segunda-feira, 13 de julho de 2020

A China como ‘bicho-papão’ da economia(Dani Rodrik, Valor, 13 7 2020)

A China como ‘bicho-papão’ da economia

segunda-feira, 13 de julho de 2020

  
Valor Econômico  / Opinião

Por Dani Rodrik

Destreza industrial chinesa não é resultado das forças de mercado irrestritas.

Com a propagação da covid- 19 da China para a Europa e depois para os Estados Unidos, os países atingidos pela pandemia se viram numa disputa insensata por suprimentos médicos — máscaras, ventiladores, roupas de proteção. Na maior parte das vezes, foi à China que eles tiveram de recorrer. 

Quando a crise estourou, a China tornou-se a maior fornecedora mundial de produtos essenciais, respondendo por metade de todas as importações europeias e americanas de equipamentos de proteção individual. “A China lançou as bases para dominar o mercado de equipamentos de proteção e suprimentos médicos pelos anos vindouros”, afirma uma reportagem recente do “The New York Times”. 

Quando a China voltou-se para os mercados mundiais, ela teve a vantagem do suprimento virtualmente inesgotável de mão de obra barata. Mas como todos reconhecem agora, a destreza industrial da China não é resultado das forças de mercado irrestritas. 

Como parte de sua política Made in China 2025, o governo chinês estabeleceu metas ambiciosas de aumento da participação dos produtores domésticos no mercado global de suprimentos médicos. A reportagem do “Times ” explica em detalhes como o governo forneceu terrenos baratos para as fábricas chinesas, concedeu empréstimos subsidiados, direcionou empresas estatais para produzir materiais importantes e estimulou as cadeias de fornecimento domésticas exigindo que hospitais e empresas usassem insumos locais. 

Por exemplo, Sichuan, a segunda maior província da China, reduziu à metade o número de categorias para as quais as importações de equipamentos médicos eram permitidas. A maioria dos hospitais foi obrigada a obter tudo no mercado local, com apenas os principais podendo trazer suprimentos de fora do país. 

A mídia ocidental está agora repleta de relatos do “esforço da China para dominar engrenagens importantes da máquina industrial global”, novamente nas palavras do “The New York Times”. 

Cada vez mais o papel da China na economia mundial é retratado em termos reminiscentes não do “doux commerce”, mas sim da agressão imperial. O autoritarismo crescente do presidente chinês Xi Jinping e a escalada dos conflitos comerciais com os EUA obviamente também entram nessa narrativa. 

As tensões estratégicas e geopolíticas entre os EUA e a China são reais. Elas estão fundamentadas no crescente poder econômico e militar da China e na relutância dos líderes dos Estados Unidos em reconhecer a realidade de um mundo inevitavelmente multipolar. Mas não deveríamos permitir que a economia se torne refém da geopolítica, ou pior, que ela reforce e amplifique a rivalidade estratégica.

Para começar, precisamos reconhecer que um modelo econômico misto e conduzido pelo Estado sempre esteve na base do sucesso econômico chinês. Se metade do milagre econômico da China reflete sua volta para os mercados depois do fim da década de 70, a outra metade é resultado de políticas de governo ativas que protegeram estruturas econômicas antigas — como as empresas estatais —, enquanto novos setores eram semeados através de um grande número de políticas industriais.

É claro que a população chinesa foi a mais beneficiada, experimentando a mais rápida redução da pobreza da história. Mas esses ganhos não ocorreram à custa do resto do mundo. Longe disso. As políticas de crescimento que hoje despertam a ira de outros países são a razão de a China ter se tornado um mercado tão grande para os exportadores e investidores ocidentais. Mas as políticas industriais chinesas, como as empregadas no caso dos suprimentos médicos, não são injustas para com os concorrentes de outras partes do mundo? 

Deveríamos ter cautela antes de chegar a tal veredito. A justificativa padrão para a política industrial é que novos setores produzem repercussões de aprendizagem, externalidades tecnológicas e outros benefícios sociais amplos que tornam o apoio estatal desejável. Mas muitos economistas ocidentais pressupõem que os governos não são muito bons em identificar setores que merecem apoio, e que os consumidores domésticos e contribuintes arcam com a maior parte dos custos. Em outras palavras, se a política industrial chinesa foi mal conduzida, é a própria economia chinesa que sofreu como resultado. 

Pela mesma lógica, se os planejadores econômicos chineses efetivamente miraram atividades em que os benefícios sociais superaram os benefícios privados, produzindo um melhor desempenho econômico, então não está claro por que os estrangeiros deveriam reclamar. 

Isso é o que os economistas chamam de um caso de “reparar as falhas de mercado”. Faz tanto sentido para os estrangeiros quererem impedir o governo chinês de praticar essas políticas, quanto impedir um concorrente de liberar seus mercados. Isso vale principalmente quando a externalidade em questão é global, como no caso das mudanças climáticas. Os subsídios chineses aos painéis solares e turbinas eólicas produziram uma queda no custo da energia renovável — um benefício enorme para o resto do mundo. 

O lado econômico da política industrial pode ficar mais complicado na presença de monopólios e empresas que dominam seus mercados. As políticas industriais podem ser merecidamente restringidas quando permitem o exercício do poder de mercado à custa do resto do mundo. Mas os produtores chineses raramente são acusados de incitar a alta dos preços, que é a marca do poder do mercado. Com maior frequência reclama-se do contrário. Essas considerações provavelmente se aplicam mais às empresas americanas e europeias, que frequentemente são concorrentes dominantes nos mercados de alta tecnologia. 

Nada disso é um argumento para que outros países fiquem impassíveis enquanto a China progride para setores ainda mais sofisticados. Os EUA, por exemplo, têmum longo histórico de políticas industriais bem-sucedidas, especialmente em tecnologias relacionadas à defesa. Há agora um amplo argumento político no espectro político dos EUA, de que o país precisa de uma política industrial mais explícita voltada para bons empregos, inovação e uma economia “verde”. Um projeto de lei encaminhado pelo senador democrata Chuck Schumer propõe um gasto de US$ 100 bilhões em novas tecnologias nos próximos cinco anos.

Grande parte do novo esforço por políticas industriais nos EUA e Europa é motivado pela percepção da “ameça” chinesa. Mas considerações econômicas sugerem que esse foco está errado. As necessidades e soluções estão na esfera doméstica. O objetivo deveria ser construir economias mais produtivas e inclusivas em casa — e não simplesmente superar competitivamente a China ou tentar enfraquecer seu progresso econômico. (Tradução de Mário Zamarian)

"Políticas industriais devem ser restringidas quando permitem o exercício do poder de mercado à custa do resto do mundo. Os produtores chineses raramente são acusados de incitar a alta dos preços, marca do poder do mercado. Com maior frequência reclama-se do contrário"

Dani Rodrik é professor de Economia Política Internacional na John F. Kennedy School of Government de Harvard. Copyright: Project Syndicate, 2020. www. project- syndicate. org

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