Sexta-feira, 10 de Julho de 2020
Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Por Maria Cristina Fernandes, de São Paulo
"Has China Won?" mostra como a raiz do conflito entre EUA e China está entranhada na democracia americana e explica por que a volta do Partido Democrata ao poder custará a reduzir as tensões.
O ex-ministro da Educação Abraham Weintraub deve ter ficado tentado a se inscrever como voluntário de Joe Biden ao assistir a um anúncio publicitário de sua campanha. Em menos de dois minutos, a campanha democrata acusa o presidente Donald Trump de leniência com o presidente Xi Jinping, de não ter imposto restrições à entrada de chineses e de complacência com o vírus chinês.
Ainda que relevadas as tintas da campanha eleitoral, o anúncio deixa claro o desnorteamento do governo brasileiro frente a um cenário internacional que os bolsonaristas nunca entenderam, mas sempre mistificaram. Explicita, ainda, o que sempre se soube, mas a ojeriza a Trump escamoteia: a troca de poder nos Estados Unidos, cada vez mais provável, não necessariamente melhorará as relações entre EUA e China.
Num livro escrito antes da pandemia, “Has China Won? The Chinese Challenge to American Primacy ” (ainda sem edição no Brasil), o ex-embaixador de Cingapura nos Estados Unidos, Kishore Mahbubani, se valeu da adesão de George Soros à política de Trump para a China para fazer a aposta que acabou confirmada pelo radicalismo democrata na campanha eleitoral. Soros foi um dos investidores que mais gastou na tentativa de impedir a eleição de Trump em 2016.
O livro se apresenta como um alerta aos americanos sobre os erros que levaram ao avanço chinês, ainda que, ao final de suas 312 páginas, seja possível concluir que o autor já tem uma resposta para o título. O viés pró-China não o empalidece nem surpreende. Em todas as praças, os diplomatas de Cingapura são os mais bem informados sobre o que se passa na China, em grande parte porque a elite do país, descendente dos chineses lá estabelecidos desde o século XIX, mantêm laços culturais, além de estreitas relações comerciais e políticas.
O lugar de onde fala também não desmerece a premissa de que o vigor da sociedade asiática, onde vive metade da população mundial, vem de conexões no eixo que se estende de Teerã a Tóquio, em grande parte desconhecidas no Ocidente. Filho de hindus, que deixaram o Paquistão em 1947 rumo a Cingapura, Mahbubani se escolarizou no alfabeto perso-árabe e foi criado na religião budista da mãe.
É nesta condição que se sente à vontade para dizer que a crença americana nas suas virtudes não é um valor universal. E que a simples derrota do “American First” trumpista não será suficiente para os EUA reconhecerem que a prevalência ocidental, que data apenas dos últimos 200 anos, está ameaçada pela própria governança mundial erguida no pós-guerra sob liderança americana.
A ideia-chave do livro é a de que, na superposição do tabuleiro de hoje sobre aquele do início da Guerra Fria, os Estados Unidos ocupam o papel que foi da União Soviética e os chineses, aquele desempenhado pelos americanos. Parece ousado, mas Mahbubani tem lá seus argumentos.
Diz que na Guerra Fria os Estados Unidos eram flexíveis e racionais na sua tomada de decisão, enquanto a União Soviética era rígida e doutrinária. Enquanto os americanos, depois de se retirarem do Vietnã, se mantiveram longe de conflitos militares de larga escala e passaram a operar multilateralmente, os soviéticos acabaram envolvidos em conflitos desnecessários, que, além de mortes, drenaram recursos de sua economia.
Apesar de contemplar o Vietnã, Mahbubani ignora que não foi a flexibilidade que dominou as relações entre os Estados Unidos e as ditaduras latino-americanas ao longo da década de 1970. O lapso, porém, não invalida o argumento. A começar pela militarização.
Entre 2001 e 2009, as despesas do Pentágono cresceram 70%. Passaram de um terço dos gastos militares de todo o mundo para metade. Essa elevação de gastos, diz, foi legitimada pela própria democracia americana, operada brilhantemente pela indústria bélica. Ao distribuir unidades industriais em estados-chave da Federação, fez uma bancada forte e bipartidária no Congresso, que passou a defendê-la em nome da geração de empregos.
Foi assim que se construiu o apoio parlamentar às desnecessárias intervenções americanas no Afeganistão, no Iraque e nos ataques à Síria. Mas não apenas. Nas contas do autor, nos 190 anos que precederam o fim da Guerra Fria, os Estados Unidos tiveram um embate por ano. Nos 25 anos que se seguiram, a média anual subiu para seis.
Tudo isso não é fruto apenas do eficiente manejo do orçamento nacional pela indústria bélica, mas também daquilo que Mahbubani chama de “diplomacia à venda”. Os postos mais ambicionados da diplomacia americana são entregues aos doadores de campanha. O máximo que um brilhante diplomata de carreira americano pode ambicionar, diz, é ser designado para Bamako, capital do Mali.
A diplomacia chinesa não é conhecida exatamente pela sutileza, haja visto o comportamento do embaixador chinês no Brasil, Yang Wanming, no cabo de guerra com o bolsonarismo. Mas os conflitos não resvalam para as vias de fato. A China não disparou um único tiro na fronteira nos últimos 30 anos. Nem mesmo no recente entrevero com a Índia, país com o qual divide extensa fronteira no Himalaia. Na era dos mísseis nucleares, chineses e indianos se degladiaram com tacapes, facas e arame farpado.
Além disso, a política externa chinesa faz do multilateralismo um contraponto. Em 2017, quando Trump decidiu deixar o Acordo de Paris, não foi seguido por Xi Jinping. Mais recentemente, durante a pandemia, foi por meio da Organização Mundial da Saúde que a China se defendeu dos ataques recebidos em todo o mundo pelas medidas tomadas desde a eclosão dos primeiros casos no país.
Valeu-se da OMS, aliás, de maneira desproporcional à sua contribuição financeira para a entidade, para contrabalançar sua condição de berço do vírus. Promoveu a diplomacia das máscaras e respiradores, mas pouco elevou sua modesta contribuição ao financiamento do órgão.
Mahbubani faz desabrida defesa da política chinesa para seus vizinhos, inclusive em relação a Xinjiang, Tibete, Taiwan e Hong Kong. Coloca cada um num balaio, mas pendura todos na conta da reparação das humilhações e perdas sofridas ao longo do século de humilhação que as potências ocidentais impuseram à China a partir de 1820. Chega mesmo a dizer que seria politicamente tão delicado para um presidente chinês abrir mão do domínio sobre aqueles territórios quanto o seria para um presidente americano devolver a Califórnia e o Texas ao México.
Ainda que, de maneira desigual, o autor também faz cobranças à China. Começa, por exemplo, por indagar por que Trump, ao anunciar a guerra comercial, não enfrentou a resistência de nenhum grande empresário americano. Reação muito distinta daquela de 20 anos atrás quando o ex-presidente Bill Clinton se deparou com empresários enfurecidos ao tentar tirar do país o status de “nação mais favorecida”.
E por quê? A resposta não é simples porque, nesse período, algumas das gigantes americanas, como a Boeing, multiplicaram por dez suas vendas para a China. Outras perdiam a competição para marcas japonesas quando entraram na China e viraram o jogo. A General Motors, por exemplo, tira de lá 42% de suas vendas mundiais.
Se, a despeito disso, nenhuma dessas grandes empresas criticou Trump foi porque a China acumulou um histórico de práticas indefensáveis nas suas relações comerciais. Por longa, a lista merece ser abreviada. O país vale-se de sua condição de “país em desenvolvimento” para impor transferência de tecnologia, ou mesmo a usa como condição para o acesso ao mercado chinês.
Decorre daí a proverbial e indevida apropriação de propriedade intelectual. Empresários lá estabelecidos também se queixam de descumprimento de contratos e da ausência de fóruns para dirimir disputas. E, finalmente, reclamam da imposição de barreiras protecionistas para as empresas locais.
Para o autor, a dificuldade de a China reconhecer esses problemas vem da arrogância em relação ao seu próprio mercado, que, de tão poderoso, traz a ilusão de que os chineses bastam a si mesmos. Foi esse tipo de percepção que levou ao “século de humilhação”do país, quando o diplomata britânico Lord Macartney ouviu do imperador Qianlong que a China tinha tudo o que precisava e, por isso, não lhe interessava o comércio internacional.
Nascido num país em que o mesmo partido está no poder há mais de 60 anos, Mahbubani relativiza as restrições democráticas. Reconhece que os chineses não podem formar partidos, acessar uma imprensa livre ou escolher seus líderes. Mas diz que a aceitação tem por base a comparação com o tempo em que a fome os assolou na Revolução Cultural. Despreza o fato de que os netos daquela geração já chegaram à vida adulta e não têm as mesmas referências. O massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989, que o diga.
“Onde é melhor nascer pobre?”, indaga. A resposta é outra pergunta. Num país (EUA) em que a renda dos 50% mais pobres só declinou nos últimos 30 anos ou noutro (China) que, há 40 anos, tinha 50% de sua população abaixo da linha de pobreza e hoje tem apenas 5%? Se o parâmetro for a liberdade, lá vai outro dado: 0,6% da população americana está na cadeia, enquanto 0,1% está na mesma situação.
Imagine um país com um terço da terra arável e um quarto da água potável dos Estados Unidos com uma população quatro vezes maior. É daí que o autor tira sua explicação para a tolerância chinesa com o autoritarismo. Na próxima edição do livro, poderá desequilibrar ainda mais a balança pró-China com a atualização da pandemia. Com uma população equivalente a 23% da chinesa, os EUA têm 28 vezes o número de mortos.
Haja notificação para reverter a diferença. Mais fácil entendê-la por um sistema que vigia por aplicativo, em cada celular, por onde se pode andar. A desobediência impõe uma quarentena forçada num hotel pago pelo infrator. Democrático não é, mas salva vidas.
Maria Cristina Fernandes, jornalista do Valor , escreve neste espaço quinzenalmente
E- mail: mcristina.fernandes@valor.com.br
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