MP pode encarecer empréstimos a clubes de futebol
Esportes - Mudança em regra de transmissão de jogos fragiliza uso de recebíveis como garantia para crédito
Segunda-feira, 6 de Julho de 2020
Valor Econômico / Empresas
Talita Moreira, Bruno Villas Bôas e Rafael Rosas De São Paulo e do Rio
A decisão do governo de permitir que o time mandante de uma partida de futebol negocie os direitos de transmissão do jogo poderá dificultar o acesso dos clubes ao crédito. Há instituições financeiras que já estão mais restritivas ao setor, apurou o Valor .
É praxe no mercado brasileiro os clubes anteciparem em bancos e fundos de investimentos parte dos recebíveis gerados pelos contratos de transmissão de jogos. Todos os anos, entre R$ 300 milhões e R$ 500 milhões em pagamentos de cotas de TV são oferecidos pelas equipes como garantia para obter taxas de juros melhores, segundo levantamento do Itaú BBA.
A Globo, detentora dos direitos de veiculação dos principais campeonatos, não entra como anuente nesses empréstimos. Porém, na prática, as instituições financeiras correm o risco de crédito da emissora, considerado baixo, e não o dos clubes, mais elevado.
A medida provisória (MP) 984, editada em junho, embaralhou essa lógica porque passa a haver menos certeza a respeito de onde um jogo será transmitido. O “direito de arena” caberá exclusivamente ao time “da casa”. Para um executivo de um banco que atua no crédito ao futebol, “quem vai sofrer são os clubes”, que vão perder a possibilidade de antecipar recursos com um risco de boa qualidade.
“Com a MP, começou a haver um certo desconforto entre os bancos porque não se sabe como fica esse mercado”, afirma César Grafietti, consultor de finanças do esporte do Itaú BBA, que publica um estudo anual sobre os clubes brasileiros, mas não atua na antecipação de recebíveis às equipes.
Em geral, os bancos de pequeno e médio portes são os que mais financiam os clubes. As maiores instituições financeiras do país hoje operam pouco nesse segmento.
Segundo Grafietti, clubes antecipam pagamentos das cotas de TV em bancos e fundos para ajustar seus fluxos de caixa, que costumam ficar estrangulados com a concentração de receitas no segundo semestre. Nos cálculos do consultor, a cota total de televisão é de R$ 2,1 bilhões por ano—equivalente a cerca de 40% da receita dos times. Desse montante, o que é efetivamente passível de adiantamento é R$ 1 bilhão, já que parte das parcelas é paga conforme o desempenho e pode deixar de existir, por exemplo, em caso de rebaixamento. Costumam ser antecipados de 30% a 50% desse valor.
As antecipações referentes a 2020 já foram feitas, mas o novo cenário pode representar um de safio para as equipes na temporada de 2021, avalia o executivo. “Há uma insegurança jurídica”, diz. “O credores tiraram o pé.”
A incerteza ganhou novos capítulos na semana passada, primeiro quando a Globo rescindiu o contrato de transmissão do Campeonato Carioca devido à quebra de exclusividade pela decisão do Flamengo de exibir na internet, ao vivo, a partida contra o Boavista. A emissora, que tem os direitos do torneio até 2024, manterá os pagamentos deste ano aos 11 clubes que assinam o acordo. Mas uma liminar obtida no sábado pela Federação de Futebol do Estado do Rio (Ferj) determinou que a emissora mantivesse a transmissão de Fluminense e Botafogo, ontem à tarde pela semifinal da Taça Rio, o que tornou mais nebuloso o cenário.
O risco é que, se houver impasses desse tipo em outras competições, os clubes ficarão sem a garantia das cotas de TV aberta para oferecer a bancos e fundos. A Globo detém a exclusividade do Campeonato Paulista até 2021 e do Brasileiro, até 2024.
A Polo Capital, que opera um fundo de direitos creditórios (Fidc) de clubes com R$ 100 milhões em ativos, não vê impacto da MP em sua atividade por enquanto. A gestora carioca antecipa aos clubes parte do que a Globo paga para veicular partidas de futebol, com anuência da emissora. No entanto, a carteira está focada em direitos do Brasileirão no “pay-per-view”. Marcos Duarte, sócio da Polo, observa que os contratos dos clubes nesse caso vão até 2024 e ressalta que a casa não tem ativos do Carioca. Porém, o gestor afirma que a rescisão do torneio fluminense pode gerar incertezas para quem quiser antecipar as cotas de TV desse campeonato em 2021.
Grafietti, do Itaú BBA, aponta na mesma direção. “O problema é que, em janeiro de 2021, os clubes já antecipariam o fluxo do ano, porque vivem girando a bicicleta. Sem isso, muitos não conseguirão nem iniciar o próximo ano”, diz.
A discussão se dá justamente num ano em que a pandemia de covid-19 deve encolher ainda mais o caixa das equipes. Se os direitos de transmissão representaram 41,7% da receita dos clubes em 2018 (dado mais recente disponível), o consultor do Itaú BBA avalia que as cotas de TV poderão chegar a até 60% do total neste ano, quando bilheteria e pagamentos de sócios- torcedores vão encolher.
O presidente do Fortaleza, Marcelo Paz, afirma que ainda não viu um movimento de bancos no sentido de endurecer quanto às garantias exigidas, mas frisa que o clube não fez operações dessa natureza recentemente. “Converso com outros clubes e não vi ninguém falar sobre essa mudança.”
Paz elogia a mudança da regra do direito de imagem, mas pondera que a MP precisa virar lei para ter efeitos duradouros.O dirigente diz que, no modelo anterior, um grupo hipotético de quatro times poderia vender no máximo 12 jogos. Pela nova regra, os mesmos quatro times venderiam até 76 partidas. “Acho que os clubes passam a ter mais protagonismo”, diz.
O advogado Tércio Sampaio Ferraz, professor aposentado da USP e sócio do escritório Sampaio Ferraz advogados, rebate a tese de maior facilidade para os clubes a partir da edição da MP. “A experiência mostra que mesmo tendo possibilidade de negociar individualmente, é difícil prevalecer o lado do mais fraco. Isso precisa ser experimentado. Não é tão simples assim”, diz Ferraz. Ele também critica a adoção de uma medida provisória sobre a questão — “o pior dos instrumentos jurídicos para fazer uma mudança dessas” —e diz que pode haver mais incerteza caso se opte por rompimento de contratos, o que envolveria não apenas multas rescisórias, mas discussões sobre lucros cessantes. “Tem que ser olhado com muito cuidado o ato jurídico perfeito e acabado para os contratos em vigor.”
Esportes - Mudança em regra de transmissão de jogos fragiliza uso de recebíveis como garantia para crédito
Segunda-feira, 6 de Julho de 2020
Valor Econômico / Empresas
Talita Moreira, Bruno Villas Bôas e Rafael Rosas De São Paulo e do Rio
A decisão do governo de permitir que o time mandante de uma partida de futebol negocie os direitos de transmissão do jogo poderá dificultar o acesso dos clubes ao crédito. Há instituições financeiras que já estão mais restritivas ao setor, apurou o Valor .
É praxe no mercado brasileiro os clubes anteciparem em bancos e fundos de investimentos parte dos recebíveis gerados pelos contratos de transmissão de jogos. Todos os anos, entre R$ 300 milhões e R$ 500 milhões em pagamentos de cotas de TV são oferecidos pelas equipes como garantia para obter taxas de juros melhores, segundo levantamento do Itaú BBA.
A Globo, detentora dos direitos de veiculação dos principais campeonatos, não entra como anuente nesses empréstimos. Porém, na prática, as instituições financeiras correm o risco de crédito da emissora, considerado baixo, e não o dos clubes, mais elevado.
A medida provisória (MP) 984, editada em junho, embaralhou essa lógica porque passa a haver menos certeza a respeito de onde um jogo será transmitido. O “direito de arena” caberá exclusivamente ao time “da casa”. Para um executivo de um banco que atua no crédito ao futebol, “quem vai sofrer são os clubes”, que vão perder a possibilidade de antecipar recursos com um risco de boa qualidade.
“Com a MP, começou a haver um certo desconforto entre os bancos porque não se sabe como fica esse mercado”, afirma César Grafietti, consultor de finanças do esporte do Itaú BBA, que publica um estudo anual sobre os clubes brasileiros, mas não atua na antecipação de recebíveis às equipes.
Em geral, os bancos de pequeno e médio portes são os que mais financiam os clubes. As maiores instituições financeiras do país hoje operam pouco nesse segmento.
Segundo Grafietti, clubes antecipam pagamentos das cotas de TV em bancos e fundos para ajustar seus fluxos de caixa, que costumam ficar estrangulados com a concentração de receitas no segundo semestre. Nos cálculos do consultor, a cota total de televisão é de R$ 2,1 bilhões por ano—equivalente a cerca de 40% da receita dos times. Desse montante, o que é efetivamente passível de adiantamento é R$ 1 bilhão, já que parte das parcelas é paga conforme o desempenho e pode deixar de existir, por exemplo, em caso de rebaixamento. Costumam ser antecipados de 30% a 50% desse valor.
As antecipações referentes a 2020 já foram feitas, mas o novo cenário pode representar um de safio para as equipes na temporada de 2021, avalia o executivo. “Há uma insegurança jurídica”, diz. “O credores tiraram o pé.”
A incerteza ganhou novos capítulos na semana passada, primeiro quando a Globo rescindiu o contrato de transmissão do Campeonato Carioca devido à quebra de exclusividade pela decisão do Flamengo de exibir na internet, ao vivo, a partida contra o Boavista. A emissora, que tem os direitos do torneio até 2024, manterá os pagamentos deste ano aos 11 clubes que assinam o acordo. Mas uma liminar obtida no sábado pela Federação de Futebol do Estado do Rio (Ferj) determinou que a emissora mantivesse a transmissão de Fluminense e Botafogo, ontem à tarde pela semifinal da Taça Rio, o que tornou mais nebuloso o cenário.
O risco é que, se houver impasses desse tipo em outras competições, os clubes ficarão sem a garantia das cotas de TV aberta para oferecer a bancos e fundos. A Globo detém a exclusividade do Campeonato Paulista até 2021 e do Brasileiro, até 2024.
A Polo Capital, que opera um fundo de direitos creditórios (Fidc) de clubes com R$ 100 milhões em ativos, não vê impacto da MP em sua atividade por enquanto. A gestora carioca antecipa aos clubes parte do que a Globo paga para veicular partidas de futebol, com anuência da emissora. No entanto, a carteira está focada em direitos do Brasileirão no “pay-per-view”. Marcos Duarte, sócio da Polo, observa que os contratos dos clubes nesse caso vão até 2024 e ressalta que a casa não tem ativos do Carioca. Porém, o gestor afirma que a rescisão do torneio fluminense pode gerar incertezas para quem quiser antecipar as cotas de TV desse campeonato em 2021.
Grafietti, do Itaú BBA, aponta na mesma direção. “O problema é que, em janeiro de 2021, os clubes já antecipariam o fluxo do ano, porque vivem girando a bicicleta. Sem isso, muitos não conseguirão nem iniciar o próximo ano”, diz.
A discussão se dá justamente num ano em que a pandemia de covid-19 deve encolher ainda mais o caixa das equipes. Se os direitos de transmissão representaram 41,7% da receita dos clubes em 2018 (dado mais recente disponível), o consultor do Itaú BBA avalia que as cotas de TV poderão chegar a até 60% do total neste ano, quando bilheteria e pagamentos de sócios- torcedores vão encolher.
O presidente do Fortaleza, Marcelo Paz, afirma que ainda não viu um movimento de bancos no sentido de endurecer quanto às garantias exigidas, mas frisa que o clube não fez operações dessa natureza recentemente. “Converso com outros clubes e não vi ninguém falar sobre essa mudança.”
Paz elogia a mudança da regra do direito de imagem, mas pondera que a MP precisa virar lei para ter efeitos duradouros.O dirigente diz que, no modelo anterior, um grupo hipotético de quatro times poderia vender no máximo 12 jogos. Pela nova regra, os mesmos quatro times venderiam até 76 partidas. “Acho que os clubes passam a ter mais protagonismo”, diz.
O advogado Tércio Sampaio Ferraz, professor aposentado da USP e sócio do escritório Sampaio Ferraz advogados, rebate a tese de maior facilidade para os clubes a partir da edição da MP. “A experiência mostra que mesmo tendo possibilidade de negociar individualmente, é difícil prevalecer o lado do mais fraco. Isso precisa ser experimentado. Não é tão simples assim”, diz Ferraz. Ele também critica a adoção de uma medida provisória sobre a questão — “o pior dos instrumentos jurídicos para fazer uma mudança dessas” —e diz que pode haver mais incerteza caso se opte por rompimento de contratos, o que envolveria não apenas multas rescisórias, mas discussões sobre lucros cessantes. “Tem que ser olhado com muito cuidado o ato jurídico perfeito e acabado para os contratos em vigor.”
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