Riscos de alavancagem financeira, de novo
COLUNISTAS
Quarta-feira, 29 de Abril de 2020 - 00:00
Por Martin Wolf
Crises revelam fragilidade. Esta não é exceção. Entre outras coisas, o coronavírus revelou fragilidades no sistema financeiro. Isso não surpreende. Assim como antes, a dependência da alta alavancagem como um caminho mágico para lucros elevados levou a ganhos privados e socorros públicos. O Estado, na forma dos bancos centrais e governos, se viram obrigados a resgatar as finanças numa escala gigantesca. Ele teve que fazer isso. Mas precisamos aprender com esse evento. Da última vez, foram os bancos, Agora, precisamos olhar também para o mercado de capital.
Em seu mais recente Relatório sobre a Estabilidade Financeira Global, o Fundo Monetário Internacional (FMI) detalha os choques: queda dos preços das ações, disparada dos “spreads” de risco sobre empréstimos e queda dos preços do petróleo. Como sempre, houve uma fuga para a qualidade. Mas a liquidez secou até mesmo nos mercados tradicionalmente mais fundos. Investidores altamente alavancados passaram a ser duramente pressionados. As pressões sobre os financiamentos a economias emergentes têm sido particularmente duras.
A escala da desordem financeira reflete em parte o tamanho do choque econômico. É também um lembrete do que Hyman Minsky nos ensinou: dívida causa fragilidade. Desde a crise financeira global, o endividamento continuou crescendo. O endividamento de empresas não financeiras aumentou 13 pontos percentuais entre setembro de 2008 e dezembro de 2019, em relação ao PIB mundial. O endividamento dos governos, que assumiram grande parte do ônus do pós-crise financeira, subiu 30 pontos percentuais. Essa transferência para os ombros dos governos vai acontecer novamente, em grande escala.
O relatório do FMI fornece uma visão clara das fragilidades. Riscos significativos surgem dos gestores de ativos enquanto vendedores forçados de ativos, partes alavancadas do setor corporativo não financeiro, alguns países emergentes e até mesmo alguns bancos. Embora os últimos não sejam o centro nessa história, motivos de preocupação ainda existem. Este choque, afirma o relatório, deverá ser ainda mais severo que o visto nos testes de estresse do FMI. Os bancos continuam sendo instituições alavancadas, especialmente quando usamos as avaliações de mercado dos ativos. Conforme observa o relatório: “A capitalização média ajustada ao mercado é hoje maior do que em 2008, isso apenas nos EUA”. As chances de os bancos virem a precisar de mais capital não são pequenas.
Mesmo assim, são os mercados de capitais que se encontram no centro dessa saga. Histórias específicas são reveladoras. O Banco de Compensações Internacionais (BIS) estudou um episódio estranho na metade de março, quando os mercados de bônus soberanos referenciais experimentaram uma turbulência extraordinária.
Isso aconteceu por causa da venda forçada de títulos do Tesouro dos EUA por investidores que tentavam “explorar pequenas diferenças de rendimentos via o uso de alavancagem”. Este é o tipo de “estratégia long-short” tornada abominável pela quebra do fundo hedge Long Term Capital Management em 1998. É também uma estratégia vulnerável ao aumento da volatilidade e queda da liquidez de mercado. Estas causam perdas por reajustes a preços de mercado (mark-to-market losses). Então, quando há chamada de margem, os investidores vendem ativos para amortizar empréstimos.
Outra história elucidada pelo BIS cita as economias emergentes. Um acontecimento recente importante foi o uso crescente dos bônus em moedas locais para financiar gastos dos governos. Mas quando os preços desses bônus caíram na crise, o mesmo aconteceu com as taxas de câmbio, aumentando as perdas dos investidores estrangeiros. Esses colapsos cambiais pioraram o grau de solvência dos tomadores domésticos (particularmente empresas) com dívidas denominadas em moeda estrangeira. A incapacidade de tomar emprestado em moeda doméstica era chamada de “pecado original”. Isso não foi embora, segundo afirmam Augustin Carstens e Hyn Song Shin do BIS. Apenas “mudou dos tomadores para os emprestadores”.
Outro problema significativo do mercado de capital é o papel dos investimentos em participações (private equity) e outras estratégias de alta alavancagem no aumento dos retornos esperados, mas também dos riscos, nas finanças corporativas. Essas estratégias são quase que perfeitamente elaboradas para reduzir a resiliência em períodos de tensão econômica e financeira. Governos e bancos centrais agora foram forçados a ajudá-los, assim como foram forçados a socorrer bancos na crise financeira. Isso vai reforçar as estratégias do tipo “cara, eu ganho; coroa, você perde”. O tamanho dos resgates do banco central e do governo é tão grande que o risco moral deverá ser generalizado.
A crise revelou muita fragilidade. Também demonstrou mais uma vez a relação desconfortavelmente simbiótica entre o setor financeiro e o Estado. No curto prazo, precisamos tentar atravessar esta crise com o menor dano possível. Mas também precisamos tirar lições dela para o futuro.
Uma avaliação sistemática das fragilidades dos mercados de capitais, comparável ao que foi feito com os bancos depois da crise financeira, é no momento essencial. Um problema é como as economias emergentes reduzirão o impacto da nova versão do “pecado original”. Outro é o que fazer com a alavancagem do setor privado e na maneira como os riscos acabam parando nos balanços do governo. Penso nisso como tentar conduzir o capitalismo com o menor volume possível de capital de risco. Isso faz pouco sentido. Cria uma tarefa microeconômica – eliminar incentivos para o setor privado para se financiar demais via endividamento – e uma tarefa macroeconômica – reduzir a dependência das dívidas para gerar demanda agregada.
A grande questão agora é se os sistemas essenciais que mantêm nossas sociedades em funcionamento são resistentes. A resposta é não. Este é o tipo de pergunta que a Unidade de Novas Abordagens a Desafios Econômicos da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) ousou fazer. Isso criou muita controvérsia. Mesmo assim é admirável que uma organização internacional se atreva a fazer isso. A crise nos mostrou porque.
Não podemos ser complacentes. Precisamos reavaliar a resistência de nossos sistemas econômico, social e de saúde. Um foco nas finanças deve ser uma parte importante desse esforço. (Tradução de Mario Zamarian).
"A grande questão agora é se os sistemas essenciais que mantêm nossas sociedades são resistentes. Precisamos reavaliar a resistência de nossos sistemas econômico, social e de saúde. Um foco nas finanças deve ser uma parte importante desse esforço"
Martin Wolf é editor e principal analista econômico do FT
Em seu mais recente Relatório sobre a Estabilidade Financeira Global, o Fundo Monetário Internacional (FMI) detalha os choques: queda dos preços das ações, disparada dos “spreads” de risco sobre empréstimos e queda dos preços do petróleo. Como sempre, houve uma fuga para a qualidade. Mas a liquidez secou até mesmo nos mercados tradicionalmente mais fundos. Investidores altamente alavancados passaram a ser duramente pressionados. As pressões sobre os financiamentos a economias emergentes têm sido particularmente duras.
A escala da desordem financeira reflete em parte o tamanho do choque econômico. É também um lembrete do que Hyman Minsky nos ensinou: dívida causa fragilidade. Desde a crise financeira global, o endividamento continuou crescendo. O endividamento de empresas não financeiras aumentou 13 pontos percentuais entre setembro de 2008 e dezembro de 2019, em relação ao PIB mundial. O endividamento dos governos, que assumiram grande parte do ônus do pós-crise financeira, subiu 30 pontos percentuais. Essa transferência para os ombros dos governos vai acontecer novamente, em grande escala.
O relatório do FMI fornece uma visão clara das fragilidades. Riscos significativos surgem dos gestores de ativos enquanto vendedores forçados de ativos, partes alavancadas do setor corporativo não financeiro, alguns países emergentes e até mesmo alguns bancos. Embora os últimos não sejam o centro nessa história, motivos de preocupação ainda existem. Este choque, afirma o relatório, deverá ser ainda mais severo que o visto nos testes de estresse do FMI. Os bancos continuam sendo instituições alavancadas, especialmente quando usamos as avaliações de mercado dos ativos. Conforme observa o relatório: “A capitalização média ajustada ao mercado é hoje maior do que em 2008, isso apenas nos EUA”. As chances de os bancos virem a precisar de mais capital não são pequenas.
Mesmo assim, são os mercados de capitais que se encontram no centro dessa saga. Histórias específicas são reveladoras. O Banco de Compensações Internacionais (BIS) estudou um episódio estranho na metade de março, quando os mercados de bônus soberanos referenciais experimentaram uma turbulência extraordinária.
Isso aconteceu por causa da venda forçada de títulos do Tesouro dos EUA por investidores que tentavam “explorar pequenas diferenças de rendimentos via o uso de alavancagem”. Este é o tipo de “estratégia long-short” tornada abominável pela quebra do fundo hedge Long Term Capital Management em 1998. É também uma estratégia vulnerável ao aumento da volatilidade e queda da liquidez de mercado. Estas causam perdas por reajustes a preços de mercado (mark-to-market losses). Então, quando há chamada de margem, os investidores vendem ativos para amortizar empréstimos.
Outra história elucidada pelo BIS cita as economias emergentes. Um acontecimento recente importante foi o uso crescente dos bônus em moedas locais para financiar gastos dos governos. Mas quando os preços desses bônus caíram na crise, o mesmo aconteceu com as taxas de câmbio, aumentando as perdas dos investidores estrangeiros. Esses colapsos cambiais pioraram o grau de solvência dos tomadores domésticos (particularmente empresas) com dívidas denominadas em moeda estrangeira. A incapacidade de tomar emprestado em moeda doméstica era chamada de “pecado original”. Isso não foi embora, segundo afirmam Augustin Carstens e Hyn Song Shin do BIS. Apenas “mudou dos tomadores para os emprestadores”.
Outro problema significativo do mercado de capital é o papel dos investimentos em participações (private equity) e outras estratégias de alta alavancagem no aumento dos retornos esperados, mas também dos riscos, nas finanças corporativas. Essas estratégias são quase que perfeitamente elaboradas para reduzir a resiliência em períodos de tensão econômica e financeira. Governos e bancos centrais agora foram forçados a ajudá-los, assim como foram forçados a socorrer bancos na crise financeira. Isso vai reforçar as estratégias do tipo “cara, eu ganho; coroa, você perde”. O tamanho dos resgates do banco central e do governo é tão grande que o risco moral deverá ser generalizado.
A crise revelou muita fragilidade. Também demonstrou mais uma vez a relação desconfortavelmente simbiótica entre o setor financeiro e o Estado. No curto prazo, precisamos tentar atravessar esta crise com o menor dano possível. Mas também precisamos tirar lições dela para o futuro.
Uma avaliação sistemática das fragilidades dos mercados de capitais, comparável ao que foi feito com os bancos depois da crise financeira, é no momento essencial. Um problema é como as economias emergentes reduzirão o impacto da nova versão do “pecado original”. Outro é o que fazer com a alavancagem do setor privado e na maneira como os riscos acabam parando nos balanços do governo. Penso nisso como tentar conduzir o capitalismo com o menor volume possível de capital de risco. Isso faz pouco sentido. Cria uma tarefa microeconômica – eliminar incentivos para o setor privado para se financiar demais via endividamento – e uma tarefa macroeconômica – reduzir a dependência das dívidas para gerar demanda agregada.
A grande questão agora é se os sistemas essenciais que mantêm nossas sociedades em funcionamento são resistentes. A resposta é não. Este é o tipo de pergunta que a Unidade de Novas Abordagens a Desafios Econômicos da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) ousou fazer. Isso criou muita controvérsia. Mesmo assim é admirável que uma organização internacional se atreva a fazer isso. A crise nos mostrou porque.
Não podemos ser complacentes. Precisamos reavaliar a resistência de nossos sistemas econômico, social e de saúde. Um foco nas finanças deve ser uma parte importante desse esforço. (Tradução de Mario Zamarian).
"A grande questão agora é se os sistemas essenciais que mantêm nossas sociedades são resistentes. Precisamos reavaliar a resistência de nossos sistemas econômico, social e de saúde. Um foco nas finanças deve ser uma parte importante desse esforço"
Martin Wolf é editor e principal analista econômico do FT
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