domingo, 19 de abril de 2020

Quatro livros para curtir no isolamento(Celso Ming, 19 4 2020)

Pessoas de várias formações me perguntam com certa insistência: que leitura você recomenda para este tempo de reclusão?

Não irei aqui sugerir livros de economia ou congêneres, mas quatro grandes obras que falam da experiência do ser humano na luta sem fim entre a busca da realização individual e a dura realidade que empurra para baixo.

1. Odisseia, de Homero

É mais do que simplesmente a saga de Odisseu (Ulisses), ex-combatente da guerra de Troia que, perdido no mar e arrastado por adversidades e pela ação dos deuses, leva dez anos para voltar para sua casa e sua Itaca. Nessa travessia, enfrenta a ação dos comedores de lótus (um tóxico), que asfixiam a saudade de casa e tentam impedi-lo de voltar; a prisão na caverna do ciclope Polifemo; a fúria dos ventos libertados do saco de couro depois das tolices perpetradas por seus marinheiros; tem de armar-se de coragem para dominar a feiticeira Circe, cercada de feras amansadas, mas que transforma homens em porcos; encontra o jeito de não ceder à sedução das sereias; passa sete anos insatisfatórios como cativo na ilha da ninfa Calipso, cercado de delícias que nunca compensam a falta dos braços da esposa, Penélope...

A Odisseia é construída com profusão de metáforas que explicam a trajetória de todo aquele que procura se encontrar consigo próprio. O imperativo "conhece-te a ti mesmo" é tão basilar na cultura Ocidental, que, no século 6.° a.C., foi escolhido pelos Sete Sábios da Grécia para ser inscrito no frontispício do templo de Apolo, em Delfos. A obra é um tesouro inesgotável de inspiração para escritores, poetas e artistas.

2. Vidas Paralelas, de Plutarco

São descrições e análises de episódios da vida de personalidades ilustres do passado clássico. Mais do que biografias, descrevem traços de caráter, grandes acertos e grandes equívocos que permearam decisões que mudaram o curso de algumas vidas e também a história do Ocidente.

Divide-se em 23 narrativas gêmeas: Alexandre, o Grande, e Júlio César; Péricles e Fábio Máximo; Alcebíades e Coriolano; Marco Antonio e Artaxerxes; Demóstenes e Cícero; e assim vai.

É outra obra que inspirou grandes literatos, como o inglês William Shakespeare e o greco-egípcio Konsantinos Kaváfis, e é repositório de ensinamentos para aqueles que tomam a decisão de transitar na vida pública.

3. O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati

É a história do jovem tenente Giovanni Drogo designado para passar poucos meses na fortaleza remota instalada numa área deserta, perto da fronteira com o país dos tártaros.

Nos seus primeiros dias de aquartelamento, estranha o isolamento e o gotejamento incessante da água na cisterna, que lhe tira o sono. Mas, rapidamente, se deixa atrair pela rotina da vida de caserna e imagina que virá o dia da glória, quando triunfará sobre os invasores. Embora não saiba por que, a cada tentativa de voltar para o lugar de onde veio, vai ficando na fortaleza, à espera do grande dia, que nunca chega, mas que parece cada vez mais próximo.

Maior crítico de literatura do Brasil, o professor Antonio Candido me confidenciou certa vez que todos os anos fazia questão de reler o Deserto dos Tártaros. Sempre encontrava ensinamentos que não havia notado antes. Livro marcante, principalmente para aqueles que têm de enfrentar a rotina inexorável do trabalho que um dia levará, imaginam, não propriamente para a aposentadoria digna, mas para a libertação e para a vitória inexorável sobre as coisas da profissão e da vida.

4. Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar

É um dos mais belos textos da literatura brasileira recente. É pura poesia contada em prosa. Conta a história de André, jovem membro de uma família libanesa no Brasil que tenta escapar da vida sufocante que é obrigado a levar, mais pela rigidez do pai autoritário, incapaz de compreender as diferenças sutis de personalidade, do que pelas limitações da lavoura do interior. O contraponto é o eterno feminino, tanto a atração incestuosa que sente pela irmã, como o comportamento da mãe, carregado de ternura e generosidade. A questão de fundo é a luta entre o sonho de realizações pessoais e a herança cultural e familiar que cada um carrega dentro de si e que puxa em direção ao chão. Foi um sucesso o filme rodado em 2001, dirigido por Luiz Fernando Carvalho e estrelado por Selton Mello, Raul Cortez e Juliana Carneiro da Cunha.

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