PAÍS SE INSPIRA EM DATA ANTIFASCISTA CONTRA A PANDEMIA
Sábado, 25 de Abril de 2020 - 03:47
O Globo / Especial Coronavírus
LUCAS FERRAZ
A extensão do cataclisma provocado pelo coranavírus na Itália ainda não é possível de ser mensurada, mas os números preliminares mostram um cenário comparável ao de um pós-guerra. O pais, um dos mais atingidos pela Covid-19, comemora hoje os 75 anos de libertação do nazifascismo olhando o exemplo do passado para tentar projetar o futuro.
O 25 de abril é a data de nascimento da democracia italiana após mais de duas décadas da ditadura fascista de Benito Mussolini, que mergulhou a Itália na Segunda Guerra. Aquele dia, em 1945, marcou a vitória da Resistência e o fim da ocupação nazista da Itália - o conflito terminaria meses depois com a rendição do Japão. Lembrada sempre com polêmica entre direita e esquerda - e muitas vezes dentro da própria esquerda, por causa de brigas entre diferentes grupos e partidos sobre quem foi mais antifascista - a comemoração neste ano, com o país sob quarentena desde 10 de março, será a primeira feita virtualmente.
'BELLACIAO EM LIVE
Um grupo de artistas, intelectuais e instituições da sociedade civil organiza uma live no Facebook - está previsto, entre outras coisas, o canto de "Bella Ciao", hino antifascismo - e ainda criou uma campanha para arrecadar ? 300 mil. O dinheiro será destinado à Caritas e à Cruz Vermelha, empenhadas na luta contra o coronavírus e seus efeitos sociais.
Desde a eclosão da pandemia, em março, muitos na Itália fazem analogias entre o sentimento atual e aquele de 75 anos atrás protagonizado pela Resistência italiana, sobretudo pela necessidade de unidade nacional. As comparações foram feitas por membros do governo e também pelo presidente da República, Sérgio Mattarella, que lembrou recentemente que o espírito daquela época deve influenciar a atual geração no pós-pandemia.
Na última semana, o comissário extraordinário para a Gestão do Coronavírus, Domenico Arcuri, comparou os mortos da Covid-19 com as vítimas da guerra: entre 1940 e 1945, morreram nos bombardeios em Milão cerca de dois mil civis. Em dois meses, na região da Lombardia (a mais atingida, cuja capital é Milão), faleceram quase 13 mil civis.
A História não se repete, a História se repete. A História é previsível, a História é imprevisível. Qualquer um pode dizer o que quiser, mas não me parece correto fazer uma analogia entre uma guerra e uma pandemia. Durante aguerra, não existia uma União Européia e a Itália era um país ocupado. A tragédia atual é de outra natureza - afirmou ao GLOBO Emilio Gentile, o principal historiador italiano sobre o período fascista.
Ele ressalta que este será um 25 de abril - data marcada por atos em diversas cidades - de "reclusão nacional": - Hoje muitos arriscam a vida na luta contra a pandemia, assim como na guerra muitos se arriscaram para restituir ao país a liberdade e a democracia.
Após conter o aumento do número de mortes (quase 26 mil) e desafogar o sistema de saúde, em especial da região Norte, a Itália começa a contar as perdas de quase dois meses de estagnação e a preparar a reabertura. O premier Giuseppe Conte deve anunciar até amanhã um cronograma da retomada, prevista para o dia 4 de maio. A abertura será gradual ao longo do próximo mês.
O país foi pioneiro ao decretar o confinamento de toda a população e deverá ser o mais afetado economicamente na Europa. Segundo projeção do Fundo Monetário Internacional (FMI), a redução do PIB italiano no primeiro semestre deste ano deve chegar a 15%, nível de economia de guerra, a queda mais acentuada entre os países ricos.
Terceira economia da União Européia, a Itália terá pela frente o seu maior desafio desde a Segunda Guerra: um a cada dois trabalhadores (um total de 23 milhões) solicitou ajuda a um dos programas lançados pelo governo para socorrer a população na pandemia. Estima-se que a pobreza seja uma ameaça real a 10 milhões dos 60 milhões de italianos, em especial no Sul, mais atrasado e onde os efeitos do confinamento já são sentidos desde meados do último mês. Muitos na região passaram a viver de doações. Um vídeo gravado em Bari, de um casal desesperado que gritava na rua por não ter dinheiro para comer, viralizou.
RISCO DE FORTALECER A MÁFIA
Outro aspecto discutido nos últimos dias é que a crise provocada pelo coronavírus fortalecerá as máfias se o governo não apertar os sistemas de controle, fenômeno registrado em emergências no passado, como nos terremotos que atingiram o centro do país na última década. Procuradores antimáfia alertaram que o cenário é propício ao crime organizado: com a falta de liquidez, o desemprego e a quebra de muitos pequenos e médios negócios, a máfia encontra uma boa oportunidade para expandir sua atuação na economia formal (para lavar dinheiro) e recrutar novos quadros através do socorro financeiro.
Descrente das analogias históricas, o historiador Emilio Gentile não é otimista. Acha pouco provável que os políticos italianos aprendam algo com a crise, mas tem expectativas diferentes em relação ao povo: - Espero realmente que os italianos consigam tirar algum aprendizado do sacrifício feito por tantos médicos, profissionais de enfermagem e por tanta gente que morreu na solidão. Tomara que a tragédia gere uma duradoura solidariedade coletiva.
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