já sabemos que alguns pacientes graves adoecem em casa com medo de ir à emergência por causa da covid-19, mas de modo geral, quanto dinheiro é consumido nas emergências desnecessariamente? Haja vista que são unidades caras e que não deveriam receber pacientes com necessidades ambulatoriais.
De modo geral, o sistema de saúde brasileiro é desconectado. Apesar dos esforços, ainda é desafiador a organização da rede de assistência no país. Espera-se que as plataformas com dados de pacientes da rede pública e suplementar possam convergir e se relacionar entre si algum dia, para quem sabe, por exemplo, o tão esperado prontuário eletrônico de saúde se torne realidade, algo essencial para gerar ganhos importantes de eficiência.
Como se não bastasse, vivemos emum país de imensa desigualdade social. Dentro da cidade de São Paulo, a expectativa de vida ao morrer de um morador da região da Paulista é 79,4 anos, enquanto a média de idade ao morrer de um morador no Jardim Angela é 55,7 anos, conforme mostra o Mapa da Desigualdade da Rede Nossa São Paulo. Soma-se a isso o envelhecimento acelerado da população brasileira, as causas externas (violência) e a incidência de doenças infectocontagiosas. Em 2019, o país registrou crescimento de 488% nos casos de dengue, comparando com 2018, segundo dados do Ministério da Saúde.
Portanto, os nossos problemas não estão somente na troca do ministro, na argumentação de insuficiência de leitos ou de equipamentos de proteção individual (EPI), muitos estão aí desde sempre. A única diferença é que com a covid-19 todas essas questões tornaram-se mais evidentes.
Cabe aqui comentar que não estou diminuindo a gravidade da covid-19, apenas reforçando que o sistema de saúde como um todo sempre teve muitos desafios. Cabe talvez, agora, à luz da covid-19, avançar mais rapidamente.
"Levantamentos indicam que cerca de 60% das cirurgias realizadas não seriam necessárias. Estima-se que os desperdícios da saúde brasileira sejam ao redor de R$ 22 bilhões a cada ano, o que nos coloca na 51ª posição, entre 56 países no índice da Bloomberg"
Marcelo Carnielo é diretor técnico da Planisa e especialista em administração hospitalar e gestão de custos e finanças
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